Caderneta de Cromos é um questionário breve, impertinente quanto baste, mais ou menos imbecil, sobre o mundo do cinema, em geral, e sobre o mundo em toda a sua inteireza, em particular. O “visado” desta edição pratica boxe, realiza filmes e dá aulas na faculdade. Tem uma cadela, dois filhos e leva uma vida paralela pelas lavandarias da cidade de Lisboa. Apelida José Manuel Costa de super-herói (a culpa também é nossa) e o campeão do snooker Ronnie O’Sullivan está, para ele, ao nível de um Robert Bresson ou de um Frederick Wiseman. Pedro Florêncio é a mais recente vítima do nosso questionário exaustivo, que não deixa pedra sobre pedra no que diz respeito a assuntos tão candentes como móveis do IKEA, jogos de snooker e praxes académicas. Ah, e cinema, pois.

1. Co-realizaste Banana Motherf*cker (2011) e montaste Papá wrestling (2009), uma splatter comedy com um culto imenso no Motelx. E depois, ouvi dizer, bateste com a cabeça num móvel de tua casa e fizeste À Tarde (2017), documentário contemplativo à maneira de James Benning e Wang Bing. O móvel não era do IKEA pois não, que aquilo é tudo madeira oca?
É muito curiosa a coincidência da escolha da palavra “contemplativo” – e o modo como está empregue na questão – com a tua suspeita sobre um eventual “encontrão” com o móvel do IKEA. Passo a explicar: embora eu não o tivesse formulado assim na altura, o meu projecto de mestrado consistiu precisamente em tentar demonstrar como o termo “contemplativo” não é o melhor para designar uma série de filmes habitualmente asssociados a essa categoria. Isto porque alguns filmes de que lá falei, como o Ten Skies (2004) do Benning, o Five (2003) do Kiarostami, o Caiyou riji (Crude Oil, 2008) do Wang Bing, ou, por fim, o modesto filme que eu realizei nesse projecto, intitulado Cinco Lugares – que nunca expus em lado nenhum, mas que aproveito para o dar a conhecer aqui em primeira mão – dizia eu, alguns desses filmes só muito enganosamente (ou só para um olhar mais desatento) podem ser reduzidos a filmes de paisagem em que “nada se passa”, ou onde a sua qualidade principal consiste em ver o tempo a passar, num estilo semi-meditativo. Ainda que essa experiência do tempo a-narrativo sem situações dramáticas mais evidentes seja importante, a verdade é que a maioria dos filmes do Benning, do Wang Bing, mas também do Ozu ou da Akerman [que foram grandes influências para mim entre os anos na produtora Clones e filmes como o À Tarde ou o Turno do Dia (2018)], são, na verdade, até rápidos demais, tendo em conta a densidade do modo como pensam e nos convocam a pensar com eles.
A este propósito, dou um exemplo: todos os anos mostro nas aulas o News from Home (1976) e, a cada novo visionamento, vai-se tornando evidente para mim que o filme, que à primeira vista parece ser lento, é na verdade demasiado veloz, tendo em conta a espessura das suas formas e a quantidade de ideias que abundam de plano para plano, ou que se vão acumulando (justapondo) à medida que progride. O que significa que a cada novo visionamento, somos confrontados pela poética particular, por uma quantidade astronómica de coisas que há para ver e pensar, sem simplesmente podermos dar-nos ao luxo de nos deixar levar desprendidamente pela cadência das imagens. E aqui chego ao teu móvel do IKEA: na verdade, a parecer-se com uma peça desse tipo, um filme do Benning ou do Wang Bing corresponde mais àqueles móveis que, muito ao engano e arrogantemente, levamos para casa com a confiança saloia de que seremos capazes de os (des)montar sozinhos… mas só para depois abrirmos o pacote e percebermos que nos metemos numa alhada, porque afinal a coisa não é assim tão simples e se calhar tinha sido melhor pagar os tais 40 euros extra para o virem montar a nossa casa. Ou seja, olhar para os filmes do James Benning ou do Wang Bing como “contemplativos” é semelhante (ou tão pouco exigente) como julgar um móvel pelas suas qualidades estéticas, pela sua superfície, sem realmente procurar perceber como o seu engenho interno faz parte da obra de um ponto de vista performativo (neste caso, que fique claro que não acho que os móveis IKEA sejam a metáfora mais justa, pois não são assim tão sofisticados; mas foi o exemplo que me deste e serve bem o propósito). Não estou a dizer que é preciso conhecer os dados todos sobre a produção dos filmes ou ter informações sobre a maneira como um filme foi feito para o perceber; estou a falar de um exercício crítico de decomposição ou disjunção das peças – um exercício de desmontagem que a estrutura (a montagem) dos próprios filmes sugere que façamos nos seus intervalos, à semelhança daquele quadro negro do Ad Reinhardt que, só depois de olharmos fixamente durante alguns minutos, nos começa a revelar a grelha de camadas de negro distintas que o subdividem internamente. O problema é que, sem essa implicação do espectador numa relação demorada (pensativa) com as peças, é mais confortável “ver”‘” filmes do James Benning ou do Wang Bing pelo prisma da contemplação (ou do slow cinema, para alguns), sobretudo para quem não gosta deles por achá-los “preguiçosos”, ou porque são produtos de um tempo em que a desacelaração e as longas durações do cinema de autor são uma mera tendência de oposição ao cinema mainstream. Pelo contrário: de um ponto de vista “dromológico”, para citar o Paul Virilio, a velocidade do cinema do Benning, que muito me fascinou e influenciou nessa altura, tem menos que ver com casos de um dito cinema contemplativo actual e muito mais com a montagem intelectual de um Eisenstein ou de um Godard, por exemplo, justamente porque a velocidade do cinema não é só a velocidade das imagens, é a velocidade das ideias e das sensações – enfim, é a lógica da sensação que cada filme é capaz de formular à sua maneira (falando em lógica, não é acaso que o Benning se tenha formado em matemática).
Neste sentido, e para responder à tua pergunta mais lapidarmente: a ter havido uma pancada na cabeça, foi o móvel do IKEA que bateu em mim, pois, entre o À Tarde e o Papá Wrestling, podes ter a certeza que é o segundo que se enquadra mais na categoria de cinema contemplativo – e que coisas já se providenciaram devido à contemplação daquela sequência no corredor! Aprendi imenso com a montagem do Papá Wrestling em termos práticos, nomeadamente uma coisa que, na teoria, viria a reaprender mais tarde com algo com o Frank Capra: ele dizia que a velocidade dos seus filmes se alterava surpreendentemente nas projecções em tela grande, ao ponto de, daí em diante [julgo que do American Madness (Loucura Americana, 1932) para a frente, se não estou em erro], passar a modificar a velocidade das performances dos actores no set de filmagens, pedindo-lhes para acelerarem os diálogos e os gestos, já prevendo a sua desaceleração no ecrã (isto é montagem no sentido mais soviético possível: uma pré-visão). Mas a verdade é que o Papá é um filme em que os choques emocionais estão à vista, na superfície da imagem, e o Banana Motherf*cker também não foi mais que um pretexto para fazer truques à Méliès – pelo que é justíssimo dizer que o verdadeiro cineasta desse filme (não confundir com realizador) é o Fernando Alle, o engenheiro responsável pelos efeitos de gore e pelo universo que esses efeitos geram –, enquanto que, num filme como o À Tarde, que é apenas um singelo exercício (ou estudo, para ser mais pomposo e colar-me aos modos de ver da pintura) de montagem, o que me interessava era já o que podia estar por trás da imagem, ou uma espécie de “montagem à distância”, para citar o Pelechian, onde todos os elementos do filme estão numa relação intelectual subordinada ao seu movimento rítmico.
Há uma grande obra de arte que pensa formalmente a fundo esta ideia e que, alguns anos mais tarde, já na tese de Doutoramento, me deu muitas respostas concretas sobre estas questões que aqui trouxe: chama-se Parlatório e é da autoria do Tomás Maia e do André Maranha. Trata-se de uma parede com duas faces: numa delas – a “traseira” – é revelado o engenho mecânico que está por trás do efeito assombroso (qual “contemplativo” qual quê…) de uma porção de areia que, de meia e meia hora, cai e se acumula na outra face – “à frente” – durante alguns minutos, no interior de uma pequena janela. O engenho mecânico na parte de trás da parede, mais do que revelar a poética da peça, lembra-nos que a arte não produz só sensações, que é também um pensamento (visual, neste caso), ou uma forma que pensa, para citar o Godard. Vi essa peça duas vezes ao vivo, numa delas recentemente na Galeria ZDB, onde foi especialmente fascinante testemunhar uma pedagogia da visão a funcionar (um pensamento a formar-se) no espaço cénico, a saber: as pessoas que rapidamente se desinteressavam pela imagem “principal” da areia que caía na janela da frente, depois de darem a volta à peça e se depararem com o seu mecanismo criador, voltavam ao lugar de origem para “contemplar” tudo de novo com outra postura, paciência e humildade perante a “simples” imagem da areia a escoar e acumular-se no interior da janela. Esse movimento circular do espectador é a melhor metáfora do diálogo que todas as grandes obras procuram estabelecer, ou do trabalho activo que se lhe pede, e foi isso que com o meu projecto de mestrado, depois com o À Tarde e Turno do Dia, comecei a tentar praticar. A julgar pelo que oiço aqui e acolá sobre o cinema do James Benning ou do Wang Bing, tanto de gente que os adora como os detesta, é evidente que tem faltado dar essas voltas às peças (aos filmes), isto é, ir além de considerações literalmente superficiais, embora muitas dessas considerações, por vezes, tenham imensa qualidade crítica. Mas esse é um tipo de juízo estético ou de análise semiótica que não me interessa muito, ou cada vez menos, mesmo quando é um discurso muito bem formulado nos seus termos.
2. Não praticas wrestling mas boxe. Até que ponto é uma prática terapêutica que complementa o facto de andares pelo território pantanoso do cinema português, cheio de divas e divos que davam óptimos sacos de pancada?
Mais do que qualquer outro desporto, o boxe é uma óptima matriz para pensarmos sobre como o nosso método (num sentido alargado: não só a maneira de chegarmos a uma meta, mas mais a maneira como fazemos tudo, seja como organizamos um filme ou o nosso quarto) é o que nos aproxima da nossa verdade e como a nossa verdade é o que mais temos de realmente nosso, para o bem e para o mal (“o método é a verdade das pessoas”, como ouvi o João Mário Grilo a dizer recentemente a propósito do falecimento do Godard, numa sessão honorária no Nimas). Não por acaso, as Meditações do Marco Aurélio (um livro que adoro e que está para a auto-ajuda contemporânea como o James Benning está para o “cinema contemplativo”, ou o Wiseman para o “cinema observacional” – mas a este chavão lá irei mais no fim) estão cheias de analogias com o boxe. Também não por acaso, alguns dos mais belos filmes da história do cinema, mais do que serem sobre boxe de um ponto de vista temático, formalizam a própria lógica da sensação do boxe, seja enquanto modo de sobrevivência, como no caso do City Lights (Luzes da Cidade, 1931) (Chaplin) ou do Belarmino (1964) (Lopes), ou enquanto dilema (co)existencialista, como no caso do Boxing Gym (2010) (Wiseman) ou do Heat (Heat – Cidade Sob Pressão, 1995) (Mann) – sim, o Heat é um filme de boxe, basta ver como está estruturado por rounds. O que é belo nesses filmes é o facto de haver uma baixíssima probabilidade dos seus protagonistas triunfarem metodologicamente no mundo em que vivem – e, ainda assim, nós estamos do lado deles porque há algo de magnetizantemente verdadeiro no seu carácter e algo de profundamente comovedor nos combates que travam consigo mesmos e com o mundo que os rodeia.
Serve isto para dizer que, no cinema português, mais do que as divas e divos, os sacos de pancada mais interessantes, para mim, são os que travam as lutas mais difíceis com as suas metodologias mais inovadoras, isto é, não só lutas obstinadas contra todas as probabilidades de “sucesso” (seja lá o que essa palavra quiser dizer), mas lutas desajustadas do seu próprio tempo – métodos intempestivos, portanto. Falando do que conheço, falo de gente como o Adriano Mendes, o Pedro Henrique, o Afonso Mota, a Renata Ferraz ou a Madalena Fragoso e a sua “trupe d’A Casa e os Cães (2019)”, que têm em comum o facto de terem demorado 5-7 anos a fazer os seus filmes com base naquilo que o Ricardo Vieira Lisboa, neste mesmo site e num muito certeiro texto, designou como um “cinema da amizade”. Esse cinema é muito mais do que um cinema feito por amigos ou sobre a amizade, claro. É um cinema em que a amizade é um modo e um método de compreensão da vida e, simultaneamente, a busca de uma verdade comum através do cinema. E é um cinema que, mais do que deixar bons ou maus filmes, até porque nalguns casos escapam a esse formato, nos brinda com exercícios sobre o que o cinema ainda pode ou está para ser (vejam o instagram da Madalena, que tem mais ideias sobre as potencialidades performativas do cinema lá dentro que muitas Palmas de Ouro, Ursos de Prata ou outra quinquilharia de prestígio dos últimos vinte anos). Neste sentido, o Pedro Henrique toca na ferida certa quando lembra percursos de jovens cineastas improváveis que ficam pelo caminho se não houver aquele “golpe” de sorte (i.e. aquele prémio ou selecção num festival importante que lhes permita continuar a praticar). Dei exemplos de cineastas que me são próximos e, como tal, o meu acesso à “engenharia por trás das imagens” (estou a citar-me a mim próprio na primeira resposta, peço desculpa por isso) é privilegiado, mas posso falar de outros cineastas (ou filmeurs, para recorrer a uma óptima expressão do meu camarada Luís Mendonça) que conheço menos bem, mas cujo trabalho me tem deixado a fervilhar de entusiasmo a cada novo objecto fílmico (chamar-lhes “filmes” é manifestamente pouco): o Basil da Cunha ou o Raul Domingues, no contexto de um hipertrofiado e calendarizado mercado de visibilidades, fazem coisas onde é realmente difícil vislumbrar a amplitude do método que praticam – o cinema como uma ferramenta de labor contínuo, aqui pensando no tremendo Terra que Marca (2022) e também no que o Raul disse, após o filme, sobre ter largado várias vezes a câmara de filmar durante a rodagem porque a avó lhe passava a enxada para a mão.
Se não avanço mais nomes, é precisamente porque esses trabalhos manuais do nosso cinema são cada vez mais difíceis de encontrar nas “montras centrais” de exibição. E daí que falar de cineastas portugueses como sacos de pancada ou lutadores de boxe seja ficar pela metade, pois essa foi em grande medida uma história do cinema português do séc. XX (de que o Manoel de Oliveira, como sabemos, foi o grande protagonista). Já hoje, as lutas mais difíceis do cinema português são travadas por produtores e programadores: veja-se o caso do NOVO CINE, concebido pela Madelana e pelo Afonso, que nos propõe outros ritmos de relação com os filmes justamente em defesa de um espaço de pensatividade que resista ao ritmo do dito ‘consumo de qualidade’, mas também os projectos de distribuição da The Stone and the Plot, do Daniel Pereira e o Miguel Patrício, que nos propõem ciclos de três filmes (!) japoneses por uma ou duas vezes por ano, mas que oferecem mais ideias de cinema nesses pequenos ciclos que secções inteiras de festivais de cinema de classe A. O mesmo se pode dizer de professores e investigadores que trabalham há anos em condições precárias (que não vou aqui nomear por serem tantos numa actividade ainda mais desproporcional em termos de qualidade versus oportunidades de vínculo profissional) e que, por tudo o que já fizeram pelo cinema português, deviam ter há muito um trono vitalício numa instituição de peso para nele se sentarem até ao fim dos seus dias. O que é que os impede de chegar às pessoas que deviam chegar? Contra o que é que estes filmeurs, programadores, produtores, professores e investigação remam? Contra uma certa tendência da realização, programação, produção, ensino e investigação de qualidade, diria eu, para citar um texto seminal da nouvelle vague. Como é óbvio, não estou a dizer que algo ou alguém conspira contra eles propositadamente, mas sim que há uma espécie de lei da gravidade – uma “métrica de valores”, para usar um chavão do barómetro da qualidade académica – que os exclui por não haver garantias prévias na metodologia que aplicam.
Se parece que estou a romantizar, é preciso dizer que, tal como nos filmes que mencionei, estou na verdade a falar da tristeza que é certas metodologias radicalmente criativas – falei de algumas que certamente representam muitas outras que desconheço – estarem condenadas ao “fracasso”, e isso é triste não só porque noutras circunstâncias teriam mudado para melhor a história do cinema de maneira muito ampla, mas sobretudo porque o jogo que hoje jogam está inclinado (por variadíssimas razões, não só económicas ou políticas) contra o seu modo de estar na vida e no cinema. Só que há algo de muito belo quando, por um conjunto de improbabilidades, mesmo que por breves momentos ou por uma só noite, as ideias e as imagens (por vezes, também as palavras que as acompanham) se alinham como astros, tal e qual como naquela sequência de boxe do City Lights, na qual a câmara de filmar não podia estar noutro lugar – caso contrário, o método do underdog não funcionaria (citando a Simone Weil: “A beleza é a harmonia entre o acaso e o bem”). A posição (e não só a perspectiva) da câmara de filmar, nesse caso, simboliza as condições de possibilidade que permitem certos métodos avançar.
Fica aqui o meu elogio sentido (e longo, desculpem lá qualquer coisa) aos cine-boxeurs do cinema português, em honra do saudoso Belarmino Fragoso, esse protagonista-David de um gigantestco filme/cidade/país-Golias que, como se sabe, está contra ele do início ao fim.
3. No filme Turno do Dia, foste entrevistar operadores de chamadas do INEM. Nem sempre o retrato que fazes é generoso com a maneira como estes profissionais operam. Como os convenceste a ceder a sua imagem, além daquela encomenda de presuntos ibéricos que mandaste vir de Espanha e que sei que te obrigou a pedir um empréstimo ao banco e ao Carlos Santos Silva, vulgo “o amigo do Sócrates”?
Uma coisa é certa: se o filme tivesse tido outro alcance mediático, não havia perna de presunto que aguentasse [vide o caso do Titicut Folies (1967) ou do Primate (1974) do Wiseman]. Ainda assim, no que respeita a “empréstimos”, quando tudo parte de uma dádiva, como foi o caso, ninguém fica a dever nada a ninguém. A equipa de comunicação e marketing do INEM recebeu-me, ouviu as minhas intenções e deixou-me fazer o filme que eu quis por uma razão bastante pragmática: seja um filme de autor ou peça jornalística, êxito de box office ou flop, tudo o que contribuir para mostrar como o mundo das urgências funciona, nem que seja a uma só pessoa (sublinharam eles), já é serviço público válido. Basta ver o filme para se perceber o desespero estrutural que está na base desse critério que me abriu as portas.
Mas essa é uma dimensão documental do filme que não me interessa nem nunca me interessou muito enquanto realizador, sinceramente. Do mesmo modo, nunca procurei ser generoso com os profissionais do INEM, mas sim com as personagens do filme. Isto é, na minha mesa de montagem (que, repito, é uma mesa que não se deve confundir com a mesa de “pós-produção”), esses profissionais tornaram-se desde cedo em personagens de um mundo ficcional como o de qualquer romance ou pintura. Nessa mesa onde tudo se escreve, eu procurei que cada uma delas tivesse um espaço justo para existir à sua maneira, sempre com uma complexidade mínima, mas também sempre em função de um sentido geral num filme que se propõe a pensar o acto de escuta num contexto que se parece com uma panela de pressão. Entre outras coisas, é também um filme sobre o modo como nenhum escutador, por mais técnicas de comunicação que tenha ao seu dispor, ouve a mesma coisa do mesmo modo – reformulando um princípio heraclitiano, poderíamos dizer que nenhum homem escuta a mesma coisa duas vezes. No meio de tudo isso, acabei por ser eu o maior beneficiário do filme face aos múltiplos pontos de escuta que fui conhecendo nos visionamentos públicos onde estive presente e aos quais, no final, se seguia uma conversa ou discussão – sobretudo quando lá estavam operadores do INEM! Fazer o filme foi uma bela maneira de aprender a ver cinema por dentro, e essa tornou-se, desde então, na razão principal para eu querer continuar a realizar exercícios cinematográficos (não lhes chamo “filmes”, pois nem sempre o são).
4. Se alguém se sentir mal, ligas a quem primeiro: ao 112 ou directamente ao Papá Wrestling? Ouvi dizer que chega mais rápido… E que faz alta respiração boca a boca.
Como já se percebeu, eu falo pelos cotovelos, por isso não rejeitaria a oportunidade de ter uma boa conversa com um operador do INEM, nem que fosse para lhe demonstrar que o meu filme serviu, entre outras coisas, para me doutorar em telefonemas de urgência médica – é um facto, sou muito eficaz a pedir uma ambulância desde então. Mas esta pergunta tem água no bico porque estás a provocar o animal político que há em mim (e no leitor que saltou para esta questão directamente). Como pai de uma filha pequenita, estou agora a aprender a lidar com o momento fatal dos dias em que se escolhe que desenho animado ver e, sempre que posso, tento inclinar a escolha a favor d’A Ovelha Choné em detrimento da Porquinha Pepa. Portanto, para não me comprometer politicamente, vou escolher uma terceira via e indicar uma das minhas personagens de eleição: o Vincent Hanna (Al Pacino) do Heat, que é um bom meio termo entre o Papá Wrestling e o 112, e que tem a vantagem de saber primeiros socorros mas também saber apertar com a malta quando é preciso. E sabemos que podemos contar sempre com ele pois, mesmo com a enteada a morrer no hospital com os pulsos cortados, o homem não resiste a responder a uma action call.
5. És um cinéfilo. Ele é Wiseman, o assunto do teu doutoramento e livro, Esculpindo o Espaço. Ele é Wang Bing. Ele é Benning. Ele é – sei que é uma nova paixão – Ebrahim Golestan. Bem, face a tudo isto pergunto-te: estás mesmo a ver se arranjas desculpas para não veres os cinco ou seis Avatars e sobreviveres a isso socialmente, é isso?
Há um comentador semanal da nossa praça mediática que diz uma coisa muito estúpida (entre várias) do género: “ser de direita ou de esquerda é uma categoria que varia consoante o tempo e lugar”. No entanto, “cinéfilo” é uma categoria à qual essa leitura se aplica perfeitamente, pois está sujeita a tipos de entendimento muito distintos consoante o tempo e o lugar (e os modos) em que nos relacionamos com o cinema. Há um célebre texto da Susan Sontag, intitulado «The Decay of Cinema», que foi (mal) interpretado como um lamento nostálgico ou exagerado sobre o fim do cinema à entrada do séc. XXI. Mas o que ela fez nesse artigo, no final, foi convocar um “novo tipo de amor cinematográfico”, que já não poderia somente ser o de uma filiação afectiva ou pulsional pelos filmes – o jogo de palavras importa muito, neste caso, pois a última palavra do artigo é deliberadamente separada com um hífen, cine-love, para aludir à necessidade de criar – de “fazer nascer” – um novo conceito e, como tal, propor um novo tipo de relação com as imagens do cinema, um tipo de relação necessariamente diferente da que predominou ao longo do séc. XX.
Ora, aquilo de que mais gosto na obra dos nomes que mencionaste (Wiseman, Wang, Benning e, agora, também o Golestan, entre poucos outros que poderias aí acrescentar, dos quais não quero deixar de fora a Akerman ou o Deligny) é justamente o horizonte de possibilidades que se abre nas suas práticas, que não se esgotam de modo algum na realização dos seus filmes, mas que se consubstanciam num diálogo que nos convoca a partir do rasto de obras, pensamentos ou fragmentos que nos deixaram. É evidente, para mim, que os seus filmes são apenas estações de serviço privilegiadas ao longo de uma auto-estrada, ou miradouros secretos ao longo de um trilho na montanha, locais onde nos encontramos com a sua mundivisão depurada e a partir dos quais nos é oferecida uma vista sobre a paisagem que eles foram ou têm vindo a esculpir ao longo do tempo. São as mesmas estações ou miradouros onde também eles se encontraram com alguma coisa que é sempre da ordem do acaso e que produziu novas possibilidades de cinema – a este respeito, há poucas coisas mais potentes na história do cinema do que Khaneh siah ast (A Casa é Negra, 1963), justamente um filme que nasceu do encontro improvável, sob o signo da coragem, entre um invulgar método de produzir do Golestan e uma ainda rara forma de sentir da Farrokhzad.
A relação amorosa que me interessa estabelecer com o cinema tem algo a ver com a maneira como a visão desses cineastas nos vincula à vida, (re)inscrevendo-nos nela sob o efeito de uma nova percepção [há um grande filme sobre isto em que deves estar a pensar e que se devia mostrar em todas as escolas ou, no mínimo, encabeçar qualquer Plano Nacional de Cinema: They Live (Eles Vivem, 1988), do grande John Carpenter]. Esse vínculo, essa filiação, é sempre de ordem social e política e, como tal, os Avatars não escapam a esta ordem de trabalhos, pelo contrário: tendo em conta o pouco tempo de que disponho, são cada vez mais esses os filmes que, a par de raros ciclos como o dos Mestres Japoneses Desconhecidos ou o do Cinema Iraniano que está a acontecer da Cinemateca, procuro não perder e que me obrigo a ir ver em sala (seja lá ela qual for) para com eles medir a pulsação do mundo exterior – na melhor das hipóteses, para nela renascer enquanto espectador; na pior, já que dormir em casa tem sido coisa rara, porque é sempre uma boa oportunidade para sonhar um pouco.
6. Também sei que és um exímio jogador de snooker e seguidor atento da modalidade. Quem ganhava – e porquê – num jogo de snooker entre estas personalidades: Paulo Branco versus Pedro Borges; Francisco Ferreira versus João Canijo; Pedro Costa versus Pedro Costa; Joaquim Sapinho versus Vítor Gonçalves; tu versus Tom Cruise?
O adjectivo “exímio”, no snooker, está ainda mais dependente da relatividade das circunstâncias que a palavra “cinéfilo”. Se há algo catártico no snooker, é a possibilidade de até as maiores lendas receberem muito recorrentemente banhos de humildade num dia mau. Porque, no fundo, o que é mais potente no snooker (como em todos os desportos individuais, mas desde cedo no teatro) é que o verdadeiro adversário (agon) está sempre no interior de cada jogador, dessa forma revelando que, por princípio, todos somos dividuais, não indivíduos.
Se falei de cineastas propriamente ditos nas últimas respostas, aproveito esta pergunta (que provavelmente nunca me fariam ou farão em mais nenhuma circunstância “cinéfila”) para dizer algo que sempre quis deixar registado: um dos maiores cineastas vivos chama-se Ronnie O’Sullivan. Foi ele que realizou à frente da câmara alguns dos “filmes” mais memoráveis e importantes da minha vida e de muitos outros (deixo esta curta-metragem, apenas, que é a mais famosa) e que me ensinaram algumas das mais importantes lições sobre como o cinema é a arte mais democrática no que respeita à responsabilidade de treinarmos a nossa qualidade de atenção. Que o cinema tem o poder de nos condicionar e aprisionar, isolando-nos uns dos outros, mas também a capacidade (e responsabilidade) de nos libertar, religando-nos através dos gestos [cf. Un condamné à mort s’est échappé ou Le vent souffle où il veut (Fugiu Um Condenado à Morte, 1956)]. O O’Sullivan é um cineasta-performer do calibre de um Buster Keaton, de um Charlie Chaplin ou de uma Chantal Akerman – e isso ainda está por ser estudado seriamente.
Dito isto, aqui vão algumas previsões (de acordo com a pontuação à melhor de 19 jogos, ou seja, quem chega primeiro aos 10, ganha):
Paulo Branco 9 vs 9 Pedro Borges. Jogo disputado até à última bola – a lendária bola preta na “negra” – em que, no caso, ganha quem estiver a jogar em casa. Se for no Facebook, o Pedro Borges ganha com uma bola segura à tabela; se for para os lados das Avenidas Novas, onde Paulo Branco está habituado a ter casa cheia, ganha ele à primeira oportunidade de longa distância, sem hesitações.
Francisco Ferreira 9 vs 10 João Canijo. Como no embate anterior ganhou o Francisco Ferreira, pois sobre o olho negro triunfou a sua razão sobre o Sangue do Meu Sangue (2011), o embalo de Berlim 2023 dá uma vitória moral antecipada ao Canijo neste embate, até porque tem um taco na mão e uma estátua de urso prateado para arremessar na outra. É um resultado que nos permite ficar à espera da desforra – que, espero, se realizará num Big Brother inteiramente composto de críticos e realizadores portugueses. E o Bruno de Carvalho também lá para o meio, claro.
Pedro Costa 10 vs (F) Pedro Costa. Sendo o jogo num lounge de Q&A de um festival de art house cinema, é uma vitória do Pedro Costa, que brilha perante um público radiante, por falta de comparência de Pedro Costa, que não vai a essas coisas.
Joaquim Sapinho 2 vs 10 Vítor Gonçalves. Só não é um “whitewash” (quando um dos jogadores fica a zeros) porque aquele primeiro plano do Corte de Cabelo (1995) e alguns frames debaixo de água no Deste Lado da Ressurreição (2005) são bolas do caraças (uma delas foi um “chouriço”, ainda assim).
Eu 1 vs 10 Tom Cruise. Também só não levo um “whitewash” porque a minha simbólica vitória [devido ao Cruise meter a preta por engano, já bêbado e sorridente em modo Cocktail (1988)] servir para estabelecer as devidas distâncias entre o aprendiz e o mestre, que é (e para sempre será) esse outro grandíssimo cineasta-performer: Paul Newman.
7. Dás aulas na NOVA FCSH na área de cinema, nomeadamente ministras História do Cinema, cadeira de licenciatura. Qual é o teu período favorito entre estes (escolhe e fundamenta dois, pelo menos): a Escola Soviética, o Expressionismo Alemão, o Neo-realismo Italiano, a Nouvelle Vague, a Nova Hollywood e os Telefilmes da SIC nos anos 90.
Esta é fácil: a Escola Soviética e os Telefilmes da SIC nos anos 90.
O primeiro porque é o caso de estudo na história recente da humanidade em que ficou claro que, a haver uma proposta alternativa para a maneira como vivemos e habitamos actualmente o planeta, o cinema tem de estar na dianteira da mesma, sendo para as comunidades por vir o que os punhos são para o lutador de boxe (um cine-punho, como lhe chamou o Eisenstein). O segundo porque a melhor forma de explicar seja a quem for como o cinema nos molda desde pequeninos é falarmos das imagens que nunca nos largaram. Eu tenho duas ou três sempre na manga, sendo que de uma delas nunca falo em aula, mas posso revelar aqui: aquela lambidela invertida que um Joaquim de Almeida a fazer de padre e mocado de heroína leva da Cristina Câmara no Tentação (1997). Pobres dos que por poucos anos de diferença tiveram de crescer com o beijinho do Spider-Man (Homem-Aranha, 2002) como referência erótica modelar – é caso para dizer que cada tempo tem o modo de beijar que merece.
8. Conheço alguns dos teus heróis: Wiseman é um deles. Também há o director da Cinemateca, José Manuel Costa. Ora bem, se eles fossem super-heróis, que poderes teriam, além daquilo de se transformarem em moscas e se colarem às paredes das instituições, estilo Loja do Cidadão ou que é?
Eles já são super-heróis, acho eu.
O super-poder do Wiseman é o de, através dos seus filmes, modificar a nossa percepção do quotidiano. É por isso que, como disse (lá bem) atrás, e como procurei tentar provar na minha tese de doutoramento, dizer que ele faz “cinema observacional” é falhar o alvo redondamente. Não só porque a noção de observação silenciosa (fly on the wall) pressupõe uma distância de segurança que não existe em nenhum dos seus filmes – estamos sempre em queda livre, a deslizar dentro de nós próprios, ainda antes de percebermos que não há terra firme para pisar – navegamos em pleno e ondulante alto-mar – mas também porque a experiência de um filme do Wiseman é a experiência brutal de um mundo que julgávamos compreender e que, afinal, nos é dado a tactear – o tacto dá-nos apenas uma imagem parcial do objecto que interpela, pressupõe uma relação sempre incompleta e diferida com o que tocamos; é uma relação cega, de certa forma, pois não nos permite aceder ao Todo, e isso é o verdadeiro impoder criador do cinema do Wiseman, a sua dádiva vital: permite-nos renascer dentro das paredes dessa instituição total que é a vida, pensá-la por dentro como se de um enorme filme se tratasse.
E o José Manuel Cosa é justamente um super-herói wisemaniano por excelência nessa enorme “loja do cidadão” chamada democracia. De forma bem mais subtil que os grandes heróis épicos da antiguidade clássica ou dos grandes géneros, é um daqueles heróis modernos que, todos os dias, fazem a diferença na sombra das instituições por onde passam e deixam a marca dessa passagem, com pequenos gestos seminais capazes de fundar uma escola no tempo.
9. Tens dinamizado a vida académica organizando ciclos ou mobilizando alunos para tudo o que é ciclo de cinema de autor. É uma nova maneira de instituir a praxe académica, do género: “Fodam-se vocês todos que a mim já ninguém me fode mais?” [citação de As Bodas de Deus (1999) de João César Monteiro].
Não sinto que mobilize ninguém, porque o movimento dos alunos já lá está – há uma força vital que já vem com um balanço que é impossível não ver, quando muito pode ignorar-se. Só é preciso prestar atenção às particularidades desse movimento – depois, desobstruir o caminho. Nesse sentido, uma faculdade sem contacto com o exterior ou sem cinema permanentemente a funcionar é como uma casa sem correntes de ar. No fundo, o que eu tenho feito é abrir portas para deixar o ar circular.
Mas ocorre-me outra coisa. Como já referi, tenho dois filhos pequeninos. Tenho também um cão para passear. Isso significa que, nos meses mais chuvosos, passo algum tempo nocturno em lavandarias self-service, que são uma espécie de templo urbano muito particular e que, em certa medida, fazem lembrar pequenas salas de cinema, principalmente se nos deixarmos maravilhar com o efeito stanley brakhagiano das máquinas que nos permitem ver a roupa a dançar no interior. No contexto de decadência actual das grandes cidades, tenho pensado que o crescimento exponencial destas lavandarias corresponde ao desaparecimento das salas de cinema de bairro, quase como se fossem a forma mais próxima que o inconsciente colectivo encontrou para continuar a proporcionar experiências da solidão essencial que é ver imagens numa sala pública em condições mínimas. Nessas lavandarias, há sempre uma personagem meio enigmática [espécie de keymaker do The Matrix Reloaded (2003)] que, volta e meia, sai de uma porta que nem sabíamos poder abrir-se, e que percebemos ser o responsável pela manutenção das máquinas e do espaço. Isto para dizer que, mais do que ciclos de cinema, o que eu tenho procurado fazer na faculdade, à semelhança desse funcionário fugidio, é garantir que os ecrãs estão a funcionar – e quem quiser que apareça. Como costumo dizer, se aparecer uma pessoa, já é uma vitória; se aparecerem duas, é uma celebração. Do quê? De algo bastante oposto ao que se celebra ruidosamente nas praxes de acordo com uma lógica hierarquizada: diante das imagens, diante do tempo, no silêncio das salas de cinema, somos iguais.
10. Por fim, gostava que comentasses esta frase: “O único preço da tua liberdade é a responsabilidade que tens por escolheres usá-la.” E mais esta: “Desequilibrar para reequilibrar.” Uma delas é proveniente do teu livro de cabeceira favorito, Notas sobre o Cinematógrafo, de Robert Bresson, a outra é de Gustavo Santos. Relaciona-as, tentando citar na resposta o nome de António Guerreiro e usando a palavra “acme”.
Acho que se percebeu que fui ficando cansado ao longo do questionário. Esta última pergunta foi uma espécie de golpe no fígado à entrada do décimo round. Não sei se me consigo levantar desta…
Revelo a minha fraqueza enquanto o árbitro contava até 8 à espera que me levantasse: meti as palavras e nomes que me deste no badalado Chatgpt para ver no que dava e só recebi de troco um “Sorry I can’t complete the request”. Em cima do ringue, por vezes a coisa dói mesmo – é nesses momentos que percebemos que estamos sozinhos e que não há tecnologia que nos salve. Tendo em conta que os estabelecimentos de ensino e todas as chamadas “indústrias criativas” vão passar por um mau bocado ao lidar com novas dores de crescimento, a complexidade desta última pergunta só abona a vosso favor: é sinal de que, mesmo que o mundo académico colapse, mesmo que as salas de cinema desapareçam, mesmo que o algoritmo do gosto vença o pensamento, por aqui se encontrará sempre um espaço de combate pelo cinema à altura dos mais resistentes.