Ver o mais recente filme de Marco Martins é, como acontece com todo o grande cinema sujo do grão digital e dos heróis do proletariado global, olhar. Já estive perante as suas imagens em duas ocasiões diferentes e, em ambas, vi a apoderar-se de mim aquele martelante ensaio de John Berger «Why Look at Animals», que sempre no tom sussurrante da verdade, gentil porque sábio e porque sábio então gentil, nos conta como não olhamos os animais e, em conclusão, como eles já não conseguem também olhar para nós. Ao falar do jardim zoológico enquanto “demonstração das relações entre homem e animais (…)”, Berger encontra uma metáfora eficaz no desencontro do jardim zoológico, terra das maravilhas, da fantasia e do sonho, mão e braço de néones a sobrevoar as refeições nocturnas de animais, vemos essencialmente nada mais do que uma prisão ao relento que ele equipara a campos de concentração, onde olhar seria exercer as forças necessárias para de lá os tirar. Tendo como objectivo principal um aproximar ao reino animal, a visita ao zoo dá-se como falhada logo à partida. Nas suas palavras, os animais “(…) olham de lado (…) cegamente através de. Eles examinam mecanicamente (…) imunizados a deparar-se com, porque já nada poderá alguma vez ocupar um papel central na sua atenção.”

Great Yarmouth: Provisional Figures (2022) não é o jardim zoológico desta minha talvez preguiçosa associação, mas o filme existe por causa dele. Estamos demasiado habituados ao grafismo da violência. Não falemos da pornografia da pobreza, porque o filme rompe com aquele plástico da exposição demasiado cedo. E como não se torna caricatura nem idealismo e se acumula em camadas, sentidos e texturas, vai ampliando o que poderia não passar do drama social realista do kitchen sink britânico para se fundir com a centrifugação do retrato da classe trabalhadora, ou, neste caso, do emigrante português em Inglaterra, Cassavetiano, próximo de Alan Clarke ou Gary Oldman atrás da câmara em Nil By Mouth (1997). As pessoas não representam nem significam, elas são. E o que elas são vive da paranóia de não saber distinguir o assassino da vítima, pois os dois são ambos e, às vezes, até ao mesmo tempo. Olhar para elas é compreender que estamos no domínio de que o que se conta foi descoberto, vivido, habitado. Tudo é interior aqui. Caos. Perturbação. Traumatismo. Nos cantos da narrativa está o horror do que é infeccioso, o medo da certeza de que nos irá engolir a todos, que os filmes-género só preconizam e que se instala em Great Yarmouth.
Eis a carnificina de todos os animais e a descida até ao coliseu das suas lutas. Uma máquina que não só os destrói, mas os força a assumir esse papel.
Noutras palavras, dá-se o derradeiro encontro entre animais. Na manipulação dos perus no matadouro, os emigrantes portugueses cortam cabeças enquanto vêem as suas cabeças a ser cortadas pelo microcosmo bolorento dos quartos de hotel inabitáveis que têm que partilhar. Os passaportes? Já não lhes pertencem. Enquanto isso, perante a desolada subsistência de galgos em espaços confinados, de onde só são retirados para participarem em corridas, um homem também ele emigrante português (o extraordinário bailarino e actor Romeu Runa), tão magro, aparentemente veloz como os seus cães e também incapaz de fugir quando corre, sofre a sua humilhação pela mão de outro. Enquanto isso, um outro homem acabado de chegar de Portugal procura o irmão desaparecido que deixou de enviar dinheiro. Eis a carnificina de todos os animais e a descida até ao coliseu das suas lutas. Uma máquina que não só os destrói, mas os força a assumir esse papel.
Na linha do mesmo trautear da dramaturgia e nos ecos e ressoares que acontecem entre actores e espectadores no palco da peça de teatro de Marco Martins, Provisional Figures – Great Yarmouth, estreada em 2018, o encenador e realizador traz para o cinema os caminhos com que a emigração portuguesa – resultado da crise económica que atingiu em 2009 o seu ponto crítico – se deparou quando em Great Yarmouth, Norfolk, “the finest place in the universe” no séc. XIX do herói de Charles Dickens, a Las Vegas do line dancing e karaoke da costa leste inglesa, e a três meses do Brexit, o lugar mais pobre do Reino Unido. Criado a partir do suster de duas, três notas melancólicas numa auto-ficção neo-realista, actores e não-actores abraçam-se e o filme luta-se com a história específica (também colectiva) da humanidade da vilania da sua heroína, Tânia (Beatriz Batarda), casada com Richie (Kris Hitchen, o canalizador que Ken Loach escolheu para protagonizar o seu hino sobre a gig economy), o inglês herdeiro do hotel que esta sonha em reabilitar. Não há conversa mais pertinente, as duplas faces da emigração, e o escape da calamidade na lengalenga que Tânia ouve, repete e retira de um curso de inglês para turismo: “(…) good amenities with view for seafront”. É prece e rima e hipnose para o sonho, que preenche todos os respirares dos seus dias, e a ajuda a justificar os crimes cometidos aos portugueses dela, nunca tão vulneráveis como os perus que esperam a morte desde o início, mas sempre muito próximos desse apagar.
Ela é tanto a atonia e a delinquência do emigrante calcado como a sua eterna dependência pela possibilidade da vida ainda por criar. Ela é a língua-mãe e a outra que se mistura, adquirida ali, e com a qual começa a sonhar. Ela é o riff do cinema da verdade da emigração.
Dito isto, o verdadeiro empoderamento de Great Yarmouth vive de um jogo de intensidades polissémicas que fazem a experiência ser tão corpórea, tão tangível. Do sentir do cheiro – “toda esta cidade cheira a sangue e a merda” – ao tactear das lascas de tinta que facilmente se esfareliavam nas mãos, ao conforto que é seguir a sua protagonista e, através dela, assistir a como a podridão esmagadora de tudo aquilo é inultrapassável. Ver o filme a decorrer é suportar a espessura e viscosidade desses mecanismos, os vários labirintos do vampirismo do corredor de longa distância, já cansado e com ainda tanto para percorrer. Freneticamente, a câmara segue e segue Beatriz, a sua actriz-artista-musa enquanto esta desce ao inferno, ocupando o ecrã ora com a sua cara, ora com os estalidos da sua ansiedade. É tanta a privação… Ela é tanto a atonia e a delinquência do emigrante calcado como a sua eterna dependência pela possibilidade da vida ainda por criar. Ela é a língua-mãe e a outra que se mistura, adquirida ali, e com a qual começa a sonhar. Ela é o riff do cinema da verdade da emigração.

Narrado pelo homem-lobo, irmão do monstruoso Richie, o poeta que sussurra o que pensa, cuida dos pássaros feridos que entram pelas janelas entreabertas, aquele que não mata o corpo mas oferece-o ao pântano para este o deglutir, Great Yarmouth grita no silêncio como a brutalidade do cinema de Alan Clarke sempre fez; não há espectáculo, só perda – “If I keep shouting, somehow somehow I might escape” [Road (1987]). E é, por isso mesmo, talvez um dos melhores filmes sobre o corpo emigrante que veremos em muitos anos. Na denúncia documentarista e no mundo recreado pelo actor que vive o que precisa de mostrar, a náusea física não tem como não se instalar. O filme acaba, o corpo pesa, todas as extremidades formigam, e a cabeça faz-se ninho. Muito como este texto que tento acabar de escrever, é quase impossível que tudo flua sem interrupções, sem muitas vírgulas, sem descrições agravantes. Sobreviver faz-nos mal. Olhar para a sobrevivência aquando da selvajaria capitalista neo-liberal é um monumento à perda a que fomos sujeitos, mas não nos esqueçamos da nossa “involução (…) a partir dos animais superiores”. Não nos esqueçamos quão facilmente nos permitimos não olhar.
★★★★☆