Here we are
Out of cigarettes
Holding hands and yawning
Look how late it gets
Two sleepy people by dawn’s early light
And too much in love to say goodnight
“Two sleepy people”, letra de Frank Loesser
Se, no fim de mais um chuvoso dia de trabalho – talvez amanhã, sexta-feira –, o/a leitor/a deste texto se encontrasse ao volante do seu automóvel, bloqueado num enorme engarrafamento – causado, imaginemos, por uma greve geral de transportes –, sem poder avançar rumo à meta, nem voltar à casa de partida… Se, dizia eu, enquanto esperassem que o trânsito avançasse, um transeunte vos pedisse boleia, será que iriam ignorá-lo – fosse por receio de se tratar de um serial killer e de darem por vocês no meio de um film noir [vem-me à cabeça The Hitch-Hiker (Arrojada Aventura, 1953), de Ida Lupino], ou por não vos apetecer fazer conversa de circunstância com alguém que não conhecem de lado nenhum… ou deixá-lo-iam entrar no vosso carro? É sequer coisa que ainda se faça, dar boleia a um completo desconhecido, resgatado do caos de uma cidade a romper pelas costuras?
E se eu vos dissesse que, assim que o vosso olhar cruzasse o do Outro, despertaria no vosso corpo o desejo do toque e a fantasia de um enlace; que, sem palavras, só em sensações, compreenderiam que esse sentimento era recíproco; e que, embalados pelo burburinho da cidade, acabariam a viver uma noite de paixão irrepetível… Preferiam que vos dissesse que esse encontro mudaria drasticamente o rumo das vossas vidas ou, ao contrário, que tudo voltaria ao normal no dia seguinte, quando cada um retomasse o seu caminho? Não sei qual das hipóteses é mais assustadora: que um encontro fortuito tenha tamanho poder, ou que nada já consiga romper com as amarras do quotidiano…
Em 2002, entre o delírio canibalesco de Trouble Every Day (2001) e o suspense solitário de L’Intrus (O Intruso, 2004), Claire Denis realiza Vendredi soir, um “pequeno filme” raras vezes posto em destaque na sua filmografia. Com efeito, o caráter minimalista do argumento e a dimensão experimental da mise en scène fazem pensar mais num exercício de realização feito por estudantes de cinema do que numa produção profissional, apesar de contar com duas figuras bem conhecidas do cinema francês contemporâneo: a one-woman-show Valérie Lemercier, recentemente consagrada em Aline (2020), realizado pela própria; e o ator Vincent Lindon, rosto de pedra do drama social à la Ken Loach, ultimamente visto em Avec amour et acharnement (2022), também de Claire Denis. Adaptação do romance epónimo de Emmanuèle Bernheim, Vendredi soir tem como pano de fundo uma greve de transportes massiva que paralisou Paris durante o outono de 1995, e relata o “breve encontro” entre um homem e uma mulher, unidos por uma noite, até ao amanhecer [David Lean meets Claude Lelouch meets Richard Linklater? Ou prolongamento de um episódio de Toute une nuit (1982), realizado por Chantal Akerman, filme mosaico onde, ao longo de um noite tempestuosa, fervilham, se cruzam e colidem os desejos de homens, mulheres e crianças anónimos?].
Tudo o que Claire Denis nos dá a ver é a presença de um corpo de mulher percorrido por sensações contraditórias.
À semelhança de Trouble Every Day e L’Intrus, que assinalam as breves incursões de Claire Denis nos géneros do terror gore e do filme de espionagem (aos quais se juntará, com High Life [2018], o filme de ficção científica), Vendredi soir convoca o imaginário de dois subgéneros cinematográficos distintos – a tradição das “sinfonias urbanas” em voga nos anos 20, e o road movie moderno, na peugada de Wim Wenders (de quem Denis foi assistente de realização nos anos 80) –, ainda que subverta as premissas de ambos, na medida em que inverte o arco narrativo típico do primeiro (geralmente a crónica de uma jornada de trabalho, do amanhecer ao anoitecer), e impõe um entrave às ideias de trajetória transformadora e de evasão into the wild características do segundo. Na verdade, não só a ação de Vendredi soir decorre nas horas de ócio entre o crepúsculo e a aurora, como as personagens se encontram, durante grande parte do filme, confinadas no interior de um automóvel, por sua vez imobilizado num engarrafamento. Assim, ao invés de uma celebração do ritmo e da velocidade que pautam a sociedade moderna, o filme de Denis retrai-se sobre as deambulações noturnas e solitárias dos indivíduos cuja vida é posta em suspenso pela própria paralisação do fluxo urbano.
Aquela sexta-feira de greve vai constituir um verdadeiro parêntesis na vida de Laure (Valérie Lemercier, aqui entregue a um papel quase mudo, bem diferente daquilo a que a one-woman-show habituou o seu público). O prólogo do filme introduz a protagonista no seu estúdio parisiense, enquanto esta termina de encaixotar os seus pertences e se prepara para ir jantar a casa de um casal amigo; no dia seguinte, Laure mudar-se-á para o apartamento do namorado (que nunca chegamos a ver). Adivinhamos essas informações através de alguns telefonemas e outros detalhes habilmente integrados no primeiro quarto de hora do filme, que de resto é extremamente parco na caracterização da personagem: nada saberemos sobre a vida de Laure para além daquela noite. Tudo o que Claire Denis nos dá a ver é a presença de um corpo de mulher percorrido por sensações contraditórias: a tentativa de vestir um vestido sexy sob uma bata de limpezas; o cansaço que conduz à languidez, estendida na cama; os gestos vigorosos com que lava o cabelo, sentada na banheira; a nostalgia do olhar que se demora no vão de escadas do prédio, como uma despedida; o desembaraço com que seca o cabelo no aquecimento do automóvel; o sobressalto e a precipitação com que se esquiva ao primeiro indivíduo que bate na janela do seu carro com o intuito de pedir boleia; o olhar vazio quando repete as palavras “chez nous”, tentando habituar-se à ideia da vida em comum que a espera.
Mas Vendredi soir só começa realmente a partir do momento em que Laure se encontra bloqueada no trânsito, com a rádio como única companhia, a qual a brinda com músicas animadas que a impelem a dançar, mesmo sentada , ou a encoraja a oferecer boleia a quem precisa, uma “boa ação” não tão inusitada assim, vistas as circunstâncias. Lá fora, reina o caos: uma atmosfera densa e tensa, continuamente trespassada por buzinas insistentes, faróis ofuscantes, ruídos de motores, altercações entre condutores… Dentro dos automóveis, através das janelas e espelhos retrovisores, trocam-se olhares silenciosos entre desconhecidos, uns aborrecidos ou desconfiados, outros expectantes ou cúmplices. Alternando entre o bulício das ruas, filmadas num registo quase documental, e o aconchego do automóvel de Laure, propício a uma sonolência promotora de lampejos oníricos e de experimentações formais (nomeadamente movimentos de câmara coreográficos, montagens descontínuas de grandes planos, dissolves e ralentis subtis com uma carga quase erótica, que evocam por momentos o estilo de Wong Kar-wai), a realização de Claire Denis transforma progressivamente uma situação banal numa deriva poética, pontuada pela sublime banda sonora composta por Dickon Hinchliffe, do grupo britânico Tindersticks.
Denis filma o desejo que nasce no embaraço da antecipação do toque, vindo impregnar os seus corpos, ou até materializar-se nos objetos que os rodeiam: numa casa de banho pública, Laure hesita entre o telefone (o único elo de ligação com o namorado) e a máquina de venda de preservativos (a tentação do adultério).
Assim, ao longo da hora seguinte, a atmosfera do filme dissocia-se da realidade do espaço e do tempo sociais, e diverge para um outro regime de imagens, que oscilará continuamente entre realismo mágico (tudo passa pelo filtro da subjetividade algo fantasista da protagonista, qual Alice no País das Maravilhas) e uma sensualidade nua e crua [a câmara de Denis acaricia o corpo de Valérie Lemercier com os mesmos deslumbramento e concentração com que filmara os rituais físicos dos soldados em Beau travail (1999)]. Acima de tudo, a “realidade” dos eventos permanecerá incerta: talvez Laure tenha adormecido ao volante, e o que se segue não passe de um sonho.
Procurando na multidão alguém a quem oferecer boleia, o olhar volátil de Laure acabará por intercetar o de Jean (Vincent Lindon), sedutor e perscrutador, e nele se perderá – ou decidirá perder-se. O mais interessante na forma como Claire Denis filma esse encontro é o modo como elude simultaneamente as injunções do male gaze predador que pesa geralmente sobre os corpos femininos (a aparição de Jean não é simplesmente algo que acontece a Laure, mas trata-se de um encontro que esta procura ativamente), e o artifício narrativo do “love at first sight” das comédias românticas hollywoodianas (nada sugere um encontro predestinado: podia tratar-se de outro homem, outra mulher, noutra noite qualquer). Isso não significa, porém, que a cineasta abdique da sensualidade à flor da pele que premeia as interações entre as personagens, pelo contrário: Denis filma o desejo que nasce no embaraço da antecipação do toque (vários são os planos dentro do carro que enquadram as mãos de ambos), vindo impregnar os seus corpos (como o fumo do cigarro de Jean que Laure inala com um sorriso de volúpia), ou até materializar-se nos objetos que os rodeiam, por exemplo quando, numa casa de banho pública, Laure hesita entre o telefone (o único elo de ligação com o namorado) e a máquina de venda automática de preservativos (a tentação do adultério).
A transição entre o primeiro enlace numa rua deserta e a descoberta dos corpos num quarto do hotel dura o tempo de um dissolve – e há ele procedimento cinematográfico mais eminentemente tátil do que este? Aqui, a sobreposição dos planos não só chama a atenção sobre as qualidades materiais de opacidade ou transparência do suporte fílmico – imagem sobre imagem, pel[e]ícula sobre pel[e]ícula –, como faz com que o olhar do espectador venha “tocar” simultaneamente duas imagens distintas – do desejo e da sua concretização –, tornadas copresentes, durante breves instantes, na superfície do ecrã.
À semelhança deste, os dissolves em Vendredi soir são menos utilizados para sinalizar as inúmeras elipses temporais (de resto tornadas visíveis, diria mesmo palpáveis, pelo caráter descontínuo da montagem, nomeadamente na cena da relação sexual, filmada com a câmara na mão e decorticada em grandes planos), do que sugerem uma fusão entre as imagens mentais relativas às fantasias das personagens (sobretudo de Laure) e a realidade material – ou carnal – dos seus corpos. Enfim, quando se trata de filmar a relação sexual, a realização de Claire Denis reforça a impressão de respeito mútuo e de cumplicidade que se instala entre os amantes, prestando mais atenção aos preliminares do que ao clímax do ato sexual propriamente dito: tudo é filmado com tanta delicadeza, precisão e realismo, que ficamos com a impressão de que nada nos é ocultado, que nada é falseado em prol de um espetáculo erótico e voyeurista; em contrapartida, Denis faz questão de filmar algo raras vezes visto no cinema: as pausas “técnicas” durante o sexo para ir à casa de banho, e até o momento de colocar o preservativo!
Da longa noite de paixão, interrompida por uma escapadela ao restaurante para saciar outros apetites e alimentar novas fantasias, restará apenas o souvenir silencioso das sensações, no doce atabalhoamento dos gestos e dos olhares febris com que Laure e Jean se descobrem, se amam e logo se separam. Na manhã seguinte, Laure acorda antes do nascer do sol e abandona o quarto de hotel, não sem antes se despedir de Jean, ainda adormecido. De volta às ruas de Paris, agora praticamente desertas, Laure parece inicialmente desorientada (talvez não se lembre de onde estacionou o carro) ou assustada, como se fugisse de algo (talvez o sentimento de culpa pela noite passada, ou o compromisso da sua vida futura?). Por fim, algo a impele numa corrida desenfreada, tornada progressivamente mais leve através de um efeito de ralenti coroado por um sorriso enigmático: talvez se trate apenas de celebrar a reconquista da mobilidade – e da liberdade – do seu corpo de mulher no espaço urbano e social.
Vendredi soir será exibido no âmbito do ciclo “Claire Denis: Todo o Corpo”, no Batalha Centro de Cinema, no Porto, no dia 6 de Janeiro, às 21h15.