É normalmente descrito em termos superlativos: Xia nü (A Touch of Zen, 1971) já foi considerado o melhor wuxia, o maior feito do cinema de Taiwan, e um dos melhores filmes de sempre. Amado por críticos e um flop de bilheteira à época de estreia, Xia nü é também referido como o filme que deu respeitabilidade artística aos filmes de artes marciais e creditado por ter colocado o cinema chinês no mapa dos festivais internacionais depois de vencer um prémio em Cannes em 1975. Um filme essencial cuja cópia restaurada a Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema exibirá duas vezes num ciclo dedicado ao seu autor, King Hu (Hu Jinquan) e ao cinema wuxia de Taiwan. A não perder.
A escala fora-de-série de Xia nü começou logo pelas suas condições de produção relativamente atípicas. Preparado ao longo de três anos e estreado em duas partes que chegaram aos cinemas com um intervalo de um ano, foi o pináculo da carreira de King Hu.
O realizador nasceu em Pequim em 1931 e, como muitos seus contemporâneos, rumou a Hong Kong depois da fundação da República Popular da China em 1949. Foi na então colónia britânica que começou a carreira no célebre estúdio Shaw Brothers, primeiro como actor, depois como assistente de realização, tendo trabalhado no famoso Liang Shanbo yu Zhu Yingtai (The Love Eterne, 1963). Foi também em Hong Kong que se iniciou atrás das câmaras e assinou o celebrado Da zui xia (Come Drink with Me, 1966) com a grande Cheng Pei-pei. Só no seu filme seguinte é que Hu começou a filmar em Taiwan. É interessante o ciclo da Cinemateca associar King Hu ao cinema wuxia de Taiwan, pois ele é um autor também ligado a Hong Kong (onde parte do final de Xia nü foi gravado), também um centro produtor de wuxia à época, e, claro, às ligações que o género tem à China. Aliás, tanto Taiwan como, de certa forma, Hong Kong estão associados à preservação de uma série de visões alternativas da China e práticas culturais chinesas após 1949. Essas referências culturais são constantes no filme: do facto de Xia nü ser baseado numa das histórias da obra clássica de Pu Songling Liaozhai zhiyi (Strange Tales from a Chinese Studio) da dinastia Qing às pinturas que são um elemento central do início do filme, do poema de Li Bai no encontro dos amantes à influência da ópera de Pequim na música e em vários movimentos.
Mas voltemos a King Hu. Em Taiwan, Hu juntou forças com produtor Sha Yung-fong para fazer filmes para a Union Film Company, até então ligada à distribuição cinematográfica, onde assinou outro wuxia essencial, Long men kezhan (Dragon Inn, 1967), que Tsai Ming-liang homenagearia décadas depois no seu Bu san (Adeus Dragon Inn, 2003).
De certa forma, podemos ver Xia nü como a vingadora que constrói a teia onde todas as outras personagens se prenderão.
Seguiu-se um longo período de preparação de Xia nü que envolveu a construção de um estúdio ao ar livre, representando uma povoação inteira ao estilo da dinastia Ming, em Taiyuan, nos arredores de Taipé. A preparação do cenário incluiu uma série de operações meticulosas, tal como plantar vegetação e esperar que ela crescesse, e incendiar parcialmente parte do set antes das filmagens, para dar um ar de abandono mais convincente a alguns edifícios.
O método artesanal da concepção dos cenários está igualmente presente nas sequências de acção. Numa era pré-CGI, os espectaculares saltos das personagens foram conseguidos com recurso a trampolins escondidos entre a vegetação. Há uma preocupação com elementos de realismo, mesmo numa história largamente de fantasia.
O título original, Xia nü, pode traduzir-se como “guerreira errante”, em inglês qualquer coisa como female knight-errant, com o primeiro caracter, xia 俠, sendo o mesmo de wuxia 武俠. Embora a película conte com uma série de importantes figuras masculinas, a personagem do título, Yang Huizhen (Hsu Feng), é central e a sua relevância é tal que o filme pode ser, e foi, interpretado como feminista. De certa forma, podemos ver Xia nü como a vingadora que constrói a teia onde todas as outras personagens se prenderão. A metáfora da teia não é referida ao acaso. É precisamente com uma teia de aranha na qual se encurralam diferentes insectos que abre o filme, e planos de teias surgiram em várias alturas (embora tal possa também ser interpretado de outra forma, inclusive atentando ao elusivo conceito de Zen do título inglês do filme).
Na primeira parte, acompanhamos o processo de assombramento de Gu Shengzhai (Shih Chun), um “homem de letras”, pobre e sem grande sucesso, que vende os seus serviços de caligrafia e pintura numa loja da terra. O ar de hesitante indagação de Gu tem dois destinatários. Um, visível, é Ouyang Nian (Tien Peng), um visitante forasteiro que se revelará um capitão a mando das forças da polícia secreta do Bureau de Leste, sob controlo do eunuco corrupto Wei Zhongxian. O outro, invisível, é Yang Huizhen, uma presença que inspira Gu a ir espiar a casa abandonada ao lado da sua. As tabuletas de madeira pela povoação identificam místeres e cargos de antigos ocupantes, sendo também vestígios do passado, de pessoas que não são quem parecem, como o vidente cego (Bai Ying) ou o apotecário (Xue Han).
Vimos a saber depois, em flashback, que Yang é a filha de um reputado burocrata estatal que tentara, em vão, avisar o imperador da corrupção de Wei, acabando torturado e morto. Com dois generais leais, Shi e Lu (agora vivendo clandestinos como o adivinho e o médico), Yang fugira, tendo os agentes de Wei seguindo no seu encalço: Ouyang Nian, Men Da (Wang Rui), Xu Xianchun (Han Ying-chieh). Gu encontra-a – porque ela quer ser encontrada, atraindo-o com o seu canto poético ao som de guqin. Mas também os seus perseguidores a encontram, Gu sendo o fio que, sem ele saber, os conduz até ela. O resto do filme conta com lutas entre os dois campos, com Gu eventualmente pondo em prática as suas ambições estratégicas para ajudar o lado de Yang Huizhen.
Como bem notou Stephen Teo naquela que é a obra referência sobre o filme, a monografia King Hu’s A Touch of Zen (Hong Kong, 2006), a narrativa base do filme evoca o contexto político da Taiwan da Guerra Fria em que o filme foi produzido: o grupo de rebeldes leais e valorosos em fuga contra uma força tirânica funciona como alusão aos Nacionalistas chineses que se haviam refugiado em Taiwan contra as autoridades comunistas da vizinha China continental. Sem surpresa, boa parte dos nomes cimeiros desta obra, do realizador aos actores principais, eram de famílias “continentais” vindas para Taiwan (algumas via Hong Kong) com os Nacionalistas. Notamos também o pormenor de Xia nü ter sido finalizado precisamente num ano particularmente significativo para o governo de Chiang Kai-shek em Taiwan: 1971, quando a sua República da China perdeu o lugar da “China” na Organização das Nações Unidas da qual fora um dos membros fundadores mais importantes. A celebração dos rebeldes e a crítica a práticas de corrupção, vigilância e tortura estatais podem também ser vistas como uma crítica implícita, uma vez que Taiwan estava sob lei marcial.
Embora se possa descortinar alguma malaise política subjacente, o filme é importante essencialmente pelas suas qualidades cinematográficas. O talento de Hu para criar uma atmosfera de inquietação é evidente desde o início. Se, em vários momentos, o espectador partilha das pesquisas e descobertas de Gu Shengzhai, também o observa de fora, em jogos constantes de fingimentos e esconderijos. Como a montagem fragmentária de Hu, e os seus zoom-in e zoom-out, ora pensamos que vemos mais do que as personagens, ora nos é oferecido apenas um vislumbre. Mas, como Hu queria, como que nos movemos com o filme.
Como a montagem fragmentária de Hu (…), ora pensamos que vemos mais do que as personagens, ora nos é oferecido apenas um vislumbre
Ainda que a figura do poderoso monge budista Hui Yuan (Roy Chiao) seja crucial para o desenrolar de momentos-chave – incluindo o final psicadélico-transcendental – é Yang Huizhen, a sua discípula, a figura mais evasiva do filme, e, também por isso, a mais fascinante. Hu mostra-a como alguém que cumpre virtudes filiais impostas às mulheres – isso é evidente nas suas interacções com a mãe de Gu, por exemplo –, mas também subverte claramente a posição de subalternidade que dela é esperada. Yang Huizhen surge como a mais talentosa guerreira num mundo masculino (e o do cinema de artes marciais, não obstante importantes excepções, é bastante masculino). Várias vezes é ela que prevalece em combates com ferozes opositores, e em alguns momentos é explícito o contraste com Gu, a quem faltam qualidades de masculinidade marcial (wu). Yang tem uma constante postura de distância (como se estivesse lá estando noutra dimensão), também sugerida pela forma como é filmada. Essa retirada do mundo é tentada de forma radical mais tarde, quando decide recolher ao mosteiro e entregar a Gu o filho de ambos, que segue, sozinho, com ele nos braços.
A actriz Hsu Feng foi escolhida por King Hu, entre milhares de candidatas, para Hong men kezhan, quando estava prestes iniciar um emprego como operária fabril, aos 16 anos. Xia nü tornou-a numa estrela, mas, curiosamente, ela quase abandonou a representação quando se casou. Voltou depois ao cinema como produtora, tendo estado ligada a obras essenciais como Ba wang bie ji (Adeus Minha Concubina, 1993) – que também triunfaria em Cannes –, e financiou o restauro de Xia nü (uma encomenda do Ministério da Cultura de Taiwan ao Taiwan Film Institute).
Aqui, a sua Yang Huizhen protagoniza as mais extraordinárias sequências de luta do filme. Desde logo o icónico confronto na floresta de bambu, homenageado explicitamente tanto em Wo hu cang long (O Tigre e o Dragão, 2000), de Ang Lee, como em Shi mian mai fu (O Segredo dos Punhais Voadores, 2004), de Zhang Yimou. A conclusão desse combate, com a sua sucessão de saltos e um mergulho em picado de espada em riste, é exemplar. Igualmente memoráveis são as cenas de fuga por entre a paisagem rochosa, filmadas no belo parque nacional de Taroko no leste de Taiwan (no filme vê-se também o templo budista Changuang, que existe realmente no local) –, que nos levam também a notar a importância crucial da paisagem para o filme. Hu tira partido das formações geológicas que funcionam como portais, de ameaça e também de refúgio. A longa luta nocturna na casa “assombrada” é ela própria um assombro, culminando no choque de Gu pela escala de violência que ajudara a planear. O riso dele transformando-se em terror; a violência não como jogo de entretenimento, mas como meditação sobre o horror que os humanos são capazes.
O uso meticuloso de luz e cor – o director de fotografia Hua Hui-ying tem um trabalho notável, a que o restauro da versão de 180 minutos faz jus – e as coreografias de luta da autoria de Han Ying-chieh e Pan Yao-kun – são elementos essenciais do filme. E claro, o cinema de King Hu é um cinema onde a montagem é crucial – além do argumento e da realização, Hu também co-assinou a montagem. Temos aqui uma obra que combina artes marciais com suspense, história de espionagem com elementos de terror e drama. Tecnicamente, há que chegue para inspirar teses, mas destacaria aqui a instância surpreendente de uso de split screen. Tal já foi visto como possível influência de Hollywood no cinema de Hu, mas talvez haja paralelos com obras feitas em Taiwan [lembramo-nos, por exemplo, do uso memorável de split screen num pequeno filme de 1970, Jia zai Taibei (Home Sweet Home), de Pai Ching-jui].
O estrondoso fracasso comercial do filme levou ao afastamento de Hu da Union Film Company, e o seu filme seguinte, Yingchun ge zhi fengbo (The Fate of Lee Khan, 1973) foi produzido em Hong Kong. Não voltou a ter tamanha liberdade orçamental e criativa, mas continuou a filmar wuxia, inclusive com os mesmos actores. Os seus filmes influenciaram colegas mais jovens, como Tsui Hark, de Hong Kong, que produziria um remake de Long men kezhan, Xin long men kezhan (New Dragon Gate Inn, 1992), bem como os já mencionados Ang Lee e Zhang Yimou. Pelo menos uma das cenas sugere-nos que possa ter influenciado até Spielberg – não será, talvez, por acaso que Roy Chiao tem um papel em Indiana Jones and the Temple of Doom (Indiana Jones e o Templo Perdido, 1984).
O ciclo da Cinemateca Portuguesa “King Hu e o Cinema Wuxia de Taiwan” oferece uma oportunidade de (re)ver em sala não só este e outros filmes importantes de Hu, mas também a possibilidade de conhecer trabalhos mais raros de realizadores seus contemporâneos que fizeram wuxia em Taiwan nos anos 1960 e 1970.
A Touch of Zen passa na Cinemateca Portuguesa–Museu do Cinema no sábado, 4 de Março, às 21h, e terça-feira, 7 de Março, às 15h30.