Esta é a primeira crónica de um Brasil novo. Dito assim, parece até texto institucional, discurso para político ou coisa que o valha. Mas quem acompanhou nossos trópicos sabe o estrago feito por aqui nos últimos quatro anos. A reconstrução será difícil, mas estamos prontos para começá-la. Há uma prática, contudo, que poderia ficar nos escombros: a blindagem de certos filmes, pequenos cristais que não aguentam palavras mais duras e por isso, coitadinhos, precisam ser preservados dos escritos de críticos ferozes, mesmo que os ferozes de hoje sejam bem mais bonzinhos que os ferozes de outrora.
É certo que o cinema brasileiro, de onde vem a maior parte dos filmes “blindados”, passou por maus bocados na década de 1990, e precisa ainda vencer dúvidas, contrapartidas, má vontade por todo lado e uma burocracia surreal para existir. Mas críticas, quando honestas nos sentimentos e no julgamento, são sempre construtivas, movimentam a arte pela pressão sobre o artista, como dizia Clement Greenberg. E a arte, por sua vez, exerce também, quando bem-sucedida, uma pressão sobre a crítica. É meio basilar esta discussão, mas ainda hoje há muitos equívocos em torno da crítica e da recepção aos filmes.
A crítica brasileira sofre tanto com os que atacam todos os filmes brasileiros quanto com quem defende apaixonadamente todos eles.
Certa vez, acho que em 2015, num congresso acadêmico em Portugal, fui apresentar minhas ideias sobre o João César Monteiro crítico e disse que poderia ser um exemplo para a crítica brasileira contemporânea o rigor com que ele tratava o cinema português de sua época. Eu conhecia a crítica brasileira, sabia da blindagem que se fazia a alguns filmes (já tinha sido chamado até de nazista por um texto que escrevi para a Folha de S.Paulo) e detestava a adesão automática a alguns deles por boa parte da crítica. Pois bem, uma pessoa acadêmica brasileira me questionou, o que não é problema, pois questionamentos enriquecem qualquer debate. Respondi educadamente, pois era um dos momentos em que o espírito de César Monteiro me deixou em paz, mas com alguma contundência. Depois descobri que essa mesma pessoa havia me atacado nas redes sociais. Segundo suas palavras, eu ia ao exterior difamar o cinema brasileiro, esquecendo-se de que eu me coloquei no bojo atacando a crítica e me incluindo no processo. Blindagem tola de quem acha que tudo que é feito por aqui é divino e maravilhoso. Apesar desse tipo de atitude condescendente de boa parte da crítica e da academia, o cinema brasileiro teve, sim, uma boa fase logo depois desse congresso, entre 2016 e 2019. Não há nada mais chato que essa blindagem dentro de um sistema saudável em que a crítica simplesmente responda aos filmes que vê procurando maneiras de incitar o pensamento sobre eles e o lugar deles no cinema e no mundo.
Uma outra vez, na Mostra de Tiradentes, creio que entre 2010 e 2012, perguntei porque todos amaram determinado filme. Não me lembro qual, e suspeito que os amantes da ocasião também não. Lembro apenas que era pernambucano, numa época em que criticar filme pernambucano era atrair vodu, mal olhado e tudo quanto é praga. Ninguém soube me explicar porque o danado do filme era bom. Pareceu-me que era considerado bom só por ser pernambucano. Afinal, não teria como ser outra coisa. Entendo que por vezes só quando escrevemos é que as palavras nos chegam, mas ninguém conseguiu sequer esboçar um motivo, dizer sequer um “gosto daquela cena…”. Estava entre amigos. Não insisti.
A blindagem, por vezes, se dá até com filmes hollywoodianos. Recentemente, soube nas redes sociais que quem não amasse The Woman King (A Mulher Rei, 2022) seria racista. Isso me afastou terrivelmente do filme, embora antes eu estivesse bem curioso para vê-lo. Tamanho desserviço ao cinema e à crítica esse tipo de vaticínio. Sei que sou antirracista, ou me esforço para sê-lo. Mas teria de mentir, caso não gostasse do filme, para não ser acusado de racista? Ou questionar tal ideia, que significaria a supremacia do tema sobre o estilo, mas de um modo radical, em que o cinema seria totalmente exilado da discussão? Se o tema é nobre, tanto faz se a direção for terrível ou medíocre. O tema viria em primeiro lugar. Quem quer saber de cinema? Bom, essa situação é a morte definitiva da crítica, já tão moribunda. Crítica de cinema não tem nada a ver com aceitação prévia do tema e do discurso, obviamente. Preferi me abster do debate e de conferir o filme, apesar da insistência do amigo Vinicius Oliveira para que eu o visse. Talvez ele seja melhor do que essa blindagem sugere. Um dia descubro.
Elogiar filmes para ficar “bem com a patota” ou para fazer política de qualquer espécie é outra das práticas mais terríveis que pode cometer um crítico, um efeito colateral da blindagem. Quase tão terrível quanto atacar um filme por inimizade com seu realizador ou produtor ou algum outro motivo mesquinho. A crítica brasileira sofre tanto com os que atacam todos os filmes brasileiros quanto com quem defende apaixonadamente todos eles. A ausência de critérios, nos dois casos, é fatal à crítica. O importante é ver os filmes, mesmo que esse seja também o discurso equivocado de alguns que os elogiam em bloco.