She found in her mind a collection of images and echoes to which meanings were attachable – images and echoes kept for her in the childish dusk, the dim closet, the high drawers, like games she wasn’t big enough to play.
Henry James, What Maisie Knew, 1897.
“Imaginem o mundo visto pelos olhos de uma criança” poderia ser a sinopse do filme de estreia da cineasta e fotógrafa franco-americana Babette Mangolte, What Maisie Knew (1975) ou “Pelos olhos de Maisie”, numa tradução alternativa do título do romance de Henry James no qual a artista se inspira. Mais do que o estudo psicológico da pequena Maisie que, no romance de Henry James, para além de testemunha das relações adúlteras dos seus pais, passa de joguete nas mãos destes a fardo que nenhum deles quer suportar, o que interessa à cineasta na adaptação desta obra literária é a focalização interna da narração e a possibilidade de transpor essa premissa narrativa para a gramática cinematográfica através da exploração da câmara subjetiva. A realização de Babette Mangolte coloca assim o/a espectador/a na posição de uma criança que observa, com um misto de espanto e de incompreensão, as relações entre os adultos em seu redor, sem verdadeiramente compreender o que se passa diante dos seus olhos.

“Imaginem um olho livre das leis da perspetiva fabricadas pelo homem (…). Imaginem um mundo antes do ‘no princípio era o verbo’”. Assim começa Metaphors on vision, um dos principais ensaios teóricos sobre o cinema de vanguarda norte-americano da segunda metade do século XX, originalmente publicado em 1963 como número especial da revista Film Culture de Jonas Mekas. Nesta introdução do seu manifesto artístico, Stan Brakhage, figura incontornável desse cinema a que P. Adams Sitney chamará anos mais tarde de “cinema visionário” (Visionary Film: The American Avant-Garde, 1943-2000, 1974), convida o/a leitor/a-espectador/a a imaginar(-se) (n)o estado de deslumbramento naïf e inconstante de uma criança livre de preconceitos e ávida de sensações aventurosas, à descoberta de um mundo continuamente novo, animado de movimentos incessantes e de infinitas variações cromáticas e luminosas; um mundo cujo “sentido profundo” seria menos passível de ser decifrado através dos instrumentos do saber científico e das formas de discurso dominantes, do que revelado por via das “aventuras da perceção” inéditas a que, segundo o cineasta, só o médium cinematográfico daria acesso.
Se estas palavras de Brakhage remetem para a tradição do cinema de vanguarda dos anos 20, com cineastas como Jean Epstein ou Germaine Dulac a definirem a objetiva cinematográfica como uma poderosa extensão da perceção humana, capaz de revelar fenómenos imperceptíveis a olho nu (não só os movimentos macro ou microscópicos do universo, mas também os “movimentos das almas”, ou seja, as ideias, emoções e sentimentos subjacentes às ações de cada um), elas apontam mais claramente ainda para aquilo que confere à geração de cineastas a que pertence Brakhage o seu caráter “visionário”, como diria Sitney: a saber, a busca de formas fílmicas que sejam a imagem da consciência humana, através da exploração dos mecanismos técnicos e perceptivos nos quais se baseia o dispositivo cinematográfico. No caso de Brakhage, a manipulação da matéria fílmica é acompanhada por um questionamento em torno do “ato de ver com os próprios olhos”, definição literal do termo “autopsia” que é simultaneamente o tema e o título do seu filme The Act of Seeing with One’s Own Eyes (1971). Neste podemos igualmente encontrar a “fórmula mágica” da vertente lírica do cinema de vanguarda americano, definido por Sitney como um “cinema da visão direta, que presume um cineasta atrás da câmara” e em que o ecrã é “tomado por movimentos que expressam a ideia de [alguém] olhando para alguma coisa” (“The Idea of Morphology”, 1972).
What Maisie Knew de Babette Mangolte inscreve-se plenamente nesse cinema das “aventuras da percepção” ao qual se refere Brakhage, sendo o próprio dispositivo de realização concebido como uma “metáfora da visão” da entidade ficcional nomeada no título. Profundamente marcada pelo filme Chelovek s kino-apparatom (O Homem da câmara de filmar, 1929) de Dziga Vertov, Mangolte coloca a experiência do olhar na primeira pessoa no centro da sua prática cinematográfica, como sugere o título da sua longa-metragem seguinte, The Camera : Je or La Camera : Eye (1977). Que esse olhar pertença a uma mulher não é de negligenciar: podemos ver no dispositivo da câmara subjetiva que Babette Mangolte implementa nas suas primeiras realizações uma tentativa de emancipar o seu olhar feminino das estruturas patriarcais que dominam a sociedade, num momento em que o cinema feminista começa a ganhar voz e visibilidade.

Frustrada pelo paternalismo com que as mulheres são ainda tratadas no meio profissional do cinema francês (destinadas a serem anotadoras ou, no melhor dos casos, montadoras), Babette Mangolte troca Paris por Nova Iorque no início dos anos 70, vindo imergir-se no clima efervescente dos círculos artísticos de Manhattan. Paralelamente ao despertar do seu interesse pelo cinema experimental, impulsionado pela descoberta de Wavelenght (1967) de Michael Snow, é no meio da performance e da dança pós-moderna que Mangolte dá os primeiros passos enquanto fotógrafa, documentando o trabalho de artistas como Yvonne Rainer, Lucinda Childs, Trisha Brown, Philip Glass ou Robert Wilson. Da mesma altura data também o encontro decisivo com a cineasta belga Chantal Akerman, com quem inicia uma profícua colaboração enquanto diretora de fotografia a partir de La Chambre (1972) e Hotel Monterey (1972), e, sobretudo, em Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975). Juntas, Akerman e Mangolte procuram forjar uma linguagem cinematográfica livre das injunções do olhar masculino que lhes permita comunicar as suas experiências enquanto mulheres.
Realizado entre 1973 e 1975, What Maisie Knew situa-se na antecâmara dessa busca de um female gaze pela forma como, através do filtro da subjetividade da pequena Maisie, Babette Mangolte filma o fim da “idade da inocência” e dá conta do despertar de uma consciência singular, eminentemente feminista, quanto à natureza dos jogos de poder e de sedução que pautam as relações entre homens e mulheres. Por um lado, a câmara subjetiva impõe-se desde logo como a forma cinematográfica capaz de dar visibilidade a esse olhar feminino que vê o mundo sem realmente ser visto. Por outro lado, a proximidade de Babette Mangolte ao meio da dança pós-moderna sensibiliza-a para as coreografias íntimas que os corpos desenham nos espaços que ocupam. Isso é notório pela maneira como ela tece o esboço de uma trama narrativa a partir da partitura de gestos com que as personagens se tocam ou se evitam, de forma carinhosa e cúmplice, mas dissimulada, entre mulheres, ou então insistente, intrusiva e quase coerciva quando um homem faz parte da equação.
Entre os intérpretes, podemos identificar a coreógrafa Yvonne Rainer e o compositor Phillip Glass; os restantes, menos conhecidos, vários dos quais dançarinos, haviam participado em Lives of Performers (1972) de Yvonne Rainer, do qual Mangolte fora a diretora de fotografia. Também Chantal Akerman desempenhou um papel na fabricação do filme, ao doar a Mangolte uma quantidade significativa de película fora do prazo, que esta última utiliza para filmar as primeiras imagens de What Maisie Knew: um longo plano fixo e sobre-exposto de uma divisão vazia no interior de um apartamento, onde, envoltas por um nevoeiro ofuscante, se “materializam” progressivamente as peças de mobiliário e os objetos comuns que dão conta de um espaço habitado, na expetativa de que algo aconteça. Como os flares luminosos a que Brakhage sujeita a película dos seus filmes, o efeito de fog presente neste plano de Mangolte opera como uma metáfora da visão – um lento abrir de olhos – que simultaneamente lembra o/a espetador/a do seu voyeurismo perante as imagens.

Adaptando livremente o romance de Henry James, Babette Mangolte acaba por depositar a sua confiança na capacidade do/a espetador/a de “recorrer à associação livre e fantasiar uma espécie de narrativa” a partir de uma série de situações desconexas que se repetem com ligeiras variações ao longo do filme. Não é preciso termos lido o livro para percebermos que a Maisie de Mangolte é uma criança: apesar de nunca a vermos, a posição que a câmara assume, geralmente baixa, em ligeiro contra-picado, sugere de maneira inequívoca o olhar tímido mas atento de um pequeno ser humano ao qual ninguém presta atenção. Paradoxalmente, a intriga que o/a espectador/a é levado a “fantasiar” a partir dos fragmentos de “cenas da vida conjugal”, estranhos rituais de cortejamento e escapadas na natureza em trajes vitorianos, quase nos faz esquecer que estamos sob a tutela do olhar de Maisie, não fosse a banda sonora encarregar-se de nos lembrar da sua existência em vários momentos, pela boca dos adultos que a procuram (Maisie, where are you? / Maisie, wake up / Maisie, it’s time for super). Praticamente isento de diálogos, o filme aposta numa atmosfera sonora que supostamente representa o estádio de consciência pré-linguístico da criança, sendo o olhar de Maisie alternadamente embalado por melodias tocadas ao piano, ao som das quais os adultos dançam, ou por um “ruído branco” monótono, que quase a faz adormecer no seu esconderijo; destacam-se ainda os sons dos objetos que sugerem uma presença humana no apartamento (o assobio de uma chaleira, o ranger de uma porta, o clique de uma fechadura) ou as ocasionais palavras ouvidas em off sobre as imagens de duas de mulheres num estranho jogo de mímica face à câmara (spooky, naughty, sexy, silly, sloopy).

De olhos escancarados face a um mundo de aparências veladas, onde todo o visível esconde uma face invisível, “a vida mentirosa dos adultos” apresenta-se para Maisie como “um longo corredor com uma fileira de portas fechadas”, palavras de Henry James que Mangolte traduz nos vários planos em que a câmara subjetiva se depara com uma porta fechada. O escritor descreveu a sua Maisie como uma criança cuja inocência fora “saturada de conhecimento” e que desde cedo soubera interpretar os seus sentimentos; já a Maisie de Mangolte é “visionária” não pelo que sabe – ela não sabe nada, ou talvez saiba mais do que todos, apenas ainda não sabe que sabe –, mas pelo que ela vê, ou mais precisamente pelo que o seu olhar imagina a partir das cenas que observa – do latim imaginari, “formar uma imagem mental de algo”. What Maisie Knew acaba por oscilar entre observação e imaginação, realidade e fantasia, estabelecendo uma espécie de “comunicação muda” entre a visão da criança sobre o mundo dos adultos e a visão da cineasta sobre as relações entre homens e mulheres. E pelos olhos de Maisie/Mangolte, também o/a espetador/a reconhece no filme “todo um repertório de imagens e ecos guardados (…) na penumbra da infância, no armário escuro, nas gavetas altas, como se fossem jogos que ainda não tivesse idade para jogar”.
What Maisie Knew (1975) de Babette Mangolte, é exibido pela primeira vez na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, no próximo sábado, dia 11 de Fevereiro, às 15h30.