Dominar uma nova língua é adquirir um outro olhar sobre o mundo. Mais do que isso, duas línguas diferentes estabelecem distintos modos de pensar. As palavras e as expressões idiomáticas acarretam portanto uma ideologia, que se torna especialmente evidente no processo de aprendizagem de uma língua no contexto da imigração. O país que acolhe o estrangeiro ensina-lhe uma língua e com ela os seus costumes, a sua moral e a sua organização social e política. Aprender uma nova língua é, portanto, um trabalho de erro e correção que não se limita à ortografia, à gramática e à semântica, mas também a um trabalho sobre os erros e corretivos comportamentais.
Há quase uma década (cruzes!) programei – enquanto membro do comité – a média metragem I comme Iran (2014), de Sanaz Azari, no festival IndieLisboa. Mais recentemente voltei a mostrá-lo, a “solo”, em diálogo com a obra de Eugène Greene, na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, naquilo que são as preocupações em torno da língua por parte do realizador naturalizado francês. Nessa ocasião mostrei-o com um outro filme igualmente repescado da programação do IndieLisboa, um “exercício de escola” particularmente inteligente feito por Carlos Franklin no âmbito da Le fresnoy, intitulado Le bon français mal parlé (2007). A ocasião do ciclo “Irão, meu Amor”, organizado pelo Cineclube de Alvalade no Cinema Fernando Lopes é a desculpa ideal para recuperar os meus apontamentos sobre estes dois filmes e o modo como cada um deles pensa as questões sociais da linguagem e as questões culturais da linguística.
O primeiro capítulo do tríptico que compõe a curta de Franklin intitula-se, não por acaso, “gestos inconvenientes”, citando a aula que logo depois se seguirá. Nela, o aluno procura descrever uma vista ao santuário de Lourdes e explica que encontrou diversos sinais de proibição como o que impede o fumo, o que interdita os cães e um terceiro, onde se encontram as figuras de um homem e uma mulher juntos, sobrepondo-se-lhes um traço diagonal. Afirma o aluno, “é proibido o amor”. Ao que a professora corrige, “é um sinal que proíbe os gestos inconvenientes”. Este reparo, aparentemente simples, revela, afinal, todo o peso moral (da professora, da sociedade e também da própria língua) que acompanha a aprendizagem de um novo idioma, neste caso o francês (aprendido em França).
De facto, a pequena curta metragem de Carlos Franklin procura explorar a dimensão profunda do erro, e respetiva correção. Para isso, trabalha segundo os modos da falha e da interrupção. Filma em película com alto teor de grão, inicia cada capítulo com a fosforescência típica do 16mm sobre-exposto, trabalha os “erros” da montagem com súbitas entradas de luz nos cortes, quebra sucessivamente os gestos num exercício falhado de montagem paralela e opta, consistentemente, por estratégias (quase) antagónicas para cada um dos capítulos. De certo modo, a opção de Franklin por filmar sem aparente domínio técnico parece refletir a idêntica falta de domínio do francês por parte dos três protagonistas (tanto falado como também escrito – veja-se a irregularidade da caligrafia).
A realizadora é extremamente hábil na gestão das expectativas e no modo como explora as variações dentro do seu parco dispositivo.
Aquilo que estrutura o filme e liga cada um dos episódios é, então, uma narração robótica que se assemelha a um áudio-guia linguístico para iniciantes. Uma voz mecânica e assética que se faz acompanhar de uma musicalidade de elevador. Essa centralidade da palavra dita, tipicamente o primeiro vínculo a uma nova língua, reveste-se de nova complexidade quando, no último capítulo, assistimos a uma canção cantada em play-back. Aí, literaliza-se a influência do idioma nos próprios gestos e ações do imigrante, construídos para se adaptarem e acompanharem a musicalidade do francês. Só que – e aqui se encontra nova provocação – essa dobragem é dessíncrona, como aliás descompassada era a montagem musical do episódio intermédio (onde se traduzia uma imagem por palavras com a perfeita consciência que nenhuma daquelas palavras era realmente capaz de ilustrar a imagem ausente). De novo o erro. Mas é aí, na falha, que se descobre a singularidade de cada um: falante ou não do francês, imigrante ou não em França. É, afinal, a dessincronia que dá a graça ao play-back.
Também I comme Iran (2014), de Sanaz Azari, reflete sobre o modo como a língua enquadra o próprio real, como existe um largo abismo entre a palavra dita e a palavra escrita, e como o erro, no processo de aprendizagem, é sinédoque doutros “erros”, históricos. No filme, a realizadora trabalha igualmente segundo jogos de (des)sincronia, só que desta feita não se ficam pela relação imagem-som, mas antes, pela relação ícone-índice-símbolo (isto é, grafia-conceito-significado).
O dispositivo do filme é extremamente simples, e quase minimal: uma sala de aula, uma ardósia preta, uma aluna-realizadora por de trás da câmara, um professor-refugiado político diante dela e, entre os dois, um manual de língua persa pós-revolução islâmica iraniana (de 1979). A câmara oscila entre o plano aberto, com o quadro desdobrado em três e o professor de pé, e o plano aproximado, com o professor sentado, ao centro. O eixo é o mesmo e a montagem parece acontecer não tanto pelos cortes, mas pela própria performance do ensino. Ou seja, pela ocupação do espaço da sala de aula por parte de Behrouz Majidi, que ora se levanta, ora se senta, ora escreve, ora apaga, ora se vira de costas para a câmara, ora a enfrenta com uma história ou uma memória.
Majidi dá ao filme, primeiro, uma presença e, depois, a fluidez com que transita entre língua e política. Veja-se o caso da palavra nan [pão] e de como do som se passa à grafia e desta à reflexão sobre o trabalho e a pobreza (e o mesmo com a palavra que corresponde a vinho e que cedo comenta sobre a censura do atual regime iraniano).
No entanto, Azari vai baralhando estas correspondências entre imagem e palavra, num lúdico exercício de associações (mais ou menos) livres entre visualidade e oralidade. Isto porque a realizadora cresceu na Bélgica e sabendo falar persa não sabe lê-lo nem escrevê-lo. Nas suas próprias palavras, “sou como uma casa sem telhado”. Para aprender as palavras há que empregá-las, e aí o ensino da língua transforma-se em enviesada forma de biografia, tanto da realizadora como do professor. As imagens do manual e as letras que formam ditongos e vocábulos despertam, em Maijidi, memórias sobre o período revolucionário em que tudo ainda era possível, em que reinava a liberdade, quando ainda havia esperança (antes da ditadura islâmica do líder supremo, Ali Khamenei). Já para Azari, as palavras recordam uma história de imigração, alheamento e integração.
A realizadora é extremamente hábil na gestão das expectativas e no modo como explora as variações dentro do seu parco dispositivo. Demora a introduzir-se como figura e, mais ainda, a introduzir a mão no enquadramento, para escrever ou soletrar. E quando essa estratégia se esgota entram as imagens de arquivo, como clarões de um país distante (arquivo esse, todo proveniente do Youtube). Esta progressão, que é no fundo um forte domínio da narrativa, do ponto de vista visual, conduz-nos numa travessia que desemboca num país e numa cultura desconhecidos (até da própria realizadora, pelo menos em parte). É dela a metáfora da língua como montanha que se sobe. Como explica, em persa, a palavra para montanha e trilho são muito semelhantes, pelo que a dificuldade e a solução se encontram, pelo menos foneticamente, próximas. Subir a uma montanha é adquirir um ponto de vista privilegiado sobre uma paisagem, do mesmo modo que conhecer uma língua permite compreender uma cultura.
I comme Iran acompanha todo esse processo, até que a realizadora é, finalmente, capaz de “pensar na sua língua”.
I comme Iran (2014), de Sanaz Azari, é exibido no Cinema Fernando Lopes no dia 16 de março, às 21h00, no âmbito do ciclo “Irão, meu Amor” programado pelo Cineclube de Alvalade.