No princípio, era o la-di-da. O la-di-da de uma música romântica, ainda que desprovida de letra, e porque desprovida de letra com todo o espaço para ser habitada pela omnipresença quente própria dos melhores filmes sobre a cidade de Nova Iorque. Porque esses filmes têm as suas personagens próprias, mas não escapam (felizmente) a essa personagem feita de uma composição de cores, sons, cheiros, relações humanas, demasiado assoberbante para que possa ser ignorada – a(s) vida(s) que corre(m) nesta cidade. Em Crossing Delancey (Amor à Terceira Vista, 1988), Joan Micklin Silver regressa à zona do mapa da sua primeira longa-metragem, Hester Street (1975), onde traçava um retrato de uma comunidade de emigrantes judeus que se estabelecia em Nova Iorque no início do século XX. Um filme de estreia que, contra todas as probabilidades (e contra todos os vaticínios das produtoras que se recusaram a financiar um filme parcialmente falado em iídiche e realizado por uma mulher), acabou por se revelar largamente lucrativo e colher os louvores da crítica. Em Crossing Delancey , há diferentes cidades que existem dentro da mesma cidade (pelo menos, dentro da Nova Iorque de 1988), na curta distância existente entre o Lower East Side e o Upper East Side e que separa o mundo de Izzy (Amy Irving), feito de serões literários e da ocasional garrafa de Moët Chandon, do mundo da avó Bubbie (Reizl Bozyk), que não se deixa impressionar ou convencer pela aclamação que Izzy faz da vida de uma mulher moderna e autónoma, dispensando de bom grado um relacionamento romântico (que acontecerá se acontecer, uma porta que não se fecha – ainda -, e nada mais). Afinal, a encruzilhada que se apresenta a Izzy não difere grandemente daquela que fazia a narrativa de Gitl (Carol Kane) em Hester Street, entre o respeito pela tradição e observação estrita dos preceitos religiosos e a porosidade ao bulício e valores da nova cidade. Para Bubbie, a neta está apenas a revelar-se incompetente na tarefa de encontrar um companheiro, e este “inconseguimento” tem uma solução fácil, que passa por contratar os serviços de uma casamenteira.
Izzy vive entre dois territórios, não apenas da cidade, mas do leque de opções que se apresentam a uma mulher solteira. A urgência da maternidade está em todo lado, literalmente close to home, numa fila interminável de grávidas que saem do prédio em que habita e para quem ela segura a porta. Mas a maternidade, que foi a opção de uma das suas amigas, tem também o seu lado horrífico – a mãe foge para o quarto durante a cerimónia de circuncisão do filho, insinuando-se que ela já se terá arrependido da decisão de criar sozinha uma criança (o pai encontra-se também escondido na rectaguarda, demasiado incomodado com o procedimento). Refém do filho e da necessidade de ganhar dinheiro pela criança para a criança, esta mãe acaba por deixar de ter lugar no grupo de amigas, que deixam transparecer o embaraço próprio das não-mães perante esta aniquilação social da pessoa-mãe.
O facto de Izzy se sentir confortável na sua condição de mulher autónoma, com uma carreira absorvente, com um apartamento de renda controlada, com uma vida social saciante, não impede que ela se deixe perturbar por sinais de opções rejeitadas, de portas que vão sendo fechadas. Não há como escapar às palavras da cantora decadente que ela ouve num snack-bar de cachorros-quentes, uma Blanche DuBois nos seus momentos derradeiros que por ali irrompe, sobrepondo a sua voz à música dos Run DMC que jorrava do ghetto blaster, parando o tempo e o filme (uma sobreposição de gerações, de mundividências, na mesma distância que separa Izzy da avó):
Será em mais um encontro na mesa da cozinha de Bubbie, o sítio de quase todos os seus encontros (o amor que se sente em casa), que ocorrerá esse singelo galanteio feminino, quando ela identifica, seduzida pelo olfacto, o eflúvio doce que dimana das mãos de Sam.
“Some enchanted evening, when you find your true love,
When you hear her call you across a crowded room,
Then fly to her side and make her your own,
Or all through your life you may dream all alone.
Once you have found her, never let her go,
Once you have found her, never let her go.”
Quando é que se passa do existir sozinho por opção para o existir sozinho sem opção?
A rejeição liminar de Sam (Peter Riegert) prende-se mais com uma questão de princípio do que com uma rejeição da pessoa em si, já que há um lado altamente vexatório, inadmissível para Izzy, na possibilidade de que encontrar o homem certo venha a resultar das maquinações de uma casamenteira profissional. Isso significaria perder terreno conquistado, seria um retorno forçado ao Lower East Side. O que não impede que Sam demonstre sentir-se perfeitamente à vontade quando caído no “território” de Izzy, num normal date, na maneira “certa” de fazer as coisas nos termos dela.
A canção que a cantora envelhecida entoava na cena a que aludíamos acima vem do filme de Joshua Logan, South Pacific (Ao Sul do Pacífico, 1958), partilhada aí por dois amantes (Rossano Brazzi e Mitzi Gaynor), cobertos de um filtro de cor que é, ao mesmo tempo, filtro de amor. A palavra filtro joga aqui nas suas duas acepções, entre o véu que o cinema empresta à imagem e a poção que produz o encantamento do amor. Em Crossing Delancey, o vigor e calor dos amantes é substituído pela voz frágil e envelhecida da mulher que termina a vida na solidão e degradação, uma espécie de ghost of christmas future. É aquele filtro que, justamente, impede que Izzy possa discernir o verdadeiro carácter do escritor Anton Maes (Jeroen Krabbé), essa sua obsessão (como rapidamente identifica o vendedor de alfarrábios), que mais não é do que a vontade de fazer coincidir o objecto do amor com a pessoa idealizada. E é esta obsessão que perturba o olhar dela, que não deixa que ela abarque o romantismo desarmante de Sam, algo que ela recebe sempre como uma perturbação daquele que seria o normal desenrolar dos acontecimentos. Um entusiasmo importuno, como naquele “I’m being wooed!”.
A tensão entre aquilo que se projecta do ente amado ou pretensamente amado e a realidade não filtrada contribui para um dos momentos mais tocantes do filme, aquele em que Izzy, comovida pela oferta do chapéu, enlevada pelo facto de estar a ser elegantemente cortejada, decide procurar Sam no seu negócio, impreparada para testemunhar a realidade de um vendedor de picles, com a contemplação crua (não filtrada) das mãos que mergulham no vinagre. Aquilo que nesse momento Izzy desconhece ainda é que o cheiro do vinagre pode ser mascarado por uma mistura de leite e baunilha – o truque que Sam utiliza segundo um ensinamento do pai. Será em mais um encontro na mesa da cozinha de Bubbie, o sítio de quase todos os seus encontros (o amor que se sente em casa), que ocorrerá esse singelo galanteio feminino, quando ela identifica, seduzida pelo olfacto, o eflúvio doce que dimana das mãos de Sam.
Refém da forma como ela se projecta e projecta o que há-devir, Izzy não consegue prescindir do futuro que deveria ser o seu, em que todas as peças encaixariam no seu devido lugar (talvez daí o facto de ela aceitar o lado canalha do escritor, porque ele corresponde à pessoa por quem ela acha que deveria apaixonar-se). Ela não vê que já não é tempo para o enamoramento idílico, que fecha os olhos à artificialidade, uma artificialidade que está igualmente presente nos serões literários que ela tanto ama, como fica claro quando a poetisa despreza os novos eruditos, que se mudaram para Vermont, ao que a mulher sentada ao seu lado rapidamente contrapõe “eu mudei-me para Vermont”, sem perceber que cai no ridículo. A honestidade de Sam permite-lhe escapar a estes terrenos incertos em que Izzy se move, havendo um momento do filme em que esta honestidade se torna fulgente, numa troca de duas palavras com o patrão de Izzy: “Poetry? Pickles”.
As mulheres de Nova Iorque, ao contrário daquelas que moram no filme de Logan, que cobrem a pele de sol e de cor, escondem-se numa armadura de defesa pessoal – a armadura da mulher nova iorquina, o sobretudo amplo, quase masculino, a bolsa bem segura como uma arma, o par tailleur/sapatilhas (o mais famoso par dos anos 80). É o chapéu de Sam que é a oferta de uma feminilidade e que arranca Izzy do seu reduto seguro, provocando o comentário jocoso da colega de trabalho – “Oh, my God! It’s the return of Annie Hall!”.
Esconder o rosto leva a que, paradoxalmente, se crie a possibilidade de revelar o olhar, de potenciar o efeito de quem observa e de quem é observado, um efeito de que o cinema se serviu por diversas vezes, em filmes tão diversos quanto Now Voyager (A Estranha Passageira, 1942), Four Weddings and a Funeral (Quatro Casamentos E Um Funeral, 1994) ou Titanic (1997). Talvez questão de filtros, talvez questão de perceber o poder de cada história narrada por Sam, desde o amigo que atravessou Delancey Street para comprar um chapéu novo que mudou a sua vida, até às visitas constantes da Sra. Mandelbaum (Sylvia Miles) que, um dia, tira do seu monte de fotografias a fotografia de Izzy – “this one I’ll meet”, responde Sam. Izzy terá apenas de comparar a beleza pura destas histórias (e aquilo que existirá de precioso naquele caderno que Sam guarda no seu bolso) com a artificialidade das citações de Maes, que facilmente se adivinha terem já sido oferecidas aos ouvidos de outras mulheres. Izzy terá apenas de atravessar a sua Delancey Street e deixar que o futuro a fite no rosto. Poesia? Não, picles.