Em 2003, Donna Haraway publicou o texto “The Companion Species Manifesto: Dogs, People, and Significant Otherness” que complementava e aprofundava o seu célebre “Manifesto for Cyborgs: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the 1980s”. Naquele, a filósofa norte-americana utilizava o exemplo da relação homem/mulher/cão/cadela como forma de compreendermos melhor os modos de nos relacionar com o outro não humano. E, em particular, a relação que se estabelece no treino competitivo das parelhas humanas não humanas, indo para lá da mera ideia da submissão/domesticação animal, sublinhado uma mais complexa lógica de engajamento e de “coreografias ontológicas”, expressão de Charis Thompson, relatada a dada altura no texto.
De alguma maneira, Eo (2022) de Jerzy Skolimowski parece corroborar esta ideia de coreografia humana/não humana, apresentando-nos pelo menos dois caminhos alternativos. O primeiro, que à primeira vista é objeto de censura social: é a relação entre o burro Eo e a sua companheira humana, no contexto de um circo. São os primeiros momentos do filme. O animal é levado – pois os circos com animais são proibidos – e aí, a ironia do filme sedimenta-se pois nessa separação de um espaço institucionalizado de “ameaça”, “degradação”, “domesticação” que se vem a revelar como a separação trágica que inicia Eo no seu novo – e ainda mais trágico – caminho. O que vamos assistir é à sucessão de novas coreografias humanas/não humanas, de degradação, desinteresse, ocasional curiosidade, activadas pelo caminho que Eo é obrigado a seguir ou que, em ocasiões, segue pelas suas próprias patas.
Talvez por isso, este seja uma obra tão triste, onde saltamos entre o olhar e a memória de um animal num mundo onde este é excepção.
Qualquer cinéfilo reconhecerá no filme de Skolimowski o périplo asinino da obra prima, Au Hazard Balthazar (Peregrinação Exemplar, 1966), filme que o realizador polaco admite ter sido o único que o fez chorar no cinema até hoje. É inegável que há aqui, como antes no filme de Robert Bresson, uma certa aura de santidade – talvez hoje sem a metáfora religiosa – no caminho seguido pelo animal. Mais até do que crueldade humana, creio que Skolimowski nos mostra nos planos do olhar de Eo uma profunda indiferença ante os entusiasmos e as fúrias humanas. Também por isso me veio à memória o excelente documentário de Denis Cotê, Bestiaire (2012), um filme onde o homem olha o animal, e o animal olha o homem, nós cientes da barreira intransponível entre um e o outro. Algo que Giorgio Agamben teorizou a parte da ideia de “o aberto”.
Mas será esse “aberto” o espaço apropriado para o definido pela cinemática experiência de Lev Kuleshov? Numa entrevista à Mubi, Skolimowski admite que os grandes planos do olhar de Eo, na sua impassibilidade, ajudam a depositar um conjunto de ideias sobre o mundo. E mais, Eo encena em certos momentos a subjectividade ótica do animal, o seu ponto de vista, e aquilo que poderia ser acedermos à sua memória afectiva. Talvez por isso, este seja uma obra tão triste, onde saltamos entre o olhar e a memória de um animal num mundo onde este é excepção. Um olhar animal sobre um mundo, que agora, cremos decadente, perigoso, incompreensível, onde tudo caminha para um fim. Ainda na referida entrevista, diz o realizador polaco: “”I noticed a significant difference: that the same thing, the same object, the same human faces, the same actions looks slightly different when shot objectively and when shot as a donkey’s point of view. It’s a mystery of cinema.”
Skolimowski é um cineasta audaz nessa vontade de transformação. E por isso não temos só esta via crucis do animal, um certo ponto de vista sobre a degradação humana e a miséria animal. O uso do vermelho sangue, de uma câmara que paira e desliza sobre os diferentes espaços da terra [Carlos Reygadas havia visitado este olhar cósmico, em Post Tenebras Lux (2012)], os desfoques, contribuem para, simultaneamente, entrarmos numa fábula telúrica (magnífica a sequência da caça na floresta) e conceber uma estratégia cinematográfica de desdobramento ontológico. Esta posição de um “fora” do humano, permite a Skolimowski e à sua co-argumentista/produtora, Ewa Piaskowska também satirizar e trabalhar a ideia do ridículo do humano nos seus esforços políticos, nos seus momentos de celebração, nas suas lutas, crimes e acessos de raiva ou ternura.
Em Essential Killing (Essential Killing – Matar para Viver, 2010), de alguma fora, podíamos já observar um certo desejo de descentramento do seu cinema. Uma fuga às palavras, “um caminho inóspito, não psicologizado, de progressiva entrada de um homem num bestiário (…) a preparação para a morte [que] não vem antes de uma vida verdadeiramente livre: a animal.” Mais de uma década depois, o Júri do festival de Cannes, decide distinguir este Eo, talvez lhe reconhecendo esta ideia de fuga que apenas se completa na encenação especulativa de um olhar a partir de um fora antropocêntrico. Eo posiciona-se assim num ponto de vista terminal e experimental, um olhar a partir de uma ideia de conclusão de um paradigma.
★★★★☆