“Sabes como eu sei quando gosto de alguém?… Quando a mato na minha cabeça.”
Escrever sobre um filme português, especialmente num contexto de festival internacional, é para mim o exímio exercício de distanciamento que eu acolho. No entanto, o projecto-ambição de João Canijo, um díptico de miserabilidade, todo ele a carregar aos ombros o peso da história espelhada a acontecer na mesma linha temporal – dois pontos de vista que se encontram ou não e quando – faz questão de me ajudar mostrando-me como não é para ali chamado tanto esforço. Antes de qualquer impressão, os filmes estão já à tona do encontro com o espectador. Eu não precisei de me afastar, eles já o faziam.
Mal Viver vem primeiro. Olhando para a folha de visionamentos de imprensa parece difícil perdê-lo. É, afinal, um filme seleccionado para a Competição da Berlinale, ao contrário do seu suplemento, Viver Mal, alocado na secção paralela Encounters. O festival estava efectivamente a dizer-nos que este campo-contracampo não era para ser ignorado. A partir de um plano geral e estabelecedor de uma piscina na traseira de um hotel de uma família em Ofir, perto do Porto, onde se passará a trama, três gerações de mulheres da mesma família juntam-se pela primeira vez em muito tempo e a tragédia instala-se. Isoladas e enclausuradas na arquitectura-azulejo de João Canijo, profundamente horizontal, mães e filhas, filhas e mães, ora habitam o ecrã ou encostam-se às suas margens na esperança de eventualmente sair do centro da “dramaturgia da violência” Canijeana de que Daniel Ribas falava na sua tese. Em Viver Mal, esta espalha-se também para as vidas dos hóspedes que se encontram naquele hotel. É parasitário, virulento, inconfundível com a noção que temos da nossa identidade nacional. Mais uma vez, mães e filhas (filho aqui também), filhas e mães. O mesmo retrato do gráfico do primeiro, e sempre a mesma gangrena da possessão de almas que Portugal continua a isolar, fazendo-o com tanto fulgor que até parece conseguir cimentar ainda mais essa turbulência.
Insuportavelmente conscientes de si mesmos, tanto que o sentimos no corpo, são amostras laboratoriais do desenho-imagem da família enquanto lugar de opressão, impossível de abandonar por completo. E permanece sempre, e sem explicação, na constância daquilo que já efervesceu.
O visionamento de imprensa do primeiro revela-se um poço de honestidade. A saturação surge cedo. Não estamos a ver James Benning. O formalismo deste cinema duracional não leva ninguém à meditação, a uma viagem interior. Não deveria o cinema ser sempre essa viagem? Quer habite apenas a superfície narrativa ou caso consiga penetrar o interior da pele? Cá fora, as opiniões, que venho a descobrir mais tarde profundamente divididas, falam do “amado cinema português” sempre só desbloqueado nos maiores festivais pelo mundo. Mais tarde no visionamento público do segundo filme, o director do festival Carlo Chatrian ecoa o mesmo sentimento: “(…) abraçamos a tradição do amado cinema português em Berlim”. Há algo que o olho internacional vê. Havia sempre outros filmes a ver a seguir, então nunca pude ficar muito tempo a discuti-los. Mas das duas vezes, e ainda sob o efeito das imagens de Leonor Teles – colaboração inesperada e bem-vinda – questiono-me qual será o propósito do fazer de filmes que entorpecem e aniquilam, e cuja simples reverberação só confirma o esvaziamento. Não há melhor forma de o explicar do que dizer que me sentia bloqueada.
É momento então para perguntar, porquê ver sofrimento que não cessa só porque sim? A determinada altura só consigo pensar, ’porque é que estas pessoas não se desprendem só umas das outras?’. Insuportavelmente conscientes de si mesmos, tanto que o sentimos no corpo, são amostras laboratoriais do desenho-imagem da família enquanto lugar de opressão, impossível de abandonar por completo. E permanece sempre, e sem explicação, na constância daquilo que já efervesceu. E avança, de vez em quando, para o reino da paródia quando podia facilmente receber o espectador na mais ampla das dimensões purificadoras.
A manhã seguinte chega e tudo o que consigo dizer quando me perguntam sobre os filmes é que os vejam sabendo para aquilo a que vão. Uso palavras como o lodo nacional, um teste de resistência. Tão pejorativo quanto elogioso. O problema no meio disto tudo é…onde está a rebelião? Canijo não faz o mesmo de sempre. Faz aqui o mesmo de sempre através de algo diferente. São filmes sobre o processo de os fazer, afinal. A questão deveria ser, desde quando é que a revolução é o mesmo que a reforma? Serei só eu que sinto a necessidade que os filmes teorizem ou mapeiem? Estacionados dentro do barulho cinemático da falta de ondas tonais, com o plateau a servir de estrutura para estabelecer um vácuo primeiro emocional e depois transformativo que os nadas dos diálogos sobrepostos conduzem (um pesadelo para quem não compreende português ou assim mo foi dito; as legendas escolhem o que traduzem), a única direcção é a tragédia e nem a agulha desta salta quando se lhe vê a face. Ao digerir tudo isto, o olhar duplo é tão curioso como é sádico como é apenas estrutural e acaba por passar por cima de uma possível iluminação (da qual ainda estou à espera).
Em toda a sua sobriedade, a crise de Mal Viver é-me confirmada nas palavras que retirei do próprio filme. “Conversa de merda”, alguém diz. Sim, concordo. Num misto de castrações óbvias e micro-agressões passivas sobre a natureza das mulheres Portuguesas na sociedade, que passam o tempo escondidas na entrada de portas ou corredores a ouvir e supor, a ferirem-se e a deixarem-se sê-lo, muitas ficções analisadas lhes posso atribuir. Vê-se que há um esqueleto de inteligência nas veias do filme, vencedor do prémio do Júri (resultado avassalador para um filme tão promissor), mas tudo o que resta do meu tempo passado em frente àquelas pessoas é uma tentativa de compreensão (?) da misoginia básica e superficial, e tão abrasiva que me deixou indiferente. Em essência, o primeiro filme realiza o que apregoa. O segundo reforça o primeiro com o seu dinamismo.
Emprestando o melhor pedaço de diálogo dos dois filmes, matei-os com a minha cabeça porque tenho a capacidade para nutrir um gosto por eles no final, e não quero. Sofremos de um síndrome de Estocolmo no nosso cinema… é tanta a secura do melodrama… uma actriz pára para a próxima falar, o trabalho de câmara é tão recto e estacionário, repleto de reflexos, espelhos e janelas (Canijo e Teles olham e olham, mas será que vêem?). E tudo o que estes parecem fazer é diminuir e miniaturizar quem neles existe. Alguma vez vamos parar de amar o que nos faz mal? Quando vamos conjurar os labirintos híbridos que realmente compõem as faltas de comunicação entre as pessoas nas nossas vidas e onde o comentário pulsa do silêncio dos nossos gestos? Nada deste projecto é sobre o desamor entre as pessoas. É, ao invés, sobre a cerâmica que cobre as paredes do cinema português que se continua a perder para mim.