L’âge ne vous protège pas des dangers de l’amour. Mais l’amour, dans une certaine mesure, vous protège des dangers de l’âge.
Jeanne Moreau
O que é que leva uma mulher no auge da sua carreira de atriz, aliás uma das mais célebres da Nouvelle Vague, senão mesmo do cinema francês de qualquer época, a passar para o outro lado da câmara, em meados dos anos 1970? Será a frustração face a uma indústria cinematográfica dominada por homens, que trata os corpos das atrizes como mercadorias, desde que elas ainda não tenham passado do “prazo de validade”? Ou será antes o fascínio por essa arte de “revelação pela luz” que é o cinema, capaz de proteger do esquecimento e de prometer a eternidade a quem nele se reflete, fascínio esse que anda de mãos dadas com o desejo de assumir essa qualidade de “fotogenia” que emana de um rosto captado pela objetiva, e faz dele um mito quando projetado no grande ecrã?
A primeira hipótese é a que reivindica o documentário Sois belle et tais-toi (filmado em 1975-1977, mas estreado apenas em 1981), manifesto feminista realizado por Delphine Seyrig, acompanhada por Carole Roussopoulos como diretora de fotografia e Iona Wieder na montagem, o qual, baseando-se numa série de entrevistas com cerca de vinte atrizes francesas (Juliet Berto, Maria Schneider, Anne Wiazemsky…) e americanas (Ellen Burstyn, Jane Fonda, Shirley MacLaine…), traça um retrato coletivo e bastante sombrio da profissão, denunciando o sexismos e os estereótipos de que são vítimas as mulheres na indústria cinematográfica da época. A outra hipótese é a de um amor pelo cinema, condolente mas não cego, que proclama Lumière (1976), a primeira realização de Jeanne Moreau que, posicionando-se simultaneamente atrás e à frente da câmara, examina os bastidores do cinema através das ficções sentimentais e profissionais de quatro amigas atrizes (interpretadas por Caroline Cartier, Francine Racette, Lucia Bosè e a própria Jeanne Moreau).
Nestas três longas, Jeanne Moreau filma histórias de vida conjugadas no feminino, retratos de mulheres de várias idades (adolescência, maturidade e velhice), cujas carreiras sob as luzes da ribalta se confundem por vezes com a vivacidade cintilante das suas personalidades.
Embora tenham colaborado várias vezes com os mesmos cineastas (François Truffaut, Jacques Demy, Marguerite Duras), Delphine Seyrig e Jeanne Moreau só se cruzaram na tela uma vez, no filme Le jardin qui bascule (1975) de Guy Gilles, surgindo numa única cena sentadas à mesa ao lado de Patrick Jouané, o ator gilliano por excelência. Nesse mesmo ano, ambas decidem passar à realização, seguindo o exemplo de Anna Karina e o seu Vivre ensemble (1973): com o coletivo feminista Les Insoumuses, Seyrig começa por filmar Maso et Miso vont en bateau (1975) e Scum Manifesto (1976), enquanto Moreau, incentivada por Orson Welles, se lança na escrita da sua primeira ficção.
Filmados praticamente na mesma época, há já quase 50 anos, Sois belle et tais-toi e Lumière acabam de estrear nos cinemas em França, em belas cópias restauradas, respetivamente, pela BnF em colaboração com o Centre audiovisuel Simone de Beauvoir, e pela Fondation Jeanne Moreau com a distribuidora Carlotta Films. Enquanto o filme de Seyrig se tornou uma obra de culto do cinema feminista e militante após o seu lançamento nos anos 1980, o de Moreau, assim como as suas outras duas longas-metragens realizadas em 1979 e 1983, mantiveram-se invisíveis durante décadas, por falta de cópias em boas condições. Uma lacuna finalmente colmatada: desde a sua exibição, em outubro 2022, no Festival Lumière de Lyon – do qual não podemos deixar de saudar o programa « Histoire permanente des femmes cinéastes », dedicado em 2022 à sueca Mai Zetterling, após ter posto em destaque os seis filmes realizados pela atriz japonesa Kinuyo Tanaka –, esperávamos com impaciência pela oportunidade de descobrir a última faceta oculta do “turbilhão” Jeanne Moreau, atriz no palco como no grande ecrã, cantora e letrista, musa e amante (Louis Malle, Pierre Cardin, Guy Gilles)… E também argumentista e realizadora, tendo assinado três filmes : duas ficções com laivos de autobiografia, uma (Lumière) sobre a arte das atrizes (malabarismo entre os papéis de mãe, esposa, amante e amiga, além de intérprete), a outra [L’Adolescente (1979)], crónica de um rito de passagem que acompanha a transição para a idade adulta de uma adolescente, num cenário rural idílico, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial; por fim, um documentário sobre um dos mitos fundadores do cinema, Lillian Gish (1983), a eterna criança do cinema mudo revelada por D. W. Griffith.
Nestas três longas, Jeanne Moreau filma histórias de vida conjugadas no feminino, retratos de mulheres de várias idades (adolescência, maturidade e velhice), cujas carreiras sob as luzes da ribalta se confundem por vezes com a vivacidade cintilante das suas personalidades. Este aspeto é particularmente evidente em Lumière e Lillian Gish, cada um à sua maneira convocando diretamente o mundo do cinema, seja situando a intriga nos bastidores de uma rodagem em consequência das profissões das personagens, seja relembrando, graças a testemunhos e imagens de arquivo, a “fábrica da sua história”. Por outro lado, a memória do cinema estaria quase ausente de L’Adolescente, não fosse a presença no elenco, no papel central da avó da protagonista, de uma Simone Signoret marcada pelo tempo mas ainda radiante, cuja vida se confunde também ela com a história do cinema francês no século XX.
Acompanhemos, então, as protagonistas de cada filme por ordem de idade, mesmo que isso signifique contornar a cronologia das filmagens: da jovem Marie (Laetitia Chauveau, no seu único papel para o cinema) à nonagenária Lillian Gish (que conta uma centena de filmes, entre 1912 e 1987), passando por Sarah (Jeanne Moreau, então com 48 anos) e o seu grupo de amigas, iremos ver como, por detrás de uma realização por vezes ainda algo hesitante no plano formal, mas já muito segura do que tem para dizer, se afirma uma visão sensível e iluminada da feminilidade.
L’Adolescente é Marie, treze anos, loura de olhos azuis, cujo corpo começa a sofrer as primeiras transformações associadas à puberdade. Encontramo-la num 14 de julho de 1939 ainda livre de preocupações, com pressa de partir de Paris rumo à aldeia na Auvergne onde vive a sua avó paterna, como é costume a cada verão. Embora a história não seja verdadeiramente autobiográfica, são precisamente as memórias da sua juventude que a realizadora revisita (como Jean Eustache em Mes petites amoureuses, dois anos antes), evocando sobretudo as férias no campo em casa da avó, numa dessas aldeias onde todos se conhecem e partilham o quotidiano pautado pelo ritmo da natureza. Co-escrito pela romancista francesa Henriette Jelinek, o argumento de L’Adolescente aborda “a perigosa passagem da infância à feminilidade, o momento em que a consciência desperta, em que a linguagem dos adultos se torna clara em vez de parecer codificada”, nas palavras da realizadora. Único dos seus três filmes em que Moreau não figura enquanto atriz, é-lhe ainda assim reservado o papel de narradora, sendo a sua voz rouca e hipnotizante ouvida em várias ocasiões, sustentando simultaneamente o lado místico do rito de passagem e uma espécie de clarividência em relação ao futuro, como sugere a voz off no epílogo do filme: “La guerre était déclarée et avec elle de multiples déchirements… C’en était fini de la douceur de vivre.”
E se é verdade que, como diz Sarah a dada altura, “não se pode ter tudo”, Jeanne Moreau mostra-nos através das interpretações das suas mulheres-atrizes, simultaneamente emancipadas e frágeis, que pelo menos somos livres de “querer tudo”.
Adotando o ponto de vista da protagonista, Jeanne Moreau filma as primeiras afrontas a essa “douceur de vivre” que inicialmente envolve a existência de Marie: o seu primeiro desgosto de amor e a sua primeira menstruação, a tirania do seu pai e o adultério da mãe, as coscuvilhices dos habitantes da aldeia sobre aqueles cujos comportamentos fogem à norma, a morte que ameaça bater à porta dos mais velhos, inclusive da sua querida avó… O primeiro desgosto amoroso de Marie é o médico récem-chegado à povoação (Francis Huster), um jovem judeu que, no entanto, prefere a mãe desta, Eva [Edith Clever, em breve a La Marquise d’O (A Marquesa d’O, 1976), de Éric Rohmer], uma imigrante holandesa que, embora ainda apaixonada pelo seu marido, se rebela por vezes contra a sexualidade conjugal a que ele a submete. Apenas insinuada durante grande parte do filme, o “caso” entre o médico e Eva acaba por constituir um refúgio para os dois únicos elementos estrangeiros à aldeia, que são também os primeiros a tremer perante a ascensão do nazismo.
Encabeçando um elenco repleto de grandes nomes masculinos do cinema e do teatro franceses (além de Huster, o filme conta também com as participações de Jacques Weber, Jean-François Balmer, Roger Blin, Michel Blanc), encontra-se essa “grande avó de cinema” que é Simone Signoret, a sua sublime cabeleira loura substituída aqui por um “capacete de prata”, que marca a passagem do tempo desde a sua consagração no filme de Jacques Becker, Casque d’or (Aquela loira, 1951). Ela é a principal confidente de Marie, a testemunha das suas “dores de crescimento” e parceira das feitiçarias feitas ao luar; é também quem lhe explica o que é ser mulher num mundo de homens, e que lhe ensina que por vezes é preciso saber ser “cega, surda e muda”, nomeadamente para proteger a reputação da sua mãe e o casamento dos seus pais. Uma frase em especial ficou-me gravada na memória: “Tu não sabes o que fazer com o teu corpo” (« Tu ne sais pas quoi faire avec ton corps »), diz a avó, corpo vivido que teve de sofrer para conquistar o seu lugar na sociedade, para a neta magricela, que ainda não sabe qual será o seu. Através da sua tríade de personagens em três fases distintas das suas vidas – avó Signoret, mãe-esposa Clever e neta Chaveau –, Jeanne Moreau tece um enredo onde o não-dito e os comportamentos desviantes são tão constitutivos da feminilidade quanto os papéis normativos que lhes queremos atribuir.
Em Lumière, primeira realização de Jeanne Moreau, mas segunda se seguirmos as “idades” do seu cinema feminino, trata-se precisamente de abordar todos esses papéis que as mulheres – atrizes, ainda por cima – devem desempenhar. O enredo gira em torno de um “bando das quatro” com traços rivettianos: a mais velha, Sarah (a própria Moreau), uma atriz famosa e realizada na sua vida de mulher independente, mas que se vê dividida entre o fim amargo do seu relacionamento com um jovem realizador (Francis Huster), a excitação inicial no seu caso com um escritor alemão (Bruno Ganz) e a perda de um amigo de longa data (François Simon); Laura (Lucia Bosè), a amiga italiana de Sarah, que lamenta ter sacrificado a sua identidade em nome da sua família, para nada mais ser que “a filha do [seu] pai, a esposa do [seu] marido, a mãe dos [seus] filhos”; Julienne (Francine Racette), que por sua vez sacrificou o seu casamento e abdicou de ver o seu filho para vingar no mundo do cinema; por fim, Caroline (Cartier), aspirante a atriz que luta por ser escolhida para um papel por outra razão além do seu corpo, como o seu namorado ciumento e abusivo insiste em sublinhar.
No início do filme, encontramos o quarteto de férias na casa provençal de Sarah, onde desfrutam de banhos na piscina, banquetes e sestas no jardim, passeio pelo campo, confidências e cantorias. Entregues ao ócio sob a luz morna do Sul, julgamos assistir ao início de algo e, contudo, trata-se já do fim, como esclarece uma voz off – novamente a de Moreau –, operando logo de seguida um flashback que nos transporta para Paris um ano antes, quando “tudo mudou em menos de uma semana”.
Daí em diante, são as luzes dos projetores que iluminam sucessivamente os dramas de cada uma das atrizes que orbitam à volta de Sarah, cujo quotidiano acompanhamos, entre filmagens e encontros citadinos, até à noite da cerimónia em que será galardoada com um prémio pela sua carreira. Nessa noite, rodeada pelas suas colegas de profissão, desejada pelos seus amantes antigo e futuro, Sarah não vê o sofrimento de um dos seus amigos mais queridos. Ao amanhecer, enquanto passeia pelas ruas de Paris ao lado do homem com quem acabou de passar a noite e para quem recita o início da L’Heure du loup (1968) de Ingmar Bergman, um outro homem decide pôr um fim à sua vida. É assim, “na hora em que a noite se transforma em dia (…), em que os fantasmas e os demónios estão no auge do seu poder”, que um telefonema virá anunciar uma nova mudança na tonalidade luminosa que até então envolvia Sarah e as suas amigas, também elas levadas a reconsiderar as suas vidas. E se é verdade que, como diz Sarah a dada altura, “não se pode ter tudo”, Jeanne Moreau mostra-nos através das interpretações das suas mulheres-atrizes, simultaneamente emancipadas e frágeis, que pelo menos somos livres de “querer tudo”. Já é um começo.
“Curiosidade” é a resposta que Lillian Gish dá a Jeanne Moreau quando esta lhe pergunta, no fim do documentário-retrato que lhe consagra em 1983, qual é o segredo do seu percurso excecional na história do cinema (ocasião de lembrar a sua famosa citação: “As long as you are curious, you will never be bored.”). É esse percurso que as duas atrizes evocam durante uma hora, num “tête-à-tête” filmado no apartamento nova-iorquino de Lillian Gish: dois anos mais velha que o cinematógrafo Lumière, a atriz relembra a sua estreia nos palcos aos oito anos, a sua infâncias passada em tournées com a sua mãe e irmã Dorothy, ambas atrizes, e o seu primeiro papel no grande ecrã, em 1912; debruça-se de seguida sobre o seu encontro decisivo com D. W. Griffith, desde a época dos one reels até aos primeiros blockbusters The Birth of a Nation (O Nascimento de uma Nação, 1915) e Intolerance (Intolerância, 1916), evoca a sua breve experiência de realização – projeto rapidamente posto de parte, tendo Gish declarado em várias entrevistas que a realização era “um trabalho de homem” – e conta ainda várias curiosidades sobre as filmagens em que convivera com vedetas como Mary Pickford, Douglas Fairbanks ou Rudolf Valentino. Embora a atriz nunca abandone os palcos e continue a aparecer com regularidade em vários filmes até 1987, o documentário interrompe-se com The Wind (O Vento, 1928) de Victor Sjöström, último papel mudo interpretado por Lillian Gish.
Ainda que a entrevista siga uma ordem cronológica e tenha um cunho abertamente didático, as duas atrizes aproveitam igualmente para partilhar confidências sobre as suas relações com os seus “mestres de cinema” (Griffith para a americana, Malle para a francesa) e sobre as suas vidas intimas (Gish que decidiu não se casar ou ter filhos, Moreau que confessa nunca ter desejado o seu). Além do que contam as vozes, as trocas de olhares entre ambas são um verdadeiro regalo: o do Moreu, testemunhando um veneração sincera, o de Gish, intemporal e animado pela sua curiosidade infantil de sempre; a esse respeito, a realizadora não deixa de citar Truffaut a propósito de Lillian Gish e dos seus “dois grandes olhos que tudo veem [e] nos dizem que o século XX passou num ápice…”.
Lillian Gish deveria ter sido o primeiro episódio de uma série de retratos-tributos que Jeanne Moreau queria dedicar a estrelas de Hollywood como Bette Davis, Ava Gardner, Elizabeth Taylor ou Jane Fonda; porém, o projeto não pôde ser levado a cabo por falta de financiamentos, à semelhança de uma adaptação do romance Solstice da americana Joyce Carole Oates, que certamente teria sido também um belo filme de e sobre mulheres. Teremos, portanto, de nos contentar com estas três realizações cheias de promessas, mesmo que por vezes Moreau pareça ainda estar à procura do seu estilo de realização: em L’Adolescente, o classicismo da mise en scène combina bem com a atmosfera bucólica com toques impressionistas, enquanto Lumière exibe a sua modernidade sob o signo de Bergman e de Rosselini, ao mesmo tempo que explora uma certa dimensão meta-fílmica. E quase me esquecia de mencionar o quanto a música é importante nestes filmes: além das “chansons de toile” (género de poema lírico medieval originário do norte da França) que as quatro amigas trauteiam junto à piscina, no início de Lumière, é o argentino Astor Piazzolla quem assina a banda sonora original, enquanto Philipe Sarde compõe o tema musical de L’Adolescente, interpretado no filme pela personagem de Marie, e mais tarde celebrizado numa versão cantada em dueto por Jeanne Moreau e Yves Duteil. Enfim, com Lillian Gish, os três filmes de Jeanne Moreau confirmam o seu amor pela profissão de atriz – um desses amores capazes de proteger contra os “perigos da idade”, ou seja, contra o esquecimento – e celebram igualmente as mulheres livres de inventar os seus próprios papéis e de iluminar os seus próprios caminhos.