Por vezes, o exercício que nos leva a separar a obra do seu autor torna-se particularmente difícil em situações limite e o caso de Jafar Panahi, é neste momento, uma dessas situações. Enquanto escrevo este texto, deparo-me com a mensagem de Tahereh Saeedi, mulher do realizador, em nome de Panahi, de que este não irá mais comer, beber ou tomar quaisquer medicamentos, até que seja libertado pelas autoridades iranianas, que em Julho do ano passado o prenderam de forma ilegal. Afirma ainda que esta greve de fome só terá fim com a sua libertação, mesmo que isso implique apenas a libertação de um corpo.
Tal como pudemos assistir nos últimos meses, o Irão vive um clima de revolta social, despoletado pelo assassinato de Masha Amini por parte da polícia da moralidade em Teerão. À medida que a contestação vai aumentado, as medidas draconianas do governo também, levando à prisão de milhares de manifestantes e à execução praticamente sumária de vários jovens. Jafar Panahi, que sempre foi uma voz dissidente, não escapou a este endurecimento do regime, mesmo após diversas manifestações de solidariedade externas para com o realizador. Sabemos ainda, através de fontes próximas, que Panahi encontra-se privado de direitos básicos na prisão e a sua saúde tem vindo a deteriorar-se.
Porém, este filme deixa claro que nem os homens que procuram a liberdade, poderão alguma vez ser livres.
É neste clima de terror que o Irão encontra-se mergulhado e no qual o filme de Panahi tenta submergir. Mas ao contrário dos seus últimos filmes, desde In Film Nist (Isto não é um Filme, 2011), momento em que as autoridades iranianas proíbem Panahi de filmar, este é o filme mais negro e menos esperançoso do realizador. Ao assistir a Khers Nist (Ursos Não Há, 2022), senti de novo a mesma angústia que havia sentido ao ver Dayereh (O Círculo, 2000). Aqui, a situação do realizador no filme é um decalque da situação ficcionada, que por sua vez é o espelho da vida do realizador no Irão. É neste desdobramento que Panahi, dá visibilidade à vida sob o jugo da ditadura, onde a tortura, as perseguições, as ameaças, a impossibilidade de sair do país, são uma constante diária. Além da acção do regime, Panahi não esquece os efeitos deste estado sobre os cidadãos que tenta apagar e controlar. Aqueles que o regime não consegue dobrar, vivem vidas sem qualquer tipo de esperança, conduzidos habitualmente ao suicídio ou à mera existência de uma vida que se arrasta, tal como a do casal do filme ao longo de uma década, com um único objectivo, sair daquele país. E os que controla, tal como a população naquela aldeia fronteiriça onde o realizador se encontra, já instituirão o mesmo clima de policiamento do regime.
Se Dayereh, assim como Offside (Fora do Jogo, 2006), visava sobretudo a vida das mulheres e a ausência de direitos femininos, o que agora encontramos no cinema de Panahi é uma transversal ausência de direitos. É claro que as mulheres continuam a ser as figuras principais onde a castração do poder e da sociedade se expressão de forma mais violenta. Porém, este filme deixa claro que nem os homens que procuram a liberdade, poderão alguma vez ser livres. Tanto o realizador, que à distância tenta fazer o seu filme à revelia das autoridades iranianas, como o jovem que quer casar com a mulher que ama, como o homem que ilude a mulher com um passaporte falso, como até mesmo o bem-comportado pedreiro, que em conversa com o realizador descobrimos ter sido vítima de um processo, são tudo exemplos de que nem mesmo o estatuto de homem é já valido numa sociedade onde a lei e a tradição são a face e o reverso de uma mesma moeda.
No entanto, não deixa de ser curioso, que o título do filme seja uma metáfora do próprio regime, como das tradições. Enquanto Panahi dirige-se ao local da aldeia para prestar um juramento sobre uma situação onde involuntariamente se vê envolvido, é interpelado por um habitante, que inicialmente o convida a ir beber chá e a não caminhar sozinho por causa dos ursos. Após uma breve conversa entre o ancião e o realizador acerca do formalismo esvaziado de certos rituais, onde é legítimo mentir, mesmo que em nome de Alá, desde que isso traga a paz social, o ancião despede-se do realizador e diz para que não tenha medo de caminhar sozinho, porque afinal não há ursos. Isso são apenas histórias que se contam às pessoas para que tenham medo e se mantenham em casa.
Porque mesmo frente ao regime mais brutal, Panahi não deixa de amar o seu Irão e as suas gentes, mensagem que sempre deixou claro nos seus filmes.
É neste belo momento que Panahi consegue aliviar alguma tensão do filme, sempre pautado por um clima de incerteza e suspeição. Há ainda um outro elemento fundamental no estabelecimento de equilíbrios entre poder e liberdade, que é o uso da noite e do dia. Enquanto o dia serve de palco aos episódios de violência na aldeia, assim como marca o momento em que o casal desiste por fim de encontrar uma nova vida, a noite é o lugar onde as pessoas expressam a verdade e a resistência contra os poderes estabelecidos se manifesta. Este uso da noite é sobretudo necessário à cena em que o jovem amante invade o quarto do realizador e ao momento em que Panahi pisa a fronteira. No entanto, o dia não significa apenas um estado panótico do regime, é também palco de belas tradições e conversas de um Irão que tantas vezes vimos representado nos filmes de Kiarostami.
E não é por acaso que menciono o nome de Kiarostami, visto que há uma proximidade evidente entre este filme e Bad Ma Ra Khahad Bord (O Vento Levar-nos-á, 1999). Tal como o personagem de Kiarostami que numa aldeia do interior espera a morte de alguém e enquanto espera vai deparando-se com o esplendor das pequenas coisas da vida, também Panahi dirige-se a esta aldeia em busca de anonimato e durante a estadia, entre a comida da anciã da casa e os rituais que procura filmar, encontra a beleza de um Irão incapaz de deixar. Porque mesmo frente ao regime mais brutal, Panahi não deixa de amar o seu Irão e as suas gentes, mensagem que sempre deixou claro nos seus filmes. Mas se Kiarostami foi ainda capaz de filmar um Irão por vezes cândido, como é o Irão de Khane-Ye Doust Kodjast? (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, 1987), Panahi segue a tradição desse cinema mas sem ilusões. É por isso que tanto no seu emblemático Ayneh (O Espelho, 1997), como numa das suas mais recentes obras, Se Rokh (3 Rostos, 2018), que podem ser considerados como derivações do tema de Nema-Ye Nazdik (Close-Up, 1990) de Kiarostami, o Irão, assim como o lugar da mulher, é o de um outro país e de uma outra forma de olhar a sociedade.
Não posso terminar este texto, sem demonstrar a minha total solidariedade para com Jafar Panahi e expressar a minha mais sincera admiração pelo homem e pelo magnifico cineasta que tão eximiamente demonstrou que só é possível o homem viver, quando o cineasta é capaz de executar a sua obra.
★★★★☆