Depois de coleccionar diversos prémios e elogios (entre os quais um prémio para a realizadora no Festival de Cannes e a eleição como filme do ano para a Sight and Sound), e depois de se temer que o filme não chegasse a estrear nas salas de cinema portuguesas, aí está Aftersun (2022), a promissora estreia de Charlotte Wells e talvez já um dos filmes do ano. Três walshianos (João Araújo, Ana Cabral Martins e Carlos Natálio) reúnem-se, através de cartas, para discutir o filme, numa nova edição da crítica epistolar.
Olá Ana e Carlos,
Espero que se encontrem bem e aconchegados perante estas temperaturas baixas, acho que encontrei um filme capaz de aquecer estes dias frios. Não falamos muito sobre o filme antes de iniciar esta correspondência, por isso não sei se partilham do meu entusiasmo, mas já não via uma estreia tão arrebatadora em muito tempo, uma primeira obra com tamanha maturidade e certeza na forma como quer contar uma história, com um domínio impressionante das diferentes ferramentas que utiliza. Existem vários aspectos notáveis sobre Aftersun (2022), mas queria começar por destacar um, que é a fuga do filme à necessidade de tensão entre personagens para contar uma história, de se atirar a uma narrativa de contornos mínimos e de uma sequência de não-eventos, principalmente no primeiro terço do filme que estabelece o marasmo e a monotonia das férias em paralelo à construção da personalidade das duas personagens principais e a sua relação. Tudo isso é resumido de forma brilhante numa das cenas mais bonitas do filme, logo no início, quando pai e filha chegam ao quarto de hotel depois da viagem, e em que este depois da filha adormecer, escapula-se para a varanda para fumar um cigarro (mais uma fuga): em primeiro plano, a filha na escuridão afunda-se num sono profundo, e ele ao fundo, goza do cigarro ao mesmo tempo que dança sozinho perante uma banda sonora imaginária, perdido momentaneamente no seu mundo (apenas ouvimos o leve ressonar da filha); a barreira sonora e visual da janela fechada cria uma separação que desde logo anuncia a personalidade solitária do pai, a sua posição à margem do mundo à sua volta. É algo que faz lembrar o filme de Sofia Coppola, Somewhere (Somewhere – Algures, 2010), até pela relação entre pai e filha, só que aqui em vez de um niilismo burguês de quem tem tudo, temos uma angústia melancólica de quem nada tem, e de repente tudo começa a fazer sentido.
Esta correspondência no modo como observam o mundo do lado de fora aproxima os dois, são afinal muito parecidos, e isso não é efémero, e a forma como o filme sublinha essa equivalência é simplesmente assombrosa.
Mas há outro aspecto que é logo revelado nos primeiros momentos de Aftersun, quando as imagens de vídeos caseiros revelam uma reflexão-sombra da pessoa no ecrã que olha para essas filmagens, pertencendo a uma versão mais velha da filha, Sophie: este é um filme sobre um fantasma, sobre a memória, algo que vai sendo lentamente revelado e construído meticulosamente. Quando o filme começa, observamos Sophie mais velha a olhar para os vídeos dessas férias como um artefacto, como se fosse um derradeiro encontro com o seu pai, que começamos a presumir desaparecido entretanto. Tal como ela procura reconstituir a memória do pai a partir dessas imagens, também nós procuramos construir uma ideia da história que o filme procura contar através das suas imagens: a forma como pai ensina a filha a defender-se, como se ele estivesse a pensar que não estaria sempre por perto para a ajudar; o tapete que ele compra como uma lembrança permanente para uma memória efêmera das férias (e que a Sophie mais velha guarda ao lado da cama); o telefonema entre o pai e a mãe de Sophie; as novidades sobre uma possível namorada e um possível emprego; o pulso partido e mais tarde um arranhão nas costas de que não se lembra; etc. Os pequenos sinais que vão pontuando o filme não são muito óbvios, evocando o cinema da também cineasta escocesa Lynne Ramsay [ou até, de acordo com uma apresentação do filme por Barry Jenkins, Petite maman (Petite Maman – Mamã Pequenina, 2021) de Céline Sciamma], mas são exactamente na medida certa para o espectador ir desvendando, pressentindo, através também do que não é mostrado, o desenlace final que deixa Sophie acordada durante a noite, anos mais tarde.
Uma nota final para uma correspondência entre pai e filha que acho que o filme procura evidenciar ao longo desta sua história: muitas vezes o pai é filmado na sua solidão, no seu pequeno mundo isolado dos outros, e além de uma ou outra interação dele com adultos, raramente o vemos a interagir com outras pessoas que não a filha; o próprio deixa escapar que a certo ponto deixou de acreditar que conseguiria sentir voltar a pertencer ao que já foi a sua casa. Ao mesmo tempo, o filme replica muitas vezes o olhar curioso de Sophie para os detalhes, como o de um observador atento mas externo (prenúncio de uma realizadora em potência, sendo Sophie uma espécie de alter-ego de Charlotte Wells). Esta correspondência no modo como observam o mundo do lado de fora aproxima os dois, são afinal muito parecidos, e isso não é efémero, e a forma como o filme sublinha essa equivalência é simplesmente assombrosa.
Posto isto, digam de vossa justiça. Estarei a ser demasiado benevolente com o filme, existe algum problema que me escapou? Ou então algum outro detalhe que queiram desenvolver – talvez a forma como o filme explora o papel da memória, ou até a importância da música no filme?
abraços,
João Araújo
Olá, João e Carlos,
Nada como um filme que nos leva para o verão na Turquia nos anos 90 para derreter o frio de Janeiro. De facto, não falámos muito sobre o filme a priori, mas eu partilho o mesmo entusiasmo pelo filme. Fui percebendo a onda de carinho pelo filme ao longo dos meses, mas temi que não chegasse ao cinema em Portugal. Acho que ver Aftersun fé ficar arrebatado por esta estreia. Há realizadores que conseguem fazer uma primeira longa com tal nitidez de intenção e pensamento e emoção que é inegável que serão uma voz a seguir no futuro. Não acontece sempre, não acontece sequer talvez muito, mas a Charlotte Wells pega numa história simples — uma dupla pai-e-filha que vai numas férias-meio-excursão à Turquia e as recordações/recordings que daí advêm — e traz-nos um filme plenamente contido e muito bem trabalhado. É engraçado pensar na forma como os filmes vão crescendo e sendo construídos (a conversa a que o João alude com o Barry Jenkins mostra bem o processo longo deste filme) porque tudo parece incrivelmente deliberado e cristalino, mesmo quando os planos parecem quase informais na forma como se apresentam. Ao mesmo tempo relaxados, ao mesmo tempo em suave tensão — uma sensação de algo que-fica-por-dizer (ou que se luta por manter longe da superfície) constante, até ao momento em que Paul Mescal sorri para a filha e a tensão relaxa, para em breve voltar. Wells está não só no comando da sua câmara e da sua montagem, mas também dos seus actores, que pintam as personagens de Sophie (Frankie Corio) e Calum (Mescal) com os pincéis mais delicados. O filme nunca se vira para efeitos melodramáticos e a Sophie de onze anos poderia dizer que, fora um ou outro percalço, foram umas férias bem passadas. Não fosse o seu claro revisitar destas férias na sua idade adulta. Não fossem os vislumbres que temos de Calum quando a filha não o está a ver. Não fossem as pistas que o filme dá, em detalhes que não são sublinhados com mão pesada, mas com o mais delicado dos toques. Não que a Sophie de onze anos não perceba coisas (como o João escrevia, o seu poder de observação é notório, mesmo que não confrontacional), mas não as percebe como perceberá, ou tentará perceber, mais tarde.
O uso da música aqui não é um atalho para a criação de emoções é o gatilho da catarse, o tijolo da construção da narrativa.
E é aqui que gostava de falar sobre o trabalho sobre a memória do filme. O João já tinha apontado o uso dos vídeos caseiros, para o facto de ser um filme sobre a memória e sobre um fantasma, sobre o que a memória revela e o que as imagens guardadas revelam quando olhamos para elas mais tarde, com mais peso do conhecimento do mundo. O filme é a tentativa de recapturar a totalidade de uma pessoa que não se conheceu (do we ever?) plenamente e todo o espaço que existe no meio. E esse trabalho sobre a memória, pegando numa deixa do João, é feito através da música. A Charlotte Wells usa a música para vários efeitos. Como a equiparação das memórias e das gravações com o poder da música para marcar uma época, uma década, umas férias, um momento no tempo. Ouvir a “Road Rage” dos Catatonia é — tanto para a Sophie adulta, como para Wells, como para mim — voltar a um momento específico da minha história pessoal e é engraçado pensar que é um movimento simpático ao do cinema; porque se a música me faz regressar a um tempo concreto, o cinema retira-me do tempo e reúne-me aos fantasmas do que já passou.
Antes de passar a palavra e, porque já me alongo demais, gostava só de realçar dois momentos musicais: o uso da “Tender”, dos Blur, e o uso da “Under Pressure”, de Queen e David Bowie. Ambas as músicas trabalhadas de forma a que não sejam as suas versões radio-play (nomeadamente, a lenta distorção de “Tender”; o despojamento da “Under Pressure” em sintonia com o violoncelo de Oliver Coates, que faz a composição do filme) e ambas a pontuar momentos-chave do filme. Há uma qualidade em Aftersun que tenho encontrado nalguns dos filmes mais recentes que me têm tocado particularmente. Cada um à sua maneira, mas falando aqui especificamente deste filme, e especialmente do seu uso da música, há algo de dolorosamente sincero na forma como o filme usa estas duas canções. Se estamos num filme contido que passa a sua duração a dar-nos pistas em vez de nos revelar tudo o que temos de saber, confiando no espectador para montar o puzzle, o uso das músicas é tão sinceramente directo, tão obviamente revelador de tudo o que temos de saber com as letras da música, tão em sintonia com o que vai na alma mais profunda dos personagens que se torna poderoso na sua utilização. O clímax que usa a “Under Pressure” (uma canção já tão desgastada pelo uso), poderia ter sido, em mãos menos hábeis, demasiado adocicado, demasiado cliché, demasiado sublinhado. Aqui, por tudo o que vem antes e pela forma como a música se apresenta e pelas imagens entrecortadas que vamos vendo, torna-se mágico. E só funciona porque o filme conquistou o direito a ser tão directo neste momento. O uso da música aqui não é um atalho para a criação de emoções é o gatilho da catarse, o tijolo da construção da narrativa.
E tu, Carlos, diz de tua justiça. Serão demasiadas hosanas, sentiste o mesmo, queres apontar para outros caminhos?
Abraços,
Ana Cabral Martins
Olá Ana e João,
Fico comovido (novamente) depois de vos ler e voltar a esse “gatilho da catarse” como bem descreve a Ana. Vou fazer um exercício de confrontar, a partir das vossas palavras e ideias, a minha memória do filme. Mas antes, começar por opô-la às notas rough que escrevi na altura logo a seguir ao visionamento.
Eram estas:
“Passado e presente. As sensações da memória. Viver e gravar. Dançar consigo mesmo. Ficar nos extremos do plano, a guardar a “descentralidade”. Um filme sobre a impressão da água nos ouvidos e os rumores de vozes quando estamos a passar ao sono. Um plano circular entre o que foi e o que é. Proustiano. As cores impressionistas da memória. Somewhere e Carla Simón, Estiu 1993 (Verão 1993, 2017). Apanhar a relação entre um pai e uma filha a partir do banal, pois o banal desenterra o extraordinário da emoção.”
É a linguagem muda da realidade que nos grita. Um grito que é verbalizado, ou melhor, do qual ganhamos consciência a partir da emoção.
Neste filme tão bonito, leve e pesado – o presente escapa-nos, mas a memória permanece por mais tempo – recordo a questão da tensão. O João fala numa “fuga”. Eu pergunto-me se a tensão no cinema, muitas vezes, não parece ser um mecanismo que, “artificialmente”, presentifica para nós um problema no espaço de duas horas, quando na vida real, muitas vezes, essa tensão não damos por ela (ela é um affaire do pensamento retrospectivo). Se é verdade que nós reconstituímos uma certa tensão a partir do fim do filme (lá está, em retrospectiva), fico com a sensação que aquelas férias são a não tensão por excelência (e isto, apesar da situação que vivem pai e filha). Por outras palavras, uma sucessão de conversas, pequenas vivências banais, refeições, olhares que, quando a memória da realizadora as soma (e nós com ela), magicamente, caímos nos abismos da tensão. Ou, para usar a palavra da Ana uma vez mais, estamos na “catarse”, quando Charlotte Wells faz este gesto de “unir as sensações” com um dado significado. E, pergunto-me, pergunto-vos, não é isso a memória? Uma soma de “não coisas” que depois nos parecem “a coisa”?
E nesse sentido não creio que algo fique por dizer, Wells tem toda a eloquência do real. O cinema diz coisas com corpos e lugares – e concordo que a música ajuda a conceber esta trama de sensações de um passado – e essas coisas, por sua vez, dizem-nos coisas. É a linguagem muda da realidade que nos grita. Um grito que é verbalizado, ou melhor, do qual ganhamos consciência a partir da emoção.
É comum dizermos que o que lembramos se reconstitui artificialmente como um todo – como uma narrativa – uma série de vivências desconexas. Como se fossemos todos realizadores de um certo cinema clássico. Contudo, basta lembrarmos esse mesmo cinema clássico (ou outro qualquer) e percebermos que são as emoções o que recordamos muitas vezes e que essa emoção é verdadeira, mesmo que tudo o mais tenha desaparecido com esse todo falso. É o que sinto em Aftersun: um filme feito da ruína de um todo – uma sinopse como vestígio de uma totalidade; mas que conta ela: umas últimas férias entre um pai e uma filha? – e em que reverberam, incandescentes, as brasas da emoção de um passado. É esse o sol que (nos) aquece (apesar) do sol turco.
Sinto que é um filme forte e misterioso. E gosto dessa ideia, João, de uma observação a partir de um plano separado como uma espécie de legado de uma arte, como o cinema, que não prescinde dela. Uma prenda, ou melhor uma passagem geracional de um olhar.
Guardemos os olhares que observam o mundo como uma dádiva.
E sigamos desabrochando o filme.
Abraços,
Carlos Natálio
Olá poppets,
Foi um prazer (e comovente sim, mérito do filme também) ler as vossas palavras sobre Aftersun, e perceber o modo como cada um de nós foi-se deixando embalar pela tal tensão suave que a Ana refere que o filme vai construindo. Queria voltar a dois momentos que não me saem da cabeça: aquela sequência final, em que passamos de um momento com pai e filha nas férias e com ele a chama-la para a pista de dança, com este a perder-se na música “Under Pressure”, (arrisco dizer que irremediavelmente ligada agora a Aftersun, parece que a estamos a ouvir pela primeira vez: It’s the terror of knowing what the world is about (…) keep coming up with love but it’s so slashed and torn (…) why can’t we give ourselves one more chance… this is our last dance, this is our last dance), que gradualmente dá lugar ao cenário onde a versão adulta de Sophie começa o filme (uma discoteca?), onde encontra-se com o seu pai, uma construção que resulta num momento, o tal “gatilho da catarse”, de claridade – e de quebrar o coração – sobre o que está em jogo; o segundo momento é a imagem da versão adulta de Sophie a acordar a meio da noite, e depois a olhar para os monitores com as imagens dos vídeos caseiros gravados durante essas férias. São dois momentos que sinalizam a forma como a versão adulta vai ganhando espaço à medida que se aproxima a revelação final, dois momentos assombrosos que confirmam os anseios sobre a natureza de encontro derradeiro destas férias, que os sinais anteriores tinham antecipado, a “soma de não coisas que depois nos parecem a coisa”, como escreve o Carlos, “do qual ganhamos consciência a partir da emoção”. Não sei se vos acontece o mesmo, mas às vezes perante um momento quotidiano mas depois extraordinário (um concerto, um jantar de amigos, uma tarde preguiçosa na praia) quase que apetece ordenar o cérebro: grava isto nas tuas memórias, lembra-te disto claramente mais tarde. É um gesto-desejo impossível, claro, e por isso recorremos aos substitutos, como as gravações de home-videos ou fotografias; é por isso algo óbvio a posteriori mas que só mais tarde compreendi: aquelas gravações durante as férias são já um presente de despedida de Calum, a dizer: lembra-te apenas disto mais tarde.
Há uma curiosidade em relação ao filme que queria destacar, ligado mais à sua recepção (mas que resulta da forma como o filme está estruturado): confesso que quando vi em sala já tinha visto o filme antes, e por isso estava atento a outros detalhes próprios de uma segunda visualização (que recomendo, especialmente no cinema), e por isso estranhei a reação do público na sessão a que assisti, rindo quase exageradamente de qualquer pequeno momento mais ligeiro, como se a expectativa fosse de uma comédia, mesmo que melancólica; quando chegamos aos últimos momentos do filme (quando o ponto de vista da versão adulta de Sophie “toma controlo” da história), cai um silêncio que não foi interrompido até ao final dos créditos e as luzes na sala se acenderam; uma reação que já vi repetida por outras pessoas, de que o filme passa quase despercebido até “explodir” naqueles minutos finais. É curioso pensar que essa espécie de alheamento resulta precisamente da visão da Sophie de onze anos, que mesmo observadora atenta, não compreende (ainda) as consequências do comportamento do pai, e que isso faz parte da construção do filme, de esconder à vista de todos o que só mais tarde ganha significado. É a versão adulta a admitir a impossibilidade de reviver aqueles momentos para sempre, como que uma libertação final da obsessão de encontrar respostas nas imagens dos home videos, de como refere a Ana, libertar-se da “tentativa de recapturar a totalidade de uma pessoa que não se conheceu”; e é também a versão adulta, agora também mãe, a finalmente compreender o ponto de vista de Calum, e talvez perdoar o pai.
Posto isto, passo-vos a palavra. Talvez queiram destacar alguma outra cena em particular, ou falar sobre o trabalho de actores ou outro detalhe que ainda perdura dias depois de ver o filme; aguardo com curiosidade o que têm a dizer.
abraços,
João
P.S. não podia deixar de referir aquele plano incrível no quarto sobre uma televisão, quando Sophie supostamente desligou a câmara para o pai poder falar, a mostrar – além de um livro da poeta e realizadora experimental escocesa Margaret Tait – um reflexo dos dois num momento de franqueza enternecedora.
Poppets!
Olá!
Uma vez mais, tem sido mesmo um prazer ler-vos sobre este filme. É daquelas experiências em que escrever e falar sobre o filme é a maneira de o capturar mais um bocadinho no imediato da nossa consciência e memória e quando terminarmos se irá dissolver um pouco, junto de outras experiências memoráveis. Sinto que a Charlotte Wells aprovaria.
Igualmente, não me sai da cabeça o momento da “last dance” do “Under Pressure” e também a considero, agora, irremediavelmente ligada ao filme. Gosto, de facto, que sejam dois momentos que marcam a tomada de espaço da Sophie adulta e começam a sublinhar a ideia de algo “derradeiro” que aconteceu; apercebermo-nos da reconstrução que ela está a fazer dessa “série de vivências desconexas” de que falava o Carlos. É ela a tentar ter acesso a essa ordem do cérebro de “lembra-te disto claramente mais tarde”. De certa foram, dá-me a sensação que a Sophie de onze anos (por não viver perto do pai) terá passado as férias também a querer gravar os bons momentos nas suas memórias, para os reviver nos momentos em que olha para o céu e se lembra que estão debaixo do mesmo céu e que isso o une. Especialmente porque ela sente alguma tensão no pai, quando ele se encolhe, se retrai. Ele, que tantas vezes espera pela calada da noite ou quando aproveita puder evitar o olhar dela — como quando ela fala na sensação “esvaziante” ao chegar a casa depois de um dia de actividades, e ele claramente se revê nisso —, mesmo assim não consegue esconder tudo.
E aqui, gostava de acrescentar um momento que também me marcou bastante. Um deles é o ida até à praia de Calum, depois de se separar da sua poppet, quando ela acaba por passar a noite sem ele, até o empregado do hotel a deixar entrar no quarto. Acho interessante o exercício da sensação que cada um possa fazer de se esse passeio é real ou imaginado, mas o que ficou, para mim, foi um dos mais severos apertos quando Calum vai à praia, entra no mar e não o vemos sair. Vemo-lo (mais tarde?) despido, no quarto — alegramo-nos, porventura, por ela poder sossegar porque o pai está lá — mas é um dos momentos mais pesados para mim. E, mais uma vez, construído com mais hábeis e subtis. Porque é tão simples como não mostrar uma ligação clara entre o sair do mar e o estar no quarto, na cama, absorto de onde estará a filha.
Inevitavelmente ligo este momento ao de Sophie adulta a acordar, de que o João falou, mas pela presença do tapete (que Calum comprou nestas férias na Turquia por impulso, o que parece contrariar a sua situação financeira) e a indicação, para mim clara, de que Calum já não está vivo. Mas está presente, nas memórias, mas também na sensação física, na textura que Sophie sente todos os dias ao colocar os pés no tapete. Sophie contraria a ausência real do pai, com os artefactos da sua vida, incluindo os vídeos das férias. Sempre a tentar chegar a um ponto final, que esperamos que seja um ponto de vista com alguma compreensão e talvez perdão — como escreve o João. Embora o confronto na discoteca emane alguma raiva, a escolha de “Under Pressure” volta a levar-me às palavras de David Bowie: ‘Cause love’s such an old-fashioned word/ And love dares you to care for/ The people on the edge of the night. Calum no edge of the night emocional, as Sophies e Calum a encontrar-se num edge of the night imaginário com o pai na discoteca. A despedida no aeroporto que se transforma no caminhar para a discoteca.
Um último pensamento: não sei quem poderiam ter encontrado para esta dupla de pai e filha que conseguisse ser tão potente. Paul Mescal está nomeado para um Oscar e a especializar-se em papéis de homens sensíveis mas a quem falta a eloquência para se expressarem (ver Normal People, a série que o catapultou para a fama). Frankie Corio a ser um rasgo de génio de casting.
E assim me despeço, aguardando avidamente as palavras do Carlos e já a antever as saudades de ter este filme a ocupar-me o pensamento.
Abraços,
Ana
Oi, oi,
Sim, o que será de nós, no final destas palavras? O vórtice da sucessão da vida deixa-me sedento de registar – fotograficamente; o bom cinema é, ainda mais hoje creio, esse imprint fotográfico no coração. Sedento de permanecer nos filmes, nas palavras, nas conversas que me tornam feliz e mais completo. E esta é uma delas: o filme faz o seu caminho na ponta dos dedos de alguns espectadores. Noutros, será de outra forma.
Também penso muitas vezes nisso que refere o João. Tentar reter o bem estar, parar momentaneamente a roda da fortuna e do azar. Tenho andado a ler “Song of Myself” de Walt Whitman, grande ode a si mesmo, como um grande espaço cósmico, sem hierarquias, e, em certo momento, ele escreve sobre esse poder majestoso do presente: “Thoughts and deeds of the present our rouse and early start. / This minute that comes to me over the past decillions, There is no better than it and now.” O minuto como instância de uma existência plena e absoluta. Pois o “a seguir” já nos vem contaminado pela utilidade e escassez do tempo, pela inevitabilidade da morte. Tentar reter o presente como um paliativo a essa inevitabilidade: somos todos heróis trágicos que só algures no presente se apercebem o quão eram felizes lá atrás.
As filmagens de Sophie são os gatilhos para uma futura rememoração. Como isso é poderoso! Os registos não registam o presente para um depois, são portais para uma emoção. Quando me forço a escrever sobre algo no presente e depois, anos depois, me confronto com esse outro que era eu e com tudo o que o mundo me dava a sentir e a reagir. É como visitar um velho amigo, um pai que partiu, um filho que deixámos a meio de uma conversa.
Gostava de partilhar com vocês uma coisa que eu gosto muito em Aftersun. Nessa cena da noite que demora a passar, a minha mente pequena e mesquinha pensou em suicídio do pai, em abuso da filha por aquele rapazinho. Buscava nos lugares comuns do drama algo que desmascarasse essa oscilação do banal, entre observar e ser observado, entre falar e escutar. Mas, felizmente, as minhas expectativas saíram goradas. Isto porque o filme de Charlotte Wells habita uma nova radicalidade. Contemporaneamente, a inexistência de uma mensagem, de uma trincheira a não ser aquela que separa o nosso olhar do horizonte (e do sol que ora nasce ora se põe) é uma atitude punk. Estejamos à altura dessa atitude absolutamente radical da recusa de uma moral, de uma urgência transformadora. Sejamos como as crianças videntes do cinema moderno e como a personagem de Sophie: registar um presente com a humildade de não ter a certeza (as ferramentas) de todas as respostas.
Para terminar, marco aqui com vocês a vontade de revisitarmos estes textos daqui a uma década. A surpresa será muita? Não sei, mas talvez nos surpreendamos.
A mudança acontece nos intervalos do imutável.
Até já, daqui a dez anos.
Carlos