É inumerável a quantidade de vezes que me falam da ‘desarticulação’ nos filmes de Claire Denis. Não é fácil de descrever, dizem. Não é evento possível de localizar. Mas é uma sensação indigerível. O seu mais recente filme Stars at Noon (Stars at Noon – Paixão Misteriosa, 2022), o segundo filmado durante e a partir da pandemia do Covid-19 depois do seco e palavroso Avec Amor et Acharnement (Com Amor e Com Raiva, 2022), não foi excepção. Aliás, o filme fala sobre ela como se já soubesse que a suposta ‘falta de coesão’ será algo a apontar. A uma determinada altura, enquanto Americana e Inglês fogem de um polícia dentro de um táxi, uma chuva tropical, que é o mesmo que dizer uma avalanche de água implacável, cobre o carro. “Consegue ver?”, ouve-se a voz dela. O taxista, de máscara sob a boca, responde que não, não consegue. Mas não é por isso que pára o carro ou muda de trajectória! Não paramos. Não há como parar. Acerca disto, conta também a protagonista mais tarde, “Preciso de sentir que estou em movimento”. Se nas pregas do restante corpo Denisiano já não há vincos, em Stars at Noon, a matéria (o pessoal e o político, e como estes dois se abraçam) pode impregnar, mas o movimento a que caminha é o da condensação palpável do tédio; não é possível de apanhar com as mãos nem de atingir o que é térreo no subsolo das emoções frustradas.
Ao contrário do esperado, e ainda bem, Stars at Noon leva-nos a um quase-regresso do indefinível, porque se encontra contaminado pela febre da imersão, depois do objecto agradável mas amorfo que foi Avec Amor et Acharnement. Nada pára no gesto de Claire Denis, porque não segue em linha recta. É aberto, às vezes elíptico, outras vezes não, mas sempre instintivo. Vive dos cinzentos da ambivalência. Mas onde há a sensação da tal ‘falta de coesão’ há a elevação dos elementos, e com ela o seu instalar invisível por toda a parte. No espaço que circunda o ritmo do filme, e onde este encontra pontos de encaixe, texturas perduram e a tese de Denis, que se volta sempre para o corpo e como este se move, liquidifica-se. Não nos é dado, enquanto espectadores ou pessoas, as coordenadas para o mundo prestes a irromper e onde há sempre tanto para resolver.
Nascido da sensualidade extasiada de filmes-pérola como Vendredi Soir (2002), Stars at Noon acrescenta-se à lista de exemplos que verificam o corpo de trabalho de Denis na impressão daquilo que se extrai só e apenas daquele primeiro visionamento. Curiosamente, é aí que começamos. No que resta de vestígios. Uma câmara agitada corre pelo corpo de Margaret Qualley, envolta na humidade de um céu torrado, enquanto contempla uma palmeira artificial cheia de pequenas lâmpadas, coberta em lixo e caída do poste à qual se encontrava agarrada. Um riff de jazz é a deixa para Denis nos assaltar com pássaros que sobrevoam o mesmo céu que prende a personagem interpretada por Qualley. Sente-se o cheiro a suor no ar. Pesado, inchado, tão insuportável que congela o corpo assim que entra em contacto com a pele. Onde Vendredi Soir é excepcional a engrossar um argumento fino, Stars at Noon emagrece a história para melhor a esfumar.
Assim sendo, numa dança que ocorre sem se afastar do ponto de partida, a premissa não é tanto contada como assumida. Há projecções e especulações dela ao longo do filme, codificadas sob as mesmas maquinações secretas a que a temática sugerida convida. Do que é possível deduzir, uma jornalista freelancer Americana sem trabalho ou uma rapariga que tentou ser uma jornalista freelancer Americana, Trish (Margaret Qualley), viajou no passado para Managua, Nicarágua para cobrir a revolução Sandinista. Uma peça em que esta denuncia sequestros e enforcamentos durante o conflito (que decorreu durante a década de 1980) fá-la perder o passaporte e a credencial de imprensa e remete-a a um purgatório atemporal. Quando a conhecemos, é incerto há quanto tempo Trish está presa no país. A medição de temperatura e o colocar de uma máscara para entrar no único grande hotel da cidade, Inter-Continental, onde engata estrangeiros ricos em troca de dólares americanos, ainda poderosos, sugere como a presença da pandemia da Covid-19 pode ter vindo a abalar ainda mais as extremidades agridoces “das dimensões exactas do inferno”, nas suas palavras. Enquanto isso, esta só pode contemplar a espera, trocando sexo por protecção, dinheiro e necessidades básicas, e dormindo numa pousada cujo nome é ironicamente El Porvenir.
Denis faz um filme sobre elas, prisioneiras de uma espiral que evidencia o político no pessoal, dentro do tal “movimento”, da sua liberdade e falta dela, de que uma embriagada Trish menciona a Daniel. Como se de um vício se tratasse, esta não consegue parar porque sabe que não há ainda para onde ir.
Entre uma constante procura por champô e bebidas alcoólicas, Trish conhece o misterioso Daniel (Joe Alwyn), um jovem inglês, que se apresenta como um consultor para uma companhia de petróleo Britânica no bar do Inter-Continental. Mas será que é Trish que o descobre ou Daniel que se insinua na vida de Trish? Construído o caminho para a dúvida, neste vai e vem de quem usa quem para seu benefício, Denis desconstrói género e infunde paranóia numa placa de Petri de clichés romântico-policiais com fins tendinosos. O resultado é memorável, ainda que cegamente salgado. Baseando-se, quase literalmente, no romance de Denis Johnson de 1986, o qual foi adaptado para a realidade turva de uma pandemia no séc. XXI, Denis volta às temáticas de sempre – colonialismo (atentar no fato branco de Daniel, uma visão em linho), imperialismo e o olhar num território estrangeiro – num filme turvo e potenciado pelo torpor da frustração. E enquanto a minha sensibilidade ocidental procurava pela próxima vez que Trish tomava banho, depois de sexo com dois homens, muitos quilómetros caminhados e litros de rum consumidos (vestígios de um dia produtivo no limbo), o filme é subitamente invadido por polícias e agentes secretos (CIA?) – contexto no qual Benny Safdie brilha – e parece querer falar sobre a métrica do poder internacional entre nações. Mas Trish não quer saber. O espectador também não. Na fuga para a fronteira costa-riquenha, a fidelidade da distopia pode pertencer a esta metáfora sociopolítica, sobre a América que interfere e aniquila, sem olhar a especificidades, mas a sua progressão sem rumo indica um crescimento para dentro…como a realizadora contou ao site Americano The Playlist, “Eu não tento ser abstracta. Sou o oposto: tento sempre estar dentro do material do filme.” É nele que passamos a habitar.
Stars at Noon invade os nossos apêndices sensoriais antes de continuar a missão de Denis em evidenciar o sempre parasitário imperialismo global.
Costuma-se dizer que não há duas histórias de amor iguais. Mas o que não há são duas histórias iguais. O que eu vejo em Stars at Noon não será o mesmo que outro verá. Como na vida, o que o espectador deduz destes dois personagens e do que transborda do seu encontro diz mais de si do que dos personagens. Contudo, parece-me indiscutível como Stars at Noon é, mais uma vez, sobre as mulheres brancas de Denis, que contam na primeira pessoa como se recusam ao amor, mas não aos impulsos do desejo, nunca perdendo de vista a vulnerabilidade que as concretiza (já não se pode dizer o mesmo de Daniel ou de Joe Alwyn), como qualquer heroína que se preze. Denis faz um filme sobre elas, prisioneiras de uma espiral que evidencia o político no pessoal, dentro do tal “movimento”, da sua liberdade e falta dela, de que uma embriagada Trish menciona a Daniel. Como se de um vício se tratasse, esta não consegue parar porque sabe que não há ainda para onde ir. A pandemia continua a cravar os seus dedos e a fuga para nenhures já tinha começado bem antes do filme e da sua colecção de planos aveludados, dos néons, dos membros entrelaçados e das estrelas.
Com o corpo enquanto reservatório para a ambição imparável da vida enclausurada, Qualley caminha com o tipo de abandono, e por isso a leveza, que a consegue sustentar. É um verdadeiro prazer poder segui-la. Mesmo que as pequenas acções ao longo da estrada que leva Trish a conhecer o agente que a pressiona a entregar Daniel vão perdendo gás como perde um copo de coca-cola deixado ao ar livre sem tapar, é difícil tirar os olhos dela. Não li o romance de Johnson, mas onde imagino que este escreve sobre amor durante a revolução, Denis não o mostra. Ou então eu não o vi. Neste clima repleto de antíteses superlativas (Denis filmou no Panamá) – lamacento, mas esverdeado, molhado mas tórrido -, tudo se transforma em água. Perante o detrito urbano e político dos eventos do passado e do presente, se Denis fala de amor, fala sobre o medo de lhe perder o rasto. Honestamente e mais uma vez, pouco importa. A lente da realizadora deixa a negrito impressões, sinais, clarões, lacunas. O que sobra? Sentir. Sentir através do estado de influxo destes criado pela sua destemida actriz.
E porque este texto já vai longo, resta-me dizer que nos entretantos da língua inglesa e da espanhola, da anarquia e da ordem, do fugaz e do eterno, da cumplicidade entre aliados e do antagonismo, Stars at Noon invade os nossos apêndices sensoriais antes de continuar a missão de Denis em evidenciar o sempre parasitário imperialismo global. Antes de nos lembrarmos de que estamos a ver o filme, já este se entranhou pela corrente sanguínea. Talvez demasiadas palavras sejam proferidas enquanto Trish e Daniel mentem um ao outro, e negociações/ fronteiras várias fermentem. Nicarágua torna-se, aos nossos olhos, naqueles que não conseguem dela sair. O filme pode e falha em concretizar uma possível imensidão (Denis tem-se encostado demasiado ao diálogo ultimamente), mas confirma ainda assim como o corpo Denisiano continua a desenhar o contágio. E como é bom respirar dentro de todo aquele tecido cinemático!
Nos tempos que correm, não há elogio mais preponderante que este.
★★★☆☆