Imaginem uma Marilyn Monroe com 80 km de comprimento, deitada de lado, meia enterrada no cimo de uma montanha esboroada, o cume da cordilheira de Santa Mónica, a mata, as flores e as serpentes a contorcer-se sobre o seu corpo, com neblina e sonhos em gestação entre cada curva.
David Thompson a descrever Mulholland Drive (2001) em Thoughts on Hollywood and Its Ghosts
Mulholland Drive nasceu dos cacos de uma ideia para uma série de televisão, da qual só sobrou um episódio piloto encomendado pela ABC, que se apartou do projecto, pois considerou o material sem ritmo e violento, para além de lhe faltarem elementos reconhecíveis: uma nova Twin Peaks, série de 1990, emitida pela mesma ABC. Foi o produtor Alain Sarde quem se interessou por aquelas imagens e desafiou Lynch a rodar o que faltava. O cineasta produziu outras tantas imagens novas sobre a indústria dos sonhos, propôs-se contar a história de Hollywood a partir de Mulholland Drive: uma estrada de 80 quilómetros, ponto privilegiado de observação de narrativas, episódios e identidades, fantasias e fantasmas que se confundem, ambições e memórias, controlo e transgressões, que rebentam muitas vezes numa violência insuportável, em morte.
Na primeira sequência, um Cadillac preto desce vagarosamente, na noite escura, uma estrada perdida que descobriremos tratar-se de Mulholland Drive, uma variante gigante que abraça a cidade de Los Angeles e que se constituirá como uma metáfora para a viagem ao nosso inconsciente, no acesso aos nossos desejos e motivações, projectados no grande ecrã pela indústria de Hollywood. Um plano sobre a cidade mostrar-nos-á um emaranhado de pontos iluminados, que parecem os terminais nervosos do nosso cérebro, as suas ligações e estímulos. A sequência apresentar-nos-á uma das protagonistas, que começamos por designar por Rita (Laura Harring) e que o espectador passará a associar à noite, à obscuridade. Alternado com o ritmo lento do Cadillac, surge uma aceleração brusca de outro veículo, onde viajam vários jovens em euforia. O momento do embate violento impele a um paralelo com outras histórias de Hollywood, como a colisão mortal de James Dean, em que o acidente rodoviário assume uma projecção fertilizadora, que supera o seu âmbito destrutivo. Aqui, o embate é um paroxismo que abre a porta para a primeira de várias tocas de coelho, com que acederemos às narrativas do mundo interior proposto pelo filme. A sequência termina com um diálogo entre dois detectives. A conversa em tom irónico e quase indiferente, para lá de insinuar que a paródia será uma das ferramentas do filme, coloca o actor Robert Forster em cena, uma garantia da representação da memória de Hollywood: de filmes a fecharem o período clássico, como Reflections in a Golden Eye (Reflexos num Olho Dourado, 1967), de John Huston e Justine (1969) de George Cukor, mas também da bandeira do Cinema Directo – Medium Cool (América, América Para Onde Vais?, 1969) de Haskell Wexler, em que Forster interpretava o homem da câmara, em colisão com as feridas do Vietname e outros traumas da América e que culminava com os tumultos que cercaram a convenção do Partido Democrata de 1968.
A sequência seguinte estabelece-se num restaurante, o Winkie’s, localizado em Sunset Boulevard, a artéria urbana que rasga Los Angeles, da baixa da cidade até ao Pacífico e que remete para as memórias de Hollywood, fixadas por Billy Wilder em 1950. Sunset Boulverard (Crepúsculo dos Deuses, 1950) juntava uma diva decadente do mudo, Gloria Swanson, e o seu fiel mordomo, Erich von Stroheim (que fora um dos cineastas iconoclastas dessa Hollywood selvagem e anterior ao código Hays), a um guionista ambicioso, interpretado por William Holden, que acabava pescado da piscina do mausoléu da outrora deusa Swanson. Dois homens estão, então, sentados numa das mesas do Winkie’s. Um deles conta um sonho em que o outro homem também aparece. No sonho, nem é dia nem é noite, é lusco-fusco, uma fusão do dia com a noite. É um sonho que provoca medo, e o homem que conta o sonho sabe porquê. Há um homem nas traseiras daquele restaurante: é ele quem está a apavorá-lo, ele vê o seu rosto no sonho e espera nunca mais o ver, fora daquele sonho. Os dois homens saem do restaurante para verificar se o homem está naquele lugar, nas traseiras. Há uma pequena escada no exterior, que os dois homens descem. A atmosfera da banda sonora, como uma névoa, prepara-nos. De repente, uma espécie de assobio e um ruído assoma em simultâneo com um rosto aterrador que invade por um instante o enquadramento. O homem que contara o sonho colapsa, desmaia nos braços do outro. A criatura desaparece. Naquele lugar, nas traseiras de um restaurante em Sunset Boulevard, estão concentrados numa criatura todos os medos, todas as angústias de Hollywood, todos os assombros de milhares de carreiras desfeitas, na terra dos sonhos e dos pesadelos ocultos.
Na ligação entre sequências, Lynch colocou uma pequena cena estabelecida nas suas habituais salas interiores, reconhecíveis desde os labirintos delimitados por cortinas de veludo de Twin Peaks. São lugares onde os personagens se desdobram em duplos e onde se movimentam criaturas mágicas, como o anão de Mulholland Drive, que gere este universo oculto de realidades paralelas, comandadas pelo onírico. Estes espaços dispõem-se como possibilidades de circulação de ficções, que ameaçam sobrepor-se à realidade das personagens. Tal como em filmes anteriores do cineasta, os crimes e a morte propagam-se na zona dos sonhos, e veremos que em Mulholland Drive o sonho se liberta do sono: até os mortos sonham.
A chegada de Betty (Naomi Watts) a Los Angeles identifica-a como uma (falsa) oposição a Rita, a outra protagonista. A cena é tomada por uma luz clara, branco sobre branco. Não é uma luz diurna. É dia, mas a luz é intensa e artificial, a luz de um sonho de celebridade, de reconhecimento artístico e de abundância financeira, a que a balada fúnebre de Angelo Badalamenti põe um travão, como que a avisar que aquela luz pode queimar o ecrã e o que está no seu interior. Betty é uma jovem rapariga, uma loira bonita vinda do interior da América (de Deep River, Ontario, saberemos depois). Poderia ser Marilyn Monroe e a sua bagagem de sonhos. Um casal de idosos que a acompanham na saída do aeroporto dizem que vão ficar à espera de verem a jovem Betty brilhar no grande ecrã. Mas logo a seguir, dentro do automóvel, os velhotes riem, parecem troçar do destino de Betty, como se fossem representantes ardilosos daquele lugar e portadores da fatalidade da rapariga. As palmeiras e o letreiro de Hollywood no topo da colina surgem como contra-campo desta sequência, são a quimera de Los Angeles. Este ardil voltará ao filme como uma pontuação: Betty com as mãos a apoiar a cabeça e a olhar para cima, precedida de uma imagem solar de uma avenida delimitada por palmeiras, que conduz aos estúdios de uma das majors. Mas, o espectador terá progressivamente uma percepção aguçada de que há um fora de campo, umas traseiras de Hollywood, onde se encobrem fantasmas.
Betty instala-se na casa da tia, numa zona residencial nobre, na órbita da colina de sonhos. Será aí que ela colidirá com as memórias de Hollywood através de Rita. A primeira vez que Betty vê Rita, esta é uma imagem turva de um corpo, uma projecção por detrás do espelho baço do chuveiro. Rita confessa ter perdido a memória num acidente de automóvel em Mulholland Drive e o plot do filme desfiar-se-á nessa procura, nas veredas da sua memória, que descobriremos serem as feridas de Hollywood. Rita encontrará o seu nome, iludindo a perda de memória, num cartaz de Gilda (1946) de Charles Vidor, protagonizado por Rita Hayworth, com quem ela partilha a voluptuosidade.
Nesse filme inserido no período dourado de Hollywood, com o mundo a sair dos destroços da II. ª Guerra, um jogador americano (Glenn Ford) é contratado pelo dono de um casino em Buenos Aires, que serve de fachada de um submundo que procura tomar o poder daquela região. Ford, que tantas vezes interpretou o herói americano no espirito dos ideais dos fundadores, serve-se aqui de todas as artimanhas para ascender a braço direito do patrão. Hayworth surgirá, então, como a esposa do patrão e rapidamente, na primeira cena que a junta a Ford, percebemos que os dois tiveram uma relação amorosa, recentemente quebrada. O filme constrói o protótipo da femme fatale do noir: Gilda na superfície é uma especialista a arrastar homens para a volúpia e consequentemente para a desgraça, numa cidade tomada pelo jogo, pela corrupção. O pensamento de Ford confidencia-nos que odeia tanto aquela mulher que isso até está no ar que respira. Gilda, pouco tempo depois, dirá ao seu antigo companheiro na América, que o odeia tanto que seria capaz de se destruir para o arrastar com ela. Quando já é evidente para o espectador e para os outros personagens que afinal aquele ódio é um amor latente que o par não consegue desfazer, Rita Hayworth canta “Put The Blame On Mame”, onde confronta a América e o seu moralismo: When they had the earthquake in San Francisco / Back in nineteen-six / They said that Mother Nature / Was up to her old tricks / That’s the story that went around / But here’s the real low-down / Put the blame on Mame, boys / Put the blame on Mame / One night she started to shim and shake / That brought on the Frisco quake / So you can put the blame on Mame, boys / Put the blame on Mame. Gilda não é apenas uma mulher, é um desdobramento que ilude a culpa e a moral, é a imagem da corrupção e da volúpia enquanto oculta um grande amor, o decoro e a virtude, que só no fim da trama passará do invisível para as acções. Hayworth e as suas vidas, a que o cinema assegurou um continuum que ilude identidades, espaço e tempo, é uma senha para Mulholland Drive, uma influência sobre a obra de Lynch, que conduz esta ascendência pelas suas salas de espelhos numa actualização do film noir em que os corpos, a volúpia, são protagonistas: a dupla Betty e Rita, a solar e a nocturna, a inocência que deseja a corrupção.
Se a aparição das personagens femininas evidencia que Lynch quer contar as histórias de Hollywood, a presença em cena do personagem de Adam Kesher, o realizador interpretado por Justin Theroux, põe-nos a olhar para Mulholland Drive como um documentário do primeiro século de Cinema na América. Uma reunião junta Adam e a sua entourage aos financiadores de um filme, uma dupla de representantes da máfia, que pretendem impor a escolha da protagonista. O realizador estrebucha. A cena cresce numa tensão alimentada por close-ups dos olhares, misto de paródia e violência, que culmina com um dos financiadores (Angelo Badalamenti) a vomitar num guardanapo o café que lhe fora servido. Os elementos da equipa de Adam procuram pacificar a reunião, enquanto que Badalamenti repete como um eco: this is the girl (Camila Rhodes). Adam diz que aquela rapariga não entrará no filme dele, ao que um dos italianos responde que o filme já não é dele. Esboça-se assim um dos temas fundamentais da história de Hollywood: o controlo dos filmes, a integridade artística das obras, a tentativa de impor uma autoria.
Em fuga e já no exterior, Adam vandaliza a limusine dos irmãos Castigliane. Mas fica evidente para o espectador que o realizador está a lutar pelo controlo de algo muito maior do que ele, um poder intransigente, déspota. As decisões chegam de salas interiores, vedadas por envidraçados, quase sem troca de argumentos, com o uso de uma linguagem mínima, e governadas pela criatura mágica, o anão que, tal como as bruxas de Macbeth, define o círculo místico de Hollywood. Entretanto, a produção do filme é desmantelada, sem consultar o realizador, que em simultâneo vê a sua vida a desabar: é expulso de casa e ridicularizado pela mulher adúltera e a conta bancária some-se. Adam é, entretanto, aconselhado a encontrar-se com o Cowboy, em Beachwood Canyon, lugar remoto, a salvo dos vícios da indústria e da cidade. O realizador, a princípio incrédulo, alinha na paródia e em breve perceberá que está ali, naquele representante da herança de Hollywood, o único que pode redimir o artista e dar-lhe a chave para resolver o enigma. O Cowboy dir-lhe-á: “A atitude de um homem revela até certo ponto o tipo de vida que virá a ter”. Num tom surrealista, mas também filosófico, a conversa coloca na balança a intransigência artística e o poder dos financiadores. Num espírito de negociação, de uma prudência que terá prevalecido inúmeras vezes em Hollywood, a sensatez do Cowboy acalma a fúria autorística do realizador; o Cowboy dir-lhe-á que se ele emendar a atitude ainda irá a tempo de embarcar na carruagem. O realizador declina, assim, o trauma que associa vida e arte, abdicando do peso da liberdade. Vê-lo-emos um pouco depois na rodagem. Adam anuncia “this is the girl”, enquanto se ouve “I Told Every Little Star”, um tema que remete para a inocência e a doçura dos anos 50 (algo reiterado pela filmografia de Lynch), da esperança saída da guerra e da implantação do sonho americano, antes de a América entrar nas convulsões dos anos 60 e das suas paisagens mediáticas.
Outro dos eixos de Mulholland Drive é o elogio do simulacro, do artifício como sendo a essência do mistério das imagens de Hollywood. No desfiar de metáforas, Rita enquanto lacrimeja diz a Betty que já não sabe quem é, honrando as memórias de inúmeras perdas de identidade determinadas pela indústria dos sonhos. Pouco depois, dentro da mala de Rita, as duas mulheres encontram uma grande soma de dinheiro e uma chave azul. Estes enigmas que conduzem grande parte dos espectadores à procura de explicações da trama e das direcções destas estradas, pedem um outro espectador, disponível para deambular pela sala de espelhos, para um jogo irónico e denso, mas que será recompensado com um conjunto amplo de significados e significações, de leituras tão provocantes quanto cristalinas, recorrendo à habitual gramática de Lynch: oscilações de ritmo, divagações da narrativa, ausência de realismo nos diálogos e explosões inusitadas de violência.
A sucessão de simulacros será precedida por uma passagem pelo Winkie’s de Sunset Boulevard, que se confirma como um espaço venerado onde se depositam os mitos. Rita recorda-se ali de algo, talvez o seu nome seja Diana. Entramos depois numa cena a decorrer: Betty prepara-se para uma audição contracenando com Rita. A sequência a princípio parece estar a falar dos personagens delas, num dentro e fora que intensifica a revelação de que se trata afinal de uma situação tensa entre dois amantes, que quase se agridem na separação. Pouco depois, na audição, imbuídos de uma paródia que satiriza o sistema hollywoodiano, todos parecem estar a representar os seus próprios papéis: o produtor gentil, o realizador artista e distante, o actor galã e a jovem actriz, inexperiente e cândida. Então, Betty encaminha a cena para uma oposição de tom do que havia ensaiado com Rita. A expulsão do amante transforma-se em insinuação de volúpia, de corpos que se roçam para terminar numa troca calorosa de beijos, que atribui uma equivalência entre sexo e violência e a repetir o que já sabíamos, que a ambiguidade de Hollywood produz pactos com a doçura e o negrume, o sonho e a angústia.
Rita, tomada por um pesadelo, murmura numa repetição circular: silencio… no hay banda… A câmara instável e apressada percorrerá um parque de estacionamento deserto a acompanhar a entrada das duas protagonistas no Club Silencio. No interior do teatro antigo e decadente, alguns espectadores e um palco com uma cortina de veludo vermelho, que Lynch usa como imagética de abertura, de introdução ao espaço do inconsciente. Um apresentador anuncia com ferocidade o simulacro: no hay banda, tudo o que ouvimos é uma fita gravada. O homem que se move como um prestidigitador, lança relâmpagos que atravessam a audiência enquanto vocifera que tudo aquilo é uma ilusão. Entretanto, chega ao palco a La Llorona que honra as raízes hispânicas de Los Angeles: a cantora Rebekah Del Rio. Ela canta e chora o amor, a dor e a separação. A emoção trespassa as duas protagonistas, que estão juntas, de mãos dadas na plateia. La Llorona desmaia, mas continuamos a ouvir a sua voz dorida, despida de qualquer música, cantada à capela por um fantasma. Betty e Rita choram, abraçadas. Já não é apenas a suspensão da descrença a que associamos a eficácia da ficção, é uma emoção saída do artificio de uma montanha russa de emoções de uma ópera. O simulacro voltará ao filme na apologia ao artificio do estúdio. Já com outras identidades e próximo do desfecho da narrativa, Adam e Rita estão dentro de um automóvel, cercados pela parafernália técnica da rodagem e um bloco de apartamentos, parte de uma cidade inventada num estúdio que se enche de ilusões, a partir de uma caixa negra e vazia. O artificio é mais uma vez intensificado pelo dentro e fora da cena, pelo jogo com a vida dos personagens: na escuridão, uma luz ténue permite assistir aos acontecimentos no rosto de Betty: desilusão, ciúme, inveja e dor da traição, perante o ensaio de um beijo e da ternura entre Adam e Rita.
Hollywood é, então, um espaço de um continuum de identidades e universos comutáveis.
A busca pela identidade de Rita (que talvez seja Diane) prossegue conduzida por um itinerário de táxi que enquadra de modo inquieto, com ângulos desviados da geometria benigna, as palmeiras agora despidas de Los Angeles, numa indicação de mau agoiro, de que há poderes que se esgrimem no espaço oculto. Betty e Rita entram numa casa, para dentro da escuridão, espécie de buraco negro, em mais um mergulho na toca de coelho. No interior, o cheiro a morte pressagia um corpo enroscado numa cama, envolto na penumbra, numa forma que replica o cadáver de Marilyn Monroe, quando foi encontrado e fotografado pela polícia, na madrugada de 5 de Agosto de 1962. A actriz tinha apenas 36 anos. As duas mulheres abandonam apavoradas a casa e um plano enquadra-as de frente, com a imagem a multiplicar-lhes o contorno dos rostos, como se procurasse fixar e sincronizar as identidades, o tempo e os lugares, por onde estes doppelgänger se movimentam. Depois de Betty auxiliar a transfiguração de Rita numa loira platinada, assistiremos à fusão das duas metades. No estabelecimento de relações intemporais entre a vida e a morte, a volúpia entre as duas mulheres junta-las-á como dois polos que se atraem e perseguem, duas faces inseparáveis, coexistentes. São criaturas mitológicas que personificam dualidades e disputas antigas, entre o Bem e o Mal, o dia e a noite, as luzes e as sombras, a virtude e o desejo: a doce Betty, os seus sonhos e aspirações, e Rita, a instigadora de pesadelos e de memórias perdidas.
O cinema detém a faculdade do tempo – da elipse e da durée, de o atravessar sem concessões e voltaremos a descer Mulholland Drive no mesmo ritmo indolente da abertura do filme, com Naomi Watts (agora Diane) no lugar de Laura Harring (agora, Camilla, a rapariga escolhida para o filme). Um pouco antes, Lynch tinha colocado a inscrição “Parte III”, em mais uma provocação que assinalava a resolução da narrativa, enquanto convidava o espectador para a derradeira imersão, sob a influência de Lewis Carroll. “Rapariga bonita, tempo de acordar”, murmura o Cowboy. A réplica do cadáver de Marilyn é, então, interpretada por Naomi Watts, que nos facultou o seu mundo interior: acedemos aos seus sonhos, à projecção de um fragmento surrealista ou a uma sessão de psicanálise. Hollywood é, então, um espaço de um continuum de identidades e universos comutáveis. A solar Betty era afinal Diane, uma permuta determinada pela memória e pelo pesadelo, que também se expressa no lugar: a residência luxuosa da tia recebe como reverso uma casa lúgubre e decadente, um espaço apodrecido por um século. O sexo entre as duas mulheres, outrora terno, transforma-se numa confrontação, violenta e usurpadora. Camilla há-de encaminhar Diane por um carreiro de um bosque até a uma festa, em mais uma metáfora para o filme se mostrar como um atalho para a história de Hollywood. A outrora mulher amnésica é agora disputada por todos. Depois de sacudir o peso da memória para Diane, Camilla exibe a volúpia e o sucesso, insinua-se como se fosse Rita Hayworth. Adam, ao lado de Camilla, também fica enquadrado pelo triunfo, depois de escapar às ambições de iconoclastia. Em contra-campo, encontramos Diane: a rapariguinha do interior da América, que fracassou e há-de ser devolvida ao anonimato; ou a mártir, se deixar um belo cadáver, depois de Hollywood lhe proporcionar um suicídio ou uma feérica colisão de um automóvel.
Lynch guarda uma coda para Mulholland Drive. Nas traseiras do Winkie’s em Sunset Boulevard, a estranha criatura, o guardador das angústias de Hollywood, segura uma caixa azul onde estão depositados os pesadelos de Diane. Uma luz, que se transforma em negrume por entre vapores de morte, é um requiem a impedir-nos de olvidarmos Marilyn e o seu trauma. O trauma colectivo de uma morte por decifrar.