Babylon (2022), de Damien Chazelle, é um flop. O realizador que teve sucesso tanto com Whiplash (Whiplash – Nos Limites, 2014) como, especialmente, com La La Land (2016), viu depois o seu First Man (O Primeiro Homem na Lua, 2018) receber menos atenção e celebração. Babylon pontua agora o percurso deste realizador com a sua obra mais ambiciosa e mais divisiva.
Com 188 minutos, a ambição está no nome, que remete para algo tumultuoso, desordenado, marcado pelo excesso e quiçá com um toque de deboche — as ligações com Hollywood Babylon são inevitáveis de fazer, mas se o livro de Kenneth Anger era baseado em pouco mais que rumores e sensacionalismos, Chazelle tenta ser um pouco mais dedicado nas suas homenagens. Talvez não seja terrivelmente historicamente correto, mas o foco do filme não é ser uma historiografia de Hollywood per se. É mostrar o sangue, suor e lágrimas (esta expressão é menos cliché quando se vê o filme, porque há tudo isso envolvido, mais uma série de drogas e fluídos de toda a espécie) abrangidos na criação de uma indústria nascente, em que tudo é novo e, por isso mesmo, ainda desregulado, não totalmente profissionalizado. O filme abre com uma festa de arromba (há uma introdução mordaz e arisca com um elefante e os seus excrementos e eu avisei que o filme continha muito mais do que poderíamos esperar), que serve tanto para a câmara de Chazelle se exibir e dançar (sim, o jazz continua presente com uma figura que remete para Duke Ellington e que seguimos ao longo de parte do filme), mas também para nos apresentar Nellie LaRoy (Margot Robbie), um cocktail que inclui muitas semelhanças à actriz Clara Bow, e Manny Torres, que se apaixona por Nellie tal como uma criança se apaixona pelas imagens no grande ecrã. Nellie é exuberante, incandescente, e Manny é a traça atraída pela luz — apaixona-se por Nellie enquanto sonho de algo que quer alcançar, sem nunca chegar a ver a pessoa pelo que ela é. Manny é ambicioso, também, ambos partilham o amor pelo cinema e o desejo de participar no acto de fazer filmes, seja como for: ambos conseguem, depois separam-se, encontram-se e reencontram-se. Mas a cidade é feita de sonhos e os deles serão para despedaçar.
uma elegia ao cinema mudo, uma elegia ao cinema pioneiro, dos seus inícios sujos e da arte que se estava a criar nessa altura e que se continuou a criar, sempre, mesmo que modificando-se ao longo do tempo.
O filme tem muito de decadente e degragante, mas atenção à navegação, porque o filme não procura censurar a indústria e quem nela trabalha como sendo um antro maquiavélico, apenas apontar a seedy underbelly de algo que pode, pela passagem do tempo, parecer apenas extremamente glamoroso. Hollywood era tudo isso, mas mais: era pessoas a fazer filmes sem ideias de como tratar os extras, ou proteger a equipa de projéteis, ou ficando dependente de películas e câmaras resistentes, ou o momento incrível e mágico em que tudo se junta para criar um plano perfeito e usar a luz divina do sol como pincel para esta arte nascente. Hollywood nesta altura é o Wild West, é um momento selvagem em que qualquer pessoa se pode tornar no que quiser pela força da sua própria vontade, até que um conjunto complicado de forças acaba por sufocar a fase de exploração e invenção inicial. E essa fase inicial é também uma fase de abertura; Chazelle estava particularmente interessado [The Big Picture] em mostrar como o passar do tempo modificou a planície: depois dos corpos de todas as cores e tamanhos das cenas iniciais, Hollywood acaba por se tornar um espaço de assimilação do normativo (hétero e branco; Hays Code, anyone?) e o espaço para as pessoas que não correspondam a certos padrões — sejam eles raciais ou de classe — começa a tornar-se irrisório. Se começamos com imensas caras, corpos, cores diferentes em perfeito deboche genial e espalhafatoso, terminarmos numa cena completamente sufocante cheia de mini sandwiches de pepino e pessoas puritanas, onde o filme sublinha ideais de todo o tipo de exclusão, desde a exclusão da sexualidade/sensualidades, à de pessoas de etnias demasiado pronunciadas e não-brancas. Isto é colocado em directa contradição com a ideia do cinema como espaço de inclusão que o final do filme enfatiza, porque o amor pelo cinema é o que une tanto quem o faz como quem o vê.
Brad Pitt é talvez um dos meus elementos preferidos do filme — embora seja difícil, escolher, especialmente num filme em que se nota que o Damien Chazelle adora o Singin’ in the Rain (Serenata à Chuva, Stanley Donen, 1952) tanto quanto eu. Pitt é Jack Conrad (inspirado em John Gilbert), primeiro um actor de sucesso, depois uma vítima da mudança tecnológica que é a revolução do som no cinema. Há momentos que citam literalmente o filme de forma hilariante e também preocupante, mas Chazelle não está a fazer um “Singin in the Darker Rain”. Está a fazer uma elegia ao cinema mudo, uma elegia ao cinema pioneiro, dos seus inícios sujos e da arte que se estava a criar nessa altura e que se continuou a criar, sempre, mesmo que modificando-se ao longo do tempo.
A personagem de Brad Pitt está presente em momentos absolutamente deliciosos de comédia total e depois de intensa filosofia sobre o âmago do cinema como arte por direito próprio, na altura vista de maneira bem diferente do que é hoje em dia; da beleza do trabalho em equipa caótico para criar algo belo e imortal; até se confrontar com a sua própria irrelevância que apesar de tudo está ligada à sua futura imortalidade: as carreiras têm momentos de apogeu e declínio, mas o que fica marcado na película é para sempre e quando pegamos num filme antigo, em que todos os que o fizeram já morreram, eles voltam a viver perante nós e dançamos, juntos com estes fantasmas. Haverá melhor apologia do cinema?
O filme termina com uma explosão de virtuosismo que me lembrou o final do Whiplash pelo facto de ser tão shup-up-let-me-solo-for-a-bit. Chazelle pega em todas as citações que esteve a fazer ao Singin’ in the Rain, para nos mostrar o real filme Singin in the Rain como filme já 20 anos removido de todo o drama e loucura que vimos para ser uma versão ao mesmo tempo romântica e cómica que resgata de certa forma, como só o cinema pode fazer, as tragédias das personagens com quem passámos as três horas de Babylon, e é vê-mo-los como parte da história do cinema, tijolos de uma tradição que se vai estender no tempo e manter-se imortalizada e que traz os fantasmas de novo para dançar mas que abraça a inovação e o futuro. A nostalgia e tristeza do que “poderia ter sido” e do que foi bom e mau e incrível mistura-se com os grandes filmes que vieram a seguir e está tudo numa linhagem de pessoas que adoram o cinema e desejam fazer filmes que depois podemos ver e é para todos nós, para cada pessoa na plateia que se pode emocionar com a magia que acontece no ecrã— e isto repete-se sempre que estamos no escuro ou sempre que carregamos no play.
Jack Conrad, o grande apologista do cinema como arte genuína feita para todos, sem elitismo nem exclusão, e com amor pela inovação, teria visto o seu charuto voar ao ver Chazelle conjurar uma montagem que começa por enaltecer os primórdios do cinema (Eadweard Muybridge, irmãos Lumière, Griffith, Chaplin, Cecil B. Demille) para nos trazer excertos de Buñuel e Spielberg, Godard e James Cameron [Terminator 2: Judgment Day (Exterminador Implacável 2 – O Dia do Julgamento, 1991) e Avatar (2009)], Bergman e Steven Lisberger [Tron (1982)]. O cinema é isso tudo e, para Chazelle, essa não podia ser a questão mais fulcral.
★★★★☆