O que pode o tempo? Na primeira longa cena de Tár (2022), depois de uma extensa apresentação do seu currículo, a maestrina Lydia Tár é entrevistada diante de uma plateia ao vivo. Aí, diz-nos que “o tempo é o elemento essencial, o ponto fulcral da interpretação”. Gerir o tempo, a cadência, o ritmo, para uma centena de músicos que obedecem às suas indicações. Creio que é de alguma forma essa delicada sensibilidade para uma cadência, aquilo que Todd Field quis perturbar neste character study de uma importante maestrina que tem a seu cargo uma orquestra berlinense, com projectos de gravações de álbuns, espectáculos ao vivo, livros, e atribuição de bolsas a jovens músicos.

O tempo inscreve-se no próprio processo. Dezasseis anos sem filmar desde Little Children (Pecados Íntimos, 2006), com um interregno dedicado à publicidade, e um personagem que surge há uma década na cabeça do realizador Todd Field. Personagem que só em tempos de pandemia veio, finalmente, a encontrar o seu filme, num projecto para a produtora Focus. Com a estreia do Tár, o tempo dá novo salto. Reacções muito positivas, inscrito em muitas das listas dos melhores filmes de 2022, prémio de melhor actriz para Cate Blanchett em Veneza (e o Oscar na mira). Numa entrevista sobre o filme, o realizador refere que é precisamente o tempo que separa o artista da arte, isto num contexto em que se abordava um dos temas de Tár: a legitimidade da união ou separação entre arte e moralidade.
Pergunto-me então, também diante desta propensão de filme a ser lido como “cautionary tale” diante da vertigem do denominada cultura do cancelamento, o que acontecerá com ele após a confusa poeira do presente? Como será visto daqui a uma década ou duas? E é por aqui que, creio, o filme de Field ameaça dar de si. Desde as primeiras imagens em 2.39:1 e da implacável fotografia de Florian Hoffmeister que julgamos estar em território Hanekiano: seja pela austeridade da personagem que, de tempos a tempos, lembra Isabelle Huppert em La pianiste (A pianista, 2001), seja num certo ambiente impessoal de vigilância urbana [Caché (Nada a Esconder, 2005)]. Por outro lado, certos momentos musicais, gravados ao vivo, são tratados com a intransigência meticulosa de Straub e Huillet, em Chronik der Anna Magdalena Bach (A Pequena Crónica de Ana Madalena Bach, 1968).
Tár é um filme que comunga, à sua maneira e enquanto “cautionary tale”, dessa moralidade que quer criticar. Um “contra manifesto”, para ser deliberadamente excessivo.
Estes territórios reconhecíveis são complementados com a construção de um personagem muito comprometida com o seu trabalho e que, em alguns momentos, se mostra fria, impendiosa, exigente, hipócrita. A dado momento do filme, surge a suspeita que possa ter contribuído para o suicídio de uma mulher com quem não se compreende se mantinha apenas uma relação profissional. Na visão do realizador, Lydia Tár não é nenhuma santa ou nenhuma vilã, sendo que o espectador apenas a sabe “culpada de ser um ser humano”. É nesse sentido que Field faz confluir, progressivamente, a assombração sonora da protagonista (com sons fantasmas e acontecimentos difíceis de explicar; teorias há que seria a “presença” dessa mulher suicida) com a encenação da montanha de neve tipicamente associada aos processos de suspeita em torno de ações moralmente condenáveis que têm uma repercussão na carreira artística.
Ainda na referida entrevista, Field é claro a opor arte e moralidade, e que o artista deve ser julgado como cidadão e não como artista – dizendo mesmo que quando a arte é moral se transforma em propaganda. E essa é a dúvida de como o tempo agirá sobre o filme. No final, a heroína “foge” para o sudoeste asiático, como se não lhe restasse remédio senão confiar na passagem do tempo, até que todas as suspeitas sejam esquecidas. No plano final vemos uma audiência de cosplayers que assiste à orquestra conduzida por Tár, na interpretação da banda sonora de um videojogo, sugestivamente intitulado “Monster Hunter”. E aí finda o filme com a alusão a um “novo mundo”. Mais claro não podia ser Field nessa representação de um mundo assombrado – um tempo de fantasmas, em que suspeitas valem por provas. Mas, e aqui surge em meu entender a contradição, Tár é um filme que comunga, à sua maneira e enquanto “cautionary tale”, dessa moralidade que quer criticar. Um “contra manifesto”, para ser deliberadamente excessivo.
Mas o que transborda para lá dessa ideia de mensagem? Várias coisas. A banda sonora da compositora islandesa Hildur Guðnadóttir que compreende bem a alternância entre o furor sensual da música e a capacidade de agrilhoar as personagens ao enquadramento; a presença traumatizada da actriz Nina Hoss, como companheira de Tár e primeiro violino da sua orquestra; o jogo com os planos sequência como forma de acentuar uma tensão e os planos abertos e à distância para subscrever uma certa estranheza no espaço. E, finalmente, Blanchett, para quem Field escreveu a personagem. Ela é o metrónomo do filme. Blanchett, que foi buscar a Susan Sontag a inspiração para falar a partir do espaço da intelectual pública, nela reconhecemos as inibições do desejo que havíamos visto em Carol (2015) de Todd Haynes. A sensibilidade, o transtorno, a paranoia e o medo passam através dos gestos e do corpo de Blanchett, como se ela comandasse uma ideia de labirinto da alma e do poder. Percebemos, por um lado, que Tár é um filme feito para Blanchett brilhar – e não é por acaso que muitas pessoas ficaram a achar que a sua personagem era real, isto é, que trazia com ela uma credibilidade que normalmente pretendemos achar no bom filme biográfico. Mas o mais extraordinário é que tendo esse palco e essa centralidade desenhadas à sua medida, Blanchet outra coisa não faz durante todo o filme senão descentrar-se, nuancear-se, apagar-se num ambiente de contradições, nessa culpa que, como se dizia, é fardo de todo o humano.
★★☆☆☆