Não é fácil para um cineasta quando resolve instalar o seu ponto de vista num compromisso entre aquele que cheira o toque da perversão e o que, ao mesmo tempo, observa de forma crítica e vigilante um determinado estado de coisas. Já era assim, de uma certa forma, com Gräns (Na Fronteira, 2018), no qual as reflexões sobre as questões de género surgiam soterradas pelo imaginário mundo de trolls e body horror. A mesma coisa acontece com Holy Spider (2022), o mais recente filme do iraniano-dinamarquês, Ali Abbasi.

Numa primeira camada, este é um filme de terror baseado em factos verídicos: entre 2000 e 2001, Saeed Hanaei, pedreiro de profissão e veterano da Guerra Irão-Iraque, assassinou 16 prostitutas na cidade santa de Mashhad, tendo ficado conhecido com a alcunha de “Spider Killer”. Homem casado e muito religioso, as suas motivações ligavam-se à suposta imoralidade da prostituição e ao convencimento que lhe cabia a tarefa de limpeza moral da sociedade iraniana.
Trata-se um filme algo bipolar que, ao mesmo tempo que se instala nesse ambiente de excessiva exploitation, depois quer manter uma certa distância para desenhar um panorama geral.
Abassi pegou neste projeto em 2016 e tentou filmar no Irão, mais tarde na Turquia, sem sucesso, com problemas de interferências governamentais e restrições à Covid. Só recentemente consegui filmar na Jordânia. Também o casting teve os seus problemas. A actriz escolhida teve receio de representar sem hijabe e a diretora de casting, Zar Amir-Ebrahimi, assumiu o papel principal, tendo vencido o ano passado, pela primeira vez na história do cinema iraniano, o prémio de melhor atriz principal em Cannes.
Estas “atribulações” ajudam a compreender a delicadeza do tema na teocracia iraniana, ainda para mais pelo facto de, após a prisão do assassino, vários líderes religiosos terem saído em defesa de um homem que estava apenas a “limpar” a sociedade do pecado e da depravação. Abassi explora bastante bem essa dimensão e aqui temos a segunda camada de Holy Spider: um filme que pretende, através deste caso, abordar a misoginia da sociedade patriarcal iraniana. Não apenas encenando esse derradeiro acto em que o prisioneiro é visto por muitos como herói (a esse respeito, a cena final é a mais eloquente e imaginativa e talvez a melhor do filme), mas sobretudo pelas dificuldades que a personagem de Zar Amir-Ebrahimi, a jornalista Rahimi, que vem de Teerão para investigar os homicídios, encontra. Em particular na polícia que, não apenas desvaloriza o seu passado em que denunciou o seu patrão por assédio, como considera que o assassino está, de alguma forma, a fazer o trabalho sujo da própria polícia.
Como Abassi concilia estes dois universos? Nem sempre da melhor maneira. Holy Spider é um filme procedimental sobre um serial killer. Demasiado procedimental. Isto é, começamos no mistério e numa ideia de repulsa, como nas cenas de assassinato em Frenzy (Frenzy – Perigo na Noite, 1972) de Hitchcock (até o modus operandi de Hanaei e da personagem de Barry Foster se assemelham). Mas, rapidamente, a mão de Abassi foge para a mostração algo inconsequente da violência, em que as mulheres assassinadas se vão sucedendo, com planos muitas vezes próximos demais (vide acima), como se a distância da sua câmara denunciasse um gosto pelo “espetáculo do crime”. Começamos em Frenzy e, subitamente, estamos no grotesco de Der goldene Handschuh (O Bar Luva Dourada, 2019) de Fatih Akin, sem que as vítimas tenham algo a acrescentar a não ser serem apanhadas pelas mãos do bruto pedreiro que as asfixia com os seus lenços.
Mas há, como referi no título, um certo dilema da distância para Abassi. Trata-se um filme algo bipolar que, ao mesmo tempo que se instala nesse ambiente de excessiva exploitation, depois quer manter uma certa distância para desenhar um panorama geral. É certo que muito longe da subtileza de Jafar Panahi e a forma como compunha o seu circular mosaico da sociedade iraniana opressora das mulheres [vide Dayereh (O Círculo, 2000)]. Mas, como é aliás tradição no cinema iraniano recente em que as personagens particulares denunciam um estado de coisas social, religioso e político [por exemplo, a lei, a polícia e o submundo da droga em Metri shesh va nim (A Lei de Teerão, 2019) de Saeed Roustayi], o assassino é apenas o lado mais evidente de uma sistemática aplicação da violência. Talvez por isso, desde os primeiros minutos saibamos quem é o assassino: a sua face desvelada é um símbolo dessa disseminação do ódio às claras.
Pena é que, pesadas as coisas, Holy Spider passe mais tempo a aproximar do que a afastar, que estejamos diante de uma filme de terror com um substrato de realismo social e não o inverso, que se invista mais no frisson dos trejeitos da morte do que na elaboração mais complexa dessa, nas palavras do realizador, “sociedade serial killer”.
★★★☆☆