Amigos, sei que a verdade assiste às palavras
que vou proferir; mas é difícil para os homens,
e penoso o ataque da persuasão na sua mente.
Empédocles, em Purificações
A insolência, quando floresce, produz a espiga
da desgraça, cuja ceifa é toda feita de lágrimas.
Ésquilo, em Os Persas
Os cinejornais do Instituto Cubano del Arte e Indústria Cinematográficos, conhecidos como Noticiero ICAIC Lationamericano, produzidos semanalmente entre 1960 e 1990, representam um documento histórico único, tendo o reconhecimento desse valor patrimonial sido confirmado com o registo dos negativos originais na “Memória do Mundo” da UNESCO, aceite em 2009[i]. O alcance desses Noticiários cinematográficos ultrapassa o âmbito local, merecendo um lugar nos arquivos mundiais não apenas como testemunho do processo político e relato mais completo da história da Revolução cubana no seu período mais intenso, mas também por incluírem, para além da América Latina, muitos eventos mundiais, vistos de uma perspectiva latino-americana, como a crescente bipolarização mundial, as guerras de independência nas colónias africanas e as revoltas populares anti-imperialistas. Santiago Álvarez, para além de responsável pela direcção do Noticiero, deixou uma marca absolutamente singular na concepção e realização de muitas dessas produções, entre as quais, o filme Hanoi, Martes 13 (1967) que ganhou, justamente, um emblemático destaque.
O Instituto Cubano del Arte e Indústria Cinematográficos (ICAIC) foi a primeira instituição cultural a ser fundada, em Março de 1959, na sequência do triunfo da Revolução cubana. Cerca de um ano depois, a 6 de Junho de 1960, começou a produção do Noticiero ICAIC Lationamericano, que ao longo das três década de existência, até à última edição difundida a 19 de Julho de 1990, produziu e distribuiu 1493 edições de Noticiários cinematográficos, e 3 números extra, que tiveram exibição nas mais de 60 salas existentes no país, bem como em lugares mais remotos através da projecção itinerante programada pelo ICAIC. As sessões ocorriam com uma frequência semanal, tendo uma duração média de dez minutos, excepto quando se tratava dos números extra, de que havia cerca de cinco edições por ano, em que podiam atingir vinte minutos de duração. Por outro lado, as câmaras do Noticiero registaram guerras, revoltas, golpes de Estado, terramotos, visitas de chefes de Estado, a morte e a resistência de populações, ocupando por isso um lugar central na política do chamado Terceiro Mundo.[ii]
Em 2019, por ocasião das comemorações dos 60 anos do triunfo da Revolução cubana, da criação do ICAIC e do centenário de Santiago Álvarez, que dirigiu o cinejornal durante os 30 anos da sua existência, iniciou-se um programa de restauro e digitalização dos negativos originais a ser levado a cabo, em França, no Instituto Nacional do Audiovisual (INA), que permitirá aos arquivos do Noticiário ICAIC Latino-americano reemergir no espaço público internacional e revelar um olhar cubano sobre a história[iii]. Não fora, aliás, a designação de “Terceiro Mundo” ter sido atirada para o campo das expressões depreciativas e, talvez, não fosse tão longo o esquecimento do papel desempenhado e da força documental e cine-jornalística dos arquivos do Noticiero no que diz respeito não só à cartografia política regional, mas sobretudo a uma livre e firme separação entre as acções perpetradas pelos “imperialismos” e as “causas justas da humanidade”.
Havendo uma coincidência temporal entre o período de produção do Noticiero e o da consolidação dos regimes ditatoriais em vários países da região, tais como Brasil (1964-1985), Bolívia (1964-1982), Chile (1973-1990), Uruguai (1973-1985) e Argentina (1966-1973 e 1976-1983), não deixará de observar-se como em toda a obra de Santiago Álvarez esteve sempre presente o anti-imperialismo: as lutas dos movimentos de libertação daquela época aparecem, de uma maneira ou de outra, nos seus documentários e nas emissões semanais do Noticiário cinematográfico do ICAIC.
Designado por Edmundo Aray de Cronista do Terceiro Mundo, epíteto que serviu de título à compilação bibliográfica que editou sobre Santiago Álvarez, este, ao ser interrogado sobre o sentido que atribuía a essa definição, observou o seguinte: “Tendo percorrido durante trinta anos os lugares em que a história contemporânea foi mais intensa e mais dramática, o Terceiro Mundo impõe-se. Estive no Vietnam, Camboja, Laos, Moçambique, Angola, Etiópia, em vários países da América Latina como México, Uruguai, Argentina, Chile, todos excepto o Haiti. Ao visitá-los, realizei documentários em todos eles, pelo que é possível que isso determine uma ideia de trabalho próprio de um cronista dos países do Terceiro Mundo”[iv].
No entanto, entre todos os destinos em que desenvolveu o seu trabalho como repórter-documentarista, o Vietnam adquiriu um significado muito particular para Santiago Álvarez. As razões da sua preferência por Hanoi, Martes 13, o documentário que narra o primeiro grande bombardeamento aéreo ordenado pelo presidente norte-americano Lyndon Johnson sobre Hanói, Terça-feira, 13 de Dezembro de 1966 ― sem que o diga, mas convergindo, porventura, com a teorização do foco guerrilheiro, cuja proclamação na mensagem de Ernesto Guevara, na Conferência Tricontinental de 1967, acabou sintetizada na famosa máxima: “Criar dois, três… numerosos Vietnam” ― explicitou-as nos seguintes termos:
“Gosto muito de Hanoi, Martes 13 por razões óbvias. Em primeiro lugar, porque fui protagonista do primeiro bombardeamento de Hanói pelos agressores ianques e, em segundo lugar, por causa do povo vietnamita, do conhecimento que tive daquela cidade, nas quinze vezes que lá estive ― antes, durante e depois da guerra ― fiquei imbuído de grande amor e paixão pelo Vietnam, pelo que significou durante séculos, em que teve que lutar contra todos os tipos de imperialismo: o feudalismo chinês, contra o colonialismo francês e, finalmente, contra o imperialismo norte-americano. De certa forma, como tenho trabalhado bastante ― fiz mais de uma dezena de documentários sobre aquele país ― é possível que me sinta emocionalmente atraído por trabalho contínuo feito ali. Além das características muito especiais do seu povo, que com as suas mãos, pés e forma de combater o inimigo, derrotou o maior imperialismo de todos os tempos, o mais sofisticado de todos os imperialismos. Um povo pobre, seminu, sem sapatos, sem as botas militares com que os soldados americanos evitavam ser mordidos por cobras venenosas, sem a água potável que os soldados ianques bebiam; cheios de malária, parasitas, famintos, lutaram incansavelmente contra o agressor de todos os tempos. Sinto um carinho especial por eles. O trabalho que fiz nesses lugares impregnou profundamente os meus sentimentos”[v].
Dada a urgência da resistência e as exigências da acção revolucionária, como orientar a experimentação estética? Perante outras propostas e manifestos, como o “cinema imperfeito” de Júlio Garcia-Espinosa, o “cine-guerrilha” de Octavio Getino e Fernando Solanas ou a “estética da fome” de Glauber Rocha, que se formulavam neste mesmo espaço latino-americano, Santiago Alvarez que, na chegada ao Vietnam na véspera dos primeiros bombardeamentos americanos, trazendo na bagagem “uma câmara de corda de 16 milímetros e um pot-pourri de vários tipos de filmes: ingleses, americanos, italianos, que as delegações que constantemente visitavam Cuba no início da Revolução nos deram de presente, com aqueles filmes a preto e branco, em 16 mm, de diferentes nacionalidades, com câmaras que quando se dá corda, a sequência que se está a filmar dura apenas três minutos”[vi], fazendo parte do movimento do Novo Cinema Latino-americano, emprestava à sua estética “por um cinema urgente” uma firme convicção: “Não acredito em cinema pré-concebido. Não acredito no cinema para a posteridade. A natureza social do cinema exige uma maior responsabilidade por parte do cineasta. Esta urgência do Terceiro Mundo, esta impaciência criativa do artista, produzirá a arte deste tempo, a arte da vida de dois terços da população mundial”[vii].
Não deixaria, no entanto, de enfrentar a questão dos “géneros” subjacentes ao Noticiero, defendendo que “o jornalismo cinematográfico não é um género menor, nem um subgénero (…), é uma categoria própria e independente do cinema. A montagem permite que a notícia originalmente filmada seja reelaborada, analisada e situada no seu contexto de produção, o que lhe confere maior alcance e uma permanência quase ilimitada”[viii], sendo, por isso, difícil “catalogar a sua obra num único género, seja ele jornalístico ou documental, pela forma como se serve de ambos para construir um filme, tomando do primeiro as ferramentas discursivas e investigativas, e do segundo, a sua capacidade de experimentação estética e transcendência temporal. Para sintetizar ainda mais essa relação, ele mesmo cunhou o termo ‘docunoticieros’ [docunoticiários] para designar os noticiários transformados em documentários”[ix].
Apostando em mostrar realidades que contradiziam o que os grandes meios de comunicação propalavam sobre as mesmas, tendo em vista mobilizar a opinião pública a favor das causas defendidas pelos povos visados por aquela informação, Santiago Álvarez, por um lado, não tinha pejo em afirmar que os seus Noticiários cinematográficos eram “politicamente artísticos”, por outro lado, não escondendo as suas convicções relativamente aos novos imaginários e valores ― “uma épica revolucionaria, o latino-americanismo e a descolonização cultural”. ― , para fazer jus ao facto indesmentível de que o “Noticiero foi uma escola-oficina permanente” para todos os que ali trabalharam, soube incorporar na sua obra princípios de construção narrativa que progressivamente ganharam preponderância no seu estilo, como o abandono do recurso ao narrador externo, a ausência de som directo, a diminuição do uso de entrevistas. São palavras suas: “Uso o menos possível a narração verbal. O cinema tem uma linguagem própria que, embora não exclua a palavra, também não depende dela. Temos a imagem, banda sonora (com música e efeitos) e até os silêncios para nos expressarmos. Isso é quanto basta para tecer uma narrativa”[x].
A insistência na afirmação desse princípio, permite-lhe esclarecer melhor o que o move nessa direcção: “A maioria dos meus documentários não tem entrevistas nem narração. Procuro sempre evitá-los, excepto quando não tenho outra escolha (…). É a música, são as letras das canções que utilizo como elemento narrativo do documentário. Cinema na sua forma mais pura, realmente”[xi].
Para atingir essa característica mais inovadora dos seus documentários, em que a música se transforma no eixo condutor da narrativa, “desenvolveu uma espécie de temperamento musical que lhe permitia dominar o ritmo e adivinhar sempre as músicas que deveria usar em cada caso”, ele que, sem uma formação prévia específica na área do cinema, aos quarenta anos, iniciara uma segunda vida como repórter-cineasta e documentarista-virtuoso, convocando da primeira vida, não menos aventurosa do que a segunda, a experiência do tempo em que trabalhou classificando música no CMQ, e insistindo sempre em radicar a intuição na realidade vivida, se tornou exímio montador de documentários, em que a banda sonora se imbrica fundamentalmente numa nova forma de relação espaço-tempo através dos mecanismos de narrativa e dramaturgia, a “documentalurgia” como Santiago Álvarez propôs denominar a nova disciplina que se ocuparia dessa articulação criativa.[xii]
Aqui chegados, faltará, talvez, explicitar melhor o motivo da eleição de Hanoi, Martes 13 para fazer parte desta série de crónicas, subordinada ao título genérico de Entre o granito e o arco-iris, e mais ainda de que modo a fulguração figurativa, que tem sido a característica nuclear perseguida, nele se manifesta. Apesar das efemérides já referidas, a que haveria que acrescentar a celebração em 2009 do cinquentenário da Revolução e do ICAIC, e do ensejo que as mesmas representaram na “luta contra o tempo, de uma cruzada urgente para salvar essa visão cubana da sua revolução, do mundo”, os efeitos do desmantelamento do bloco socialista nos anos 90, que mergulhou Cuba na maior crise económica da sua história, que já dura há trinta anos, revela que “o entusiasmo popular não é o mesmo e o sonho do possível se tornou uma realidade difícil em que o cepticismo ganhou novos adeptos”[xiii], pelo que a própria integridade dos negativos esteve seriamente em risco. Neste contexto, é merecedor de ser lembrado o documentário Memória Cubana (2010), de Alice de Andrade e de relevar o seu contributo. Entre 2003 e 2007 Alice de Andrade fora a coordenadora técnica do projeto que restaurou em alta definição a obra completa do seu pai, o cineasta brasileiro Joaquim Pedro de Andrade, na sequência da especialização em conservação de patrimónios culturais que fizera em Paris. O seu documentário é uma rememoração de momentos-chave do Noticiero a que se juntam recordações de colaboradores que participaram na sua realização. Por outro lado, Alice de Andrade que, no momento em que a produção do Noticiário cinematográfico terminou, se formara em argumento na Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños (EICTV), uma experiência que, declarou numa entrevista, mudou a sua vida para sempre, teve a sensibilidade para compreender algo deveras extraordinário no comportamento dos espectadores cubanos. Rivalizando, porventura, com o entusiasmo demonstrado pelos que nos primórdios do ICAIC responderam à convocatória nacional para reunir todos os que, tendo interesse e conhecimentos ligados à técnica audiovisual, se dispusessem a aprofundar conhecimentos para integrarem as primeiras equipas de jovens guerrilheiros da imagem, lançados pelas ruas de Havana, pelas províncias da Ilha e pelo mundo fora, é, no entanto, sobre os cubanos que “com a mesma audácia e desenvoltura, em massa, iam religiosamente ao cinema todas as semanas para ver o Noticiero” e os que “iam ao cinema só pelo Noticiero, e os que esperavam o início da sessão seguinte para ver de novo o cine-jornal”, que o testemunho de Alice de Andrade é concludente:
“Quem já teve a oportunidade de assistir a uma sessão lotada numa das melhores salas de projeção da Ilha, sabe que a relação do público local com o cinema é singular e privilegiada. Na minha opinião, o público cubano é o melhor público do mundo. Provavelmente porque depois de 30 anos de contemplação da sua própria imagem em 35 mm em telas enormes, com uma reprodução sonora excelente, depois de ter o cinema como principal janela aberta para o mundo, para as realidades e emoções de outras culturas, o ano inteiro, a preços módicos, o cubano tornou-se o mais cinéfilo dos espectadores do planeta. E é uma cinefilia instintiva, do coração, bem pouco intelectualizada, que lhes permite comentar alto e claro o que se passa no filme, sem timidez, sem medo, vivendo verdadeiramente aquelas histórias ali, naquele momento”[xiv].
Concluo eu, assim, que do campo semântico de “fulgor” não deverá excluir-se o rasto que permite ir na esteira de qualquer coisa que, dizem, passou e que um homem bem pensante não se disporia a empreender por uma segunda vez, pois essa revolução “depara, todavia, nos ânimos de todos os espectadores com uma participação segundo o desejo, na fronteira do entusiasmo”.
Hanoi, Martes 13: o início dos bombardeamentos de uma “cidade aberta”. 30 minutos para contar, sem palavras, o que foi a resistência do povo vietnamita e a agressão do imperialismo norte-americano.
Primeiro estão as imagens.
Logo, os versos de Jorge de Sena (de “Para Bellum”):
“há multidões para serem massacradas.
Eu protesto, tu protestas, ele protesta, etc.
E nada muda, ou muda para mais.”
[i] Cinemateca de Cuba, «Negativos originales del Noticiero ICAIC Latinoamericano» (UNESCO, 2009), https://es.unesco.org/memoryoftheworld/registry/270.
[ii] Andy Muñoz Alfonso, Lianet Cruz Pareta, e Yobán Pelayo Legrá, Santiago Álvarez: un cineasta en revolución (La Havana: Ediciones ICAIC, 2021), 20.
[iii] Camila Arêas. Noticiero ICAIC: um olhar cubano experimental e performático sobre as ditaduras latino-americanas. DOC online – Revista Digital de Cinema Documentário, 2019, Revolução Cubana e Documentário ― 60 anos, 2019 SI, pp.137-159. ⟨10.25768/FAL.doc.si2019.dt07⟩. ⟨hal-02997247⟩
[iv] «Con Santiago Álvarez, Cronista del Tercer Mundo – Una Entrevista por Luciano Castillo e Manuel M. Hadad», ReVista – Harvard Review of Latin America, Film, Fall de 2009, https://archive.revista.drclas.harvard.edu/book/export/html/996986.
[v] «Con Santiago Álvarez, Cronista del Tercer Mundo – Una Entrevista por Luciano Castillo e Manuel M. Hadad».
[vi] «Con Santiago Álvarez, Cronista del Tercer Mundo – Una Entrevista por Luciano Castillo e Manuel M. Hadad».
[vii] Santiago Álvarez, “Arte y compromiso” [1968], En Fundación Mexicana de Cineastas (éd), Hojas de cine: testimonios y documentos del Nuevo Cine Latinoamericano: Volumen III, México DF, Universidad Autónoma Metropolitana, 1988, p. 37.
[viii] Edmundo Aray, Santiago Alvarez, cronista del Tercer Mundo (Caracas: Cinemateca Nacional, 1983), 10.
[ix] Alfonso, Pareta, e Legrá, Santiago Álvarez: un cineasta en revolución, 30.
[x] Santiago Álvarez: «El periodismo cinematográfico», em Cine Cubano, n.º 177-178, pp. 34-39.
[xi] «Con Santiago Álvarez, Cronista del Tercer Mundo – Una Entrevista por Luciano Castillo e Manuel M. Hadad».
[xii] Alfonso, Pareta, e Legrá, Santiago Álvarez: un cineasta en revolución, 32, 86.
[xiii] Alfonso, Pareta, e Legrá, 52.
[xiv] Alice de Andrade, “Memória cubana do mundo”, Cinémas d’Amérique latine, 17 | 2009, 159-163.
http://journals.openedition.org/cinelatino/1720.