Se calhar não reconhecerá imediatamente o nome. Poderá ter visto trabalhos seus várias vezes, no pequeno ecrã, como realizador de publicidade. Ou então, se é um apreciador da obra de Pedro Costa, dado de caras com um dos seus documentários baseados na obra do realizador de Cavalo Dinheiro (2014). Ou então, nomeadamente no circuito dos festivais, pode ter sido “apanhado” por uma das suas ficções. É um leitor atento do mundo dos objectos e das personalidades que lhes pertencem. Cita José Bragança de Miranda, uma das suas fontes de inspiração, a quem dedicou um filme-retrato, Objetos Entre Nós (2018), para falar do mundo como um grande objecto de objectos. E é isso que se colecciona – e se desdobra – no trabalho de Júlio Alves: uma imensidão de coisas que afecta a relação de personagens, reais ou imaginárias, demasiado reais ou demasiado imaginárias, entre si e em choque com o mundo. Sacavém (2019) e Diálogo de Sombras (2021) estreiam no dia 23 de Março, pela mão da The Stone and the Plot, ao passo que a ficção absolutamente “normal” (ou não será bem assim?), adaptada de uma obra homónima de Mário de Carvalho, A Arte de Morrer Longe (2020), está já em sala, desde o dia 2 de Março, com a chancela da Ukbar Filmes. Os walshianos Luís Mendonça e Vítor Ribeiro foram falar com Júlio Alves e a conversa terminou em assuntos “muito cá da casa”: qual o papel da crítica de cinema na tarefa de visibilizar objectos fílmicos tão singulares e, em certa medida, tão frágeis como estes?
O À pala de Walsh agradece a Manuel Montenegro todo o apoio dado à publicação desta entrevista.
Luís Mendonça (LM) – Começava pelos dois documentários que estreias em breve e que dizem respeito ao universo cinematográfico de Pedro Costa, um dos realizadores mais relevantes do panorama do cinema português deste novo século. Gostava de saber, desde já, como nasceu o interesse pelo cinema de Pedro Costa e se te lembras de quando e como exerceu ele algum tipo de fascínio sobre ti. E foi só fascínio? Sendo um cinema difícil, também me questiono se houve alguma luta ou até resistência.
Quando comecei a trabalhar em cinema, o Pedro Costa já andava por cá. Já tinha feito O Sangue (1989) e Casa de Lava (1994). Cruzei-me pela primeira vez com ele, quando este estava a preparar Ossos (1997) no escritório do Henrique Espírito Santo, na Prole Filme. Eu andava ali à volta da minha segunda curta-metragem O Despertador (1996). Trocámos palavras de circunstância: “olá e tal…”
Sou desde sempre um espectador do cinema do Pedro Costa. Não posso dizer que era fácil para mim, sei que sentia uma atracção qualquer, mas não me atrevia a falar então sobre o seu cinema. Nem pouco mais ou menos. Foi, por isso, uma espécie de “ir acompanhando”.
Vitor Ribeiro (VR) – Como espectador?
Como espectador.
VR – Sim, mas envolvido com o cinema dele e com aquelas ascendências que já se começavam a perceber?
Remonto isto a uma época em que eu tinha vinte e poucos anos, logo no início. Ele era alguém que estava muito mais à frente, que tinha feito já um cinema bastante… Quer dizer, O Sangue foi logo um filme que o apresentou muito bem. Casa de Lava (1994) veio confirmar e, depois, apareceu o Ossos (1997), que achei algo de arrebatador. Depois quando vi o No Quarto da Vanda (2000)… já não sabia o que dizer mais. Era sempre um cinema que eu ia ver e surpreendia-me sempre.
Quando chego a esta fase mais madura, em que estou a fazer o Doutoramento e em que começo a refletir sobre objectos, surge a ideia de dividir a tese em três partes, em que cada uma delas era acompanhada por um filme: um filme era dedicado aos objectos que eram visíveis apenas para o autor e a importância desses objectos na construção desse filme. Havia um outro filme em que os objectos eram muito visíveis para a pessoa que estava a ser retratada, e que nos colocava à disposição uma colecção de objectos particular… e também era visível para os espectadores. E havia também a ideia de fazer um filme em que os objectos, especulava eu, pudessem ser fundamentais dentro de uma filmografia. Aí começo a pensar no cinema de Pedro Costa. Penso na câmara com que filmou o filme No Quarto da Vanda. Os objectos aqui não eram necessariamente os que estavam à frente da câmara, podiam estar atrás dela. E neste caso era o meio. Quer dizer, como é que esse objecto tão determinante… Penso que foi determinante naquele filme que fez chamado No Quarto da Vanda, porque, sem aquela democratização das ferramentas, sem uma câmara de filmar com a qual pôde estar dois anos a filmar, eu diria que esse filme não teria sido possível. Não teria sido possível, não teria havido condições técnicas para alguém se disponibilizar a fazer um filme sozinho. Havia ainda o caderno do Casa de Lava que entretanto tinha sido publicado. Esse caderno tinha sido determinante para ele ter encontrado uma outra maneira de filmar, que já não seguia aquela ideia do argumento clássico. Depois um outro objecto ao qual, enfim, eu conferi essa dimensão de objecto, porque, apesar de tudo, num filme chamado Objetos entre Nós, que eu creio que vocês viram, o Bragança de Miranda, quando eu lhe pergunto “qual é o objecto mais importante para si?”, de alguma maneira surpreende-me quando responde: “é o mundo, porque é onde todos os outros assentam”. Pensei que se é possível pensar no mundo como objecto, também é possível pensar num bairro como objecto. Daí a ideia de que o bairro das Fontainhas poder ser um objecto. E, através dele, o Pedro Costa de alguma maneira sente a importância daquele sítio, aquele espaço e aquelas pessoas.
LM – Relativamente ao teu background na publicidade, normalmente, e não sei se foi o teu caso, é uma actividade em que se filmam muitos objectos, em que os objectos têm um protagonismo que suplanta muitas vezes o das pessoas, não é?
Quer dizer, se não fossem os objectos, não havia publicidade.
LM – Não havia publicidade, exactamente. É o produto.
Portanto, a razão pela qual há publicidade está nos objectos.
LM – Neste particular, queria saber se não houve alguma espécie de embate, ou choque, tendo em conta que, de um lado, vem alguém da publicidade, e da academia, e, do outro lado, está alguém já de nome feito, estabelecido, que vem do Conservatório, da geração de alunos do António Reis e um dos herdeiros de Straub e Huillet. Será que este teu percurso foi ou podia ter sido uma questão ou um problema, ao nível estrito da confiança que o Pedro Costa depositou em ti?
Não sei. Repara: eu começo a fazer cinema antes de ir para a publicidade. Na publicidade, era visto como “um tipo do cinem”a. Acho que há uma entrevista, que ainda se encontra na Internet e que é curiosa, para aí dos anos 2000, em que se diz: “do cinema para a publicidade”. Parecia uma transferência de futebol. E depois quando estás no cinema, és “o tipo da publicidade”. E eu, como nunca me deixei, digamos, fixar em nenhum sítio, acho isso porreiro… Acho que essa questão não se colocou quando eu escrevi ao Pedro a perguntar-lhe se havia esta possibilidade de, enfim, pensar o seu cinema… Vocês também o conhecem: ele ficou a olhar para mim a pensar um bocadinho sobre o assunto, não respondeu imediatamente. Disse que tinha que pensar. Eu disse-lhe: “olha, eu acho que há um conjunto de objectos pelos quais eu gostava de fazer uma viagem….”
LM – Isso no início foi um e-mail e depois uma conversa?
Sim, houve um e-mail. Depois houve uma conversa pessoal…
LM – E aí então ele disse “vou pensar”?
Não no e-mail… houve uma troca de e-mails para nos encontrarmos. Quando nos encontramos, ele disse: “ok, vou pensar”. Mais tarde, não sei se um mês ou um mês e meio mais tarde, ele disse-me para eu passar no escritório dele. E quando estava a pensar que ia ter uma segunda conversa, ele pergunta-me: “então quando é que começas?” Obviamente que não comecei naquela tarde, mas comecei na semana seguinte.
A coisa mais relevante naquele caso era eu tentar chegar lá com uma ideia. Dizer: “olha, eu estou a fazer um doutoramento neste contexto: ‘Os Objectos no Cinema’ – era como se chamava a tese – e gostava de reflectir, pensar um bocadinho à volta disso e se calhar de fazer um filme sobre isto. Não sei se é possível ou não.” Não era fazer um documentário no sentido clássico do termo, mas que, através dos objectos que considerava serem determinantes naquela filmografia, podíamos falar acerca do assunto. Então comecei por filmar… Houve depois uma grande conversa e ele disse-me: “sim, mas tenho apenas uma condição”, que era: ele não apareceria. Ele ia dando umas coisas, eu podia estar por ali, podia ir filmando o escritório dele, que era um espaço muito rico e visualmente muito potente, e podia estar à vontade, mas ele não queria aparecer. Poderia, eventualmente, aparecer a voz.
VR – E ele nunca interveio, por exemplo, na escolha dos objectos, na preponderância do caderno e do elevador, principalmente daquela caixa?
Não, tudo isso foram descobertas. Por exemplo, eu falava do elevador e ele disse: “mas o elevador não tem assim grande importância, são duas paredes”. E depois falei com o produtor dele: “mas ele tem o elevador, ali parado no armazém”. Às tantas, surgiu a ideia de o montar. Isso foi tudo uma surpresa. Eu desconhecia totalmente que o elevador era um cenário, e que estava vivo, e que tinha resistido, e que estava lá. E depois, como ele estava a filmar em Sacavém, ou seja, havia um grande estúdio, ele tinha um cinema por conta dele, um cinema abandonado onde estava a preparar Vitalina Varela (2019), onde havia a intenção de fazer muitas coisas – aliás, as hortas do filme são dentro do estúdio.
Começámos por filmar pacientemente – não pode ser uma coisa muito a correr, fui filmando os objectos, fui filmando, enfim, o caderno (era evidente que conhecia o caderno). Ele deu-me o original, ou seja, filmei o original, não uma cópia. O original é mesmo o caderno, com aquela fisicalidade das colagens… Depois, filmei o bairro. Do bairro não tinha nada e ele deu-me umas fotografias da Mariana Viegas. Depois, por exemplo, sugiro projectar essas fotografias no tal cinema. Arranjei um projector e, de repente, as fotografias foram projectadas no dito cinema, nessa tela branca que era, digamos, um… chamemos àquilo cinema, mas não era um cinema, não tinha cadeiras, não tinha nada: era uma espécie de hangar, mas tinha aquela estrutura de cinema. Projectei isso e também projectei outra coisa. Disse-lhe que gostava (isto obviamente que era tudo por desejo, porque eu gostava mas depois logo se via se era possível realizar), que era projectar a sequência do Cavalo Dinheiro (2014) contra o elevador, ou seja, criar uma espécie de dupla imagem que era a sequência filmada. Projectar essa sequência contra o elevador e depois eu filmava aquilo. Tinha sempre o “não” garantido. Em tom de piada, disse-lhe: “então isto era fixe, temos aqui o objecto, a obra, e se tivéssemos o autor lá dentro do elevador…”. Curiosamente, no dia em que eu estou lá a filmar, ele aparece e eu digo-lhe: “Eh pá, se quisesses estar ali”, e ele não disse que sim, mas dirigiu-se para lá.
LM – Recebeste muitos “nãos”?
Não recebi muitos “nãos”, porque ele não diz muitos “nãos”, diz “vou pensar” e pronto. Depois se vires que não há resposta…
LM – É um “não”.
Mas não recebi muitos. Esse, por exemplo, foi surpreendente. Também houve um sítio que me parecia que era mais porreiro para ele estar. Gostava de ter um plano dele no filme, nítido. Mas ele deu-me essa dádiva. Creio que se recordam daquela sequência de projecção do filme contra o elevador: ele está lá com algumas pessoas e, de repente, há aquela mise en scène das luzes, e eles têm todos lanternas. Eles estavam lá à procura de umas gotas que estavam a cair do tecto… mas o que é certo é que aquilo aconteceu. Não foi programado, mas foi-me dado, foi-me oferecido. Pronto, e depois, foi a viagem através do caderno, que é onde eu coloco a ideia do Casa de Lava, a ideia de que há uma carta que começa a ser lida e depois explode no Juventude em Marcha. Da Casa de Lava até ao Juventude em Marcha passam-se sensivelmente 20 anos. Essa carta é lida, inicialmente, ou passa a ser lida por aquela criança no filme, que depois o Ventura termina de ler. Eu considero esse objecto muito importante. Como sabem, o documento original é de Robert Desnos, uma carta escrita em 1945, num campo de concentração. Esse era um objecto também fundamental, do meu ponto de vista.
Acerca de um contributo que ele me deu: houve uma entrevista grande, de duas horas, em que falámos de tudo e, depois, quando eu montei o filme, ia sugerir-lhe e, quase ao mesmo tempo, ele pede para repetir. Acho que isso também foi um gesto muito bonito. E aí, a serenidade da voz… Apesar de tudo, há um encontro diferente, em que ele fez uma conversa sobre o vazio e depois fez uma conversa com umas imagens que, entretanto, já tinham sido materializadas numa montagem. E a sua voz não diz exactamente as mesmas coisas, mas o que diz, diz com um outro tom, com uma outra seriedade. Isso é muito bonito.
VR – É uma daquelas perguntas que eu imagino que sejam um pouco difíceis para ti, e tem até a ver com uma questão de percepção que é válida para o Sacavám e para o Diálogo de Sombras. Até que ponto é que os filmes se autonomizaram relativamente ao assunto, a essa grande sombra do Pedro Costa? Da percepção que tu tens onde o filme tem sido mostrado, das opiniões, o que é que te parece?
Eu penso o seguinte: sobretudo o primeiro filme, quando ele aparece, há uma grande expectativa, porque não há assim tantos filmes sobre o Pedro Costa. Havia um outro, Tout refleurit: Pedro Costa, cinéaste (2006), e não havia mais nada.
Quem vai ver o filme vai um bocadinho nessa ideia: “vamos lá ver o que vamos encontrar, quem é o tipo que faz este filme?” O feedback foi surpreendente. Não se encontraram com nada do que estavam à espera, no sentido em que o filme vive e sobrevive por ele mesmo. Quem sabe sobre o cinema do Pedro Costa, fica, se calhar, a saber um bocadinho mais, e quem não conhece o cinema do Pedro Costa, pode interessar-se por ele. Eu diria que o filme tem essa grande capacidade de sobreviver, de não fazer mal ao cinema dele, mas também não procura estar em “bicos de pés” com nada, quer dizer, procura simplesmente estar ali. E isso eu acho que é bonito. Não é só neste filme, nos outros que faço, procuro que a coisa não fique “em bicos de pés”, não sei se isto faz sentido para vocês.
VR – O meu primeiro contacto com a tua obra foi, como tu sabes, com o Sacavém, e o que me interessou no filme foi isso: o filme não se põe em “bicos de pés”, mas também não se submete àquele universo. Também ajuda o facto da própria figura (do Pedro Costa) só aparecer ali entre espelhos. Mas esse próprio olhar exterior acho que valoriza o filme enquanto objecto.
Eu diria, também, porque tenho a ideia de partida sólida: gostava de trabalhar os objectos dentro de uma filmografia. Não me aproximei dele sem uma ideia, sem uma espécie de estrutura. Acho que essa estrutura sobreviveu, apesar de tudo. Pelo menos para mim, foi a âncora que me permitiu ter o meu trilho.
LM – Eu até tinha uma provocação a propósito disso, pegando na ideia de submissão, ou de subjugação a um dado universo, que é imponente e que impõe respeito, como o do Pedro Costa, que está na ligação entre o Sacavém e o Diálogo de Sombras. Fica a sensação que o Diálogo de Sombras ou que a própria exposição Pedro Costa: Companhia parece mais uma emanação do teu filme do que de outra coisa qualquer, nomeadamente por essa relação com os objectos. Ainda há bocado estavas a falar da carta, que esteve exposta em Serralves.
A original? Conheci-a aí.
LM – E eu gostava de perguntar isso: será que o Pedro Costa não se mostra aí “subordinado” a esta tua reflexão sobre os objectos? Será que foi ele que acabou por colher alguma coisa disto, desta experiência iniciada em Sacavém? Podemos descobrir isso, em certo sentido?
Eu nunca te vou responder directamente a isso. Ficaria mal responder a isso. Acho simpático, mas não há mais que se poderia dizer. Agora, o que te posso dizer – que acho muito bonito e que acho que tem interesse para nós nesta conversa – é como é que eu chego ao Diálogo de Sombras. Quando penso que este processo está terminado, quando o filme começa a fazer o seu caminho, e até nos encontramos num outro festival… o Sacavém ainda ganha um sexto objecto, não sei se repararam: no fim, eu já tinha o filme pronto e ele começa-me a enviar fotografias do Vitalina Varela. Fotografias dele, de telemóvel. Eu pergunto-lhe se “posso usar isto” e ele disse-me “faz o que achares bem”. E ele dá-me acesso a um diálogo, ou seja, a um registo, a uns takes de som onde ele está a dirigir a Vitalina. Eu coloco algumas dessas imagens que ele me deu, e coloco-o a dirigir a Vitalina. O primeiro teaser em que nós sabemos alguma coisa sobre Vitalina Varela é através deste filme, o Sacavém. Considero que é um objecto que ele me deu.
LM – Tive uma relação de teasing quando, no DVD da Vitalina Varela, vejo o registo da exposição de Serralves da tua autoria e só depois é que vejo o teu filme, Diálogo de Sombras. Até aí gera-se este efeito matrioska na tua relação com o Pedro Costa. Gostava que falasses sobre o seguinte: como é que surgiu o Diálogo de Sombras, e por outro lado, o que é que tu não querias fazer – às vezes, creio que estas coisas se fazem mais pela negativa do que pela positiva. Aliás, acho que o Diálogo de Sombras não é um mero registo da exposição, mas tu fizeste o registo da exposição. Há essa matéria direccionada por ti, mas, da mesma maneira que o Sacavém foge ao tradicional making of, ao típico extra de DVD, fico com a sensação que o Diálogo de Sombras não é, de todo, uma reconstituição simples do itinerário de uma exposição.
Aí, eu diria que há um momento de generosidade. É o que te dizia: quando termino o Sacavém, penso “ok, a minha relação com este senhor foi simpática, durou este tempo, e agora ficarei com o seu número de telefone e ele com o meu”. Mas depois encontrámos-nos e fomos almoçar, e ele propôs-me: “Júlio, eu precisava… se tu achares bem….”. A coisa inverteu-se um pouco. Não é que ele se tenha detido, mas, com algum cuidado, perguntou-me se eu teria interesse. Ele teria interesse em ter um registo da exposição e depois soltou esta frase: “Eh pá, se quisesses filmar aquilo, a arquitetura, a exposição, eu gostava de ter isso. Mas, se calhar, se quiseres, podes fazer qualquer coisa para ti”. E isto é que é um diálogo muito bonito. De repente senti uma enorme responsabilidade, porque tinha que ter qualquer coisa… mas também podia não ter, podia só ter feito o registo e acabava, mas o que é certo é que foi ele que me deu essa oportunidade de poder continuar a olhar para a obra dele através da exposição.
Portanto, eu fiz essa encomenda, que tu viste e que está no DVD do Vitalina Varela como um extra. Também há uma outra curta-metragem, dentro desse DVD, que é o Chantal + Pedro (2020), que ele me pediu. Naquele momento de estar a fazer o filme, de ir montando segmentos e ir falando com ele, ele diz-me: “eh pá, não queres transformar isto numa curta e pôr isto aqui?” Quer dizer, de repente, há qualquer coisa que é muito forte.
LM – É um efeito desmultiplicador.
VR – O que mais valorizo nesse filme [Diálogo de Sombras], e até escrevi sobre isso, é o questionamento do acto de ver, que é introduzido no filme por um plano em que uma figura assiste a uma projecção, sendo que esse quadro está delimitado por uma porta de luz e ladeado por sombras. No meio daqueles objectos todos, das várias galerias e naquela área monumental dentro do Museu de Serralves, o que é que teve mais preponderância? A gestão daqueles objectos no espaço, olhar para eles e definir isso ou a importância daqueles objectos fora dali? No processo de decisão, de registo e de montagem, é mais importante o lado espacial das coisas ou o valor intrínseco de cada objecto? E até que ponto é que pesquisaste sobre aqueles objectos fora daquele lugar específico?
Na realidade, agarrei-me a uma ideia que é: aquilo tinha uma disposição, isto é, aquele quadro, que estava ali com aquele vídeo, que estava ali com aquele objecto escultórico… Porque é que eles estavam ali? Não havia nenhuma informação acerca de nada. Ele dava-nos a exposição, mas não havia uma folha de sala, faltava uma identificação, mas havia, seguramente, uma razão para estarem ali. O que tentei fazer na investigação que fiz foi cruzar, ou tentar investigar, que objectos eram aqueles, quem eram os autores, a que épocas pertenciam, o que é que tinham escrito sobre o assunto e tentei produzir o meu próprio diálogo. E é curioso: nas conversas que eu tinha com o Pedro, ele ria-se e dizia: “às vezes acertaste, outras vezes nem tanto”. Nunca me disse onde é que acertei, nem onde falhei. Esse foi o meu olhar sobre o assunto: “porque é que estes dois ou três estão aqui e não estão outros dois ou três?” Isso estava seguramente na cabeça dele, a razão de eles estarem ali. Creio que fiz apenas isso com a carta, porque, entre a carta e uma fotografia pequenina onde se vê Robert Desnos entre 10 ou 12 homens num campo de concentração – que eu só descobri mais tarde, encontrando a informação na internet… Era uma fotografia muito pequena, muito perdida na exposição, numa parede enorme, e eu coloquei-a ao lado da carta. Foi das poucas mutações que produzi. De resto, praticamente respeitei sempre aquilo que me era dado a ver. Era uma espécie de visitante naquela exposição e, como qualquer outro que ali estava, estava a fazer a minha própria montagem sobre o que me era dado a ver.
LM – Avançando para A Arte de Morrer Longe, tenho uma questão que vai ao encontro do que estamos a falar e, sobretudo, às personalidades que temos estado a mencionar. Queria saber se não encontras aqui, enquanto primeiro espectador dos teus filmes, uma constelação composta por José Bragança de Miranda, filósofo e professor universitário, Pedro Costa, cineasta, e agora, com a tua nova ficção, Mário de Carvalho, escritor. Entre estes nomes, o denominador comum é um tal de Júlio Alves. Consegues ver relações ou, voltando ao título Diálogo de Sombras, pôr estas personalidades em diálogo? O que é que terão em comum para ti, o que é que te levou a estas personalidades, para além da questão dos objectos?
Eu diria que nada disto é estanque. Isto não é uma cena de estafetas onde se arrumam coisas. Eu faço o Sacavém antes de fazer a A Arte de Morrer Longe e faço o Objetos Entre Nós antes do Sacavém. Há coisas no Objetos Entre Nós que eu comecei por explorar mas que depois abordo muito mais à frente no Sacavém, plasticamente e filmicamente. E quando chego a A Arte de Morrer Longe, já há uma maneira de filmar que pode ser comum, mas que é muito anterior a estes filmes. Vem como uma forma de filmar ou de trabalhar. Há uma metodologia e um trabalho que está por detrás da câmara, por exemplo, de A Arte de Morrer Longe, que é muito influenciado pelo trabalho, pelas leituras e por aquilo que me é dito pelo Pedro Costa. É muito difícil, quando tens acesso àquele interior, que não sejas influenciado (se és um tipo que pensa e é sensível)… Há qualquer coisa que até na própria metodologia eu ponho em prática naquilo que fui lendo e naquilo que conversei.
Há, por exemplo, uma sequência em A Arte de Morrer Longe, que eu diria que só podia ter sido filmada porque anteriormente eu pensei e mergulhei no cinema de Pedro Costa: qualquer coisa quando ele diz, no Sacavém, algo sobre o real ser muito mais potente do que qualquer coisa encenada… Eu estou a filmar A Arte de Morrer Longe, um filme sobre relações, sobre amores e desamores, e há um pavão que abre as penas, que é um símbolo (quando o pavão tem as penas abertas, está a tentar acasalar e seduzir). O Pedro Lacerda estava a chegar para irmos filmar e entre o Pedro Lacerda e eu, a uns 30 metros, há um pavão de penas abertas entre nós, e o Pedro – como trabalhamos muito antes de começarmos a rodagem – percebe e começa a interagir. Filmei aquela sequência em talvez 7 ou 8 minutos e era impossível de ter sido escrita, basicamente. Moral da história: essa atenção ao real, a qualquer coisa que pode estar ali, ao lado da câmara, e que não está previsto, se calhar é muito melhor e muito mais potente do que qualquer coisa que tenhamos ensaiado ou planificado.
VR – Como é que o romance apareceu? Quando é que te interessaste por ele e começaste a pensar que poderia ser adaptado?
A literatura do Mário de Carvalho é anterior a tudo isto: ao Bragança, ao Pedro Costa… Adaptei um conto do Mário de Carvalho no ano de 2000, que era o Era Uma Vez Um Alferes, que originou um filme chamado Alferes.
Cruzo-me com o livro A Arte de Morrer Longe em 2015. Penso em adaptá-lo porque havia qualquer coisa que me interessava naquilo. Depois li algures uma frase no meio daquele processo que me parecia interessante: “Há muitas pessoas que se casam e não sabem porquê e há muitas pessoas que se separam e não sabem porquê”. Havia qualquer coisa que este texto me oferecia (não necessariamente a totalidade do texto, que o filme não é uma adaptação literal do livro). Permitia-me trabalhar naquele espaço minimalista, naqueles intervalos tão curtos, porque na realidade, quando se vê o filme, não sabemos porque é que eles se estão a separar e, mesmo no fim, também não sabemos se eles ficam juntos ou não. Sinceramente, isso é um não-assunto: não estou nada preocupado com isso, não me interessa nada o porquê de se estarem a separar ou se, no final, ficam juntos. Agora, se calhar aquilo é um espelho… Quer dizer, um tipo de 40 anos pode fazer aquele filme. De repente, passaram 40 anos e tens mais 40 anos para a frente e começas a questionar tudo. É aquela franja daquela malta que se separa e não sabe bem porquê, mas, de repente, tem que fazer qualquer coisa na vida.
Há ali também um olhar sobre uma cidade e sobre pessoas normais. É muito cansativo estarmos sempre a ver filmes sobre grandes heróis. Nós temos uma certa necessidade de termos “o melhor do mundo”. Já tivemos o special one… Temos que estar sempre com uma bandeira à frente para nos alimentarmos. E é maravilhoso falarmos de pessoas normais, pessoas que também podem ser “eu”. Mais uma vez, trata-se de uma tentativa de não criar um juízo de valor. Agora tem uma outra forma, tem um outro formato: é uma ficção. Quero que seja assumidamente uma ficção, isso é muito claro: aquilo não é real, obviamente que é absolutamente metafórico. De repente, eles estão a separar-se e a única razão pela qual não se separam é porque têm uma tartaruga? A tartaruga é um animal que vive, ou sobrevive, mais do que o homem. Isso interessava-me. Obviamente que a tartaruga é uma metáfora e pode ser tudo o que nela pomos dentro. Qualquer um de nós pode olhar para aquela tartaruga e imaginar múltiplas coisas através da sua própria experiência. Porque é que eles não se separam, porque é que eles estão a adiar aquele processo?
VR – É curioso teres colocado isto na importância do quotidiano, do mundano, quando, depois, há uma série de soluções, e até o desfecho, que apontam para uma coisa mais próxima do cinema clássico, e até de Hollywood, nomeadamente aquele tema do Marlon Williams, o Make Way For Love, que é um tema que vem de outro tempo (o cantor é jovem, mas é um crooner, a música não é claramente de hoje). E aqueles fotogramas do Sunrise (Aurora, 1927) que contaminam o filme com elementos de outro tempo que não o do nosso quotidiano, que apontam o amor como o centro do mundo, em algo que poderia estar num Murnau ou num musical da Hollywood clássica.
Há uma rima com o estado da personagem e o filme que está a ser projetado. Mas também há outras o ballet que vemos quando ela vai pela primeira vez ao cinema. É uma peça, Twilight de Hans Van Manen, que foi representada duas vezes em Lisboa, uma pela Gulbenkian e a segunda pela Companhia Nacional de Bailado, e representa a emancipação da mulher. Fui ver esta peça quando estava a preparar o filme, depois de o ter escrito.
VR – Encontrei o teu passado recente na publicidade em várias cenas do A Arte de Morrer Longe, na habilidade para filmar lugares e objectos. Muitas daquelas sequências na casa, na sala, quando eles estão de costas voltadas, tudo aquilo pareceu-me uma feliz conjugação de um olhar, de alguém habituado a gerir grandes orçamentos e soluções que resultam em imagens em movimento de pequena duração, mas transpondo isso para quem tem que fazer uma longa-metragem em Portugal, em que o orçamento é muito curto. Parece ter sido uma conjugação que resultou. E aproveito para perguntar qual é o teu lugar no cinema português, agora que vais estrear três filmes nas salas comerciais: achas que é cinema de autor ou um cinema que quer falar para pessoas fora desse âmbito?
A publicidade foi um sítio que eu considero maravilhoso no tempo em que lá estive, porque me permitiu treinar muito, experimentar objectos novos, formas de filmar, câmaras, enfim, filmar em muitos sítios, com muitas pessoas e, como tu disseste, com muito orçamento. Foi uma época boa e que recordo com agrado.
Acho que só posso fazer A Arte de Morrer Longe nas condições em que fiz, próprias de um filme low budget. Mesmo no contexto do cinema português, é um filme que tem um orçamento de telefilme: está num valor 50% abaixo do orçamento de uma primeira obra – só para termos um enquadramento. Acho que só lhe consigo dar aquela riqueza visual, porque efectivamente treinei muito para colocar coisas à frente da câmara, dando-lhes valor. Acho que o olhar está muito treinado. Portanto, investimos muito no que está em frente da câmara em prejuízo do que está atrás da câmara. Éramos infinitamente poucos, uns 10. Fazer um filme com 10 pessoas tem as suas limitações, mas tem as suas virtudes. Se calhar consegues fazer coisas que não podes fazer com 30 ou 40. Filmar um pavão… se calhar nunca conseguias ter feito, porque as pessoas começavam a mexer-se e o pavão fechava as asas. Diria que não conseguiria fazer A Arte de Morrer Longe se não tivesse treinado muito, mesmo numa duração infinitamente mais pequena como é o caso da publicidade.
Acho que o meu lugar é continuar a fazer o meu trabalho… Tive sempre a sorte de estrear os meus filmes nos festivais grandes em Portugal: as curtas-metragens em Vila de Conde, no IndieLisboa, no Doclisboa. Ou seja, consegui sempre ter essa visibilidade através dos festivais. Depois, consegui também que todos os filmes, sem excepção, tivessem estreias em festivais internacionais. O meu objectivo é continuar a usar esta linguagem para continuar a contar as coisas que penso que merecem ser contadas através do meu humilde ponto de vista. É uma espécie de escrita que se vai fazendo através desta coisa de olhar para o lado e ver coisas que me interessam. Uma coisa muito pequena ou uma coisa eventualmente muito grande, como foi olhar para a obra do Pedro Costa. Aprendi muito ao olhar para essa obra. Não me preocupava só em apontar a câmara. Tentava preencher. Investiguei muito. Por isso, quando apontava a câmara, ela tinha mais qualquer coisa atrás, que era todo esse processo. Isto é aquilo que aplico em qualquer projecto, porque como sabem, fazer um filme é uma coisa dificílima, não o executá-lo mas o ele resistir no tempo até ser filme. Porque é duríssimo: tu tens uma ideia e, até ela estar financiada, produzida, exibida – e depois ter ou não ter distribuição, que é a questão que se coloca hoje, de tu não conseguires dar visibilidade ao trabalho…
VR – Queria perceber se tinhas opinião relativamente a outras vias para lá do cinema de autor e daquelas tentativas que resultam sempre em “grandes sucessos” do cinema comercial português. Não existe a possibilidade de tentar falar com um público mais vasto?
Tenho noção de que quando faço um filme como A Arte de Morrer Longe estou conscientemente a falar com um público mais vasto. Agora, quero falar à minha maneira, não quero fazer daquilo um registo com o qual não me identifico ou que não me interessa. Ou seja, não é só a ideia de ter um público específico. Sem as pessoas saberem que era eu que fazia, sempre que uma publicidade minha era emitida às oito da noite, durante um mês ou três, tinha milhões de espectadores. Aqui é difícil. Não sei quantos espectadores é que estes filmes farão. De qualquer maneira, dividia isto da seguinte maneira: obras ou filmografias como a do Pedro Costa, e não só, são obras que perduram no tempo, ou seja, que têm milhões de espectadores e que exportam a cultura e a identidade portuguesa, e que a espalham, ramificam e, de uma certa maneira, lhe dão espessura.
Acho que a questão que actualmente se coloca, e eu poderia pedir-vos ajuda, é discutirmos a questão da visibilidade. É a grande questão. Parece absurda porque, de repente, temos tudo em aberto, canais como o YouTube, o Vimeo e não sei quê, que democratizam este processo. Mas o que é certo é que não há nenhuma rentabilidade nesta questão.
VR – Estás a falar de crítica?
Não, estou a falar da questão física, ou seja, tu mostrares os filmes e esses filmes terem espectadores. Agora, é bom para os cineastas estrearem os filmes em sala, mas vocês sabem, melhor do que ninguém, quantos espectadores estão na Cinemateca às 21h30 e em Famalicão, no Close-up – Observatório de Cinema.
VR – Todos nós somos defensores do cinema que perdura no tempo, que continuará a fazer espectadores e que será passado através da memória de gerações. Mas não há muitos Pedro Costa e esta tentativa que aparentemente temos é a de querermos multiplicar essas figuras tutelares. O que me parece é que também deve haver essa ambição de procurar fazer as coisas de outra forma, falar com outros públicos, com um cinema ainda assim íntegro artisticamente.
LM – Não sei se era o William Friedkin quem dizia que o pior que pode acontecer a um realizador, sobretudo no início de carreira, é ter um grande sucesso. Ele achava que os filmes que perduram mais – e na Cinemateca, de forma consistente, têm um auditório que vai crescendo quando são mostrados – são normalmente “pequenas pérolas”, filmes muitas vezes de pequena dimensão que se mantêm como filmes de culto, digamos assim.
E qual é o papel da crítica nisso? Isso também importa na vida dos filmes, essa ressonância não se traduzir apenas em números de espectadores mas também em ideias e afecções.
Sem dúvida. E até tenho pensado sobre isso, porque gostava de fazer um filme sobre a crítica de cinema. Por exemplo, uma das coisas que reflecti, e tenho vindo a reflectir, é que, como estava a contar há pouco, fazer um filme é um processo diarístico, que se transforma em anos e que, obviamente, a relação do realizador com esse objecto, com aquelas emoções e com aquelas pessoas envolvidos na processo, não tem comparação com um olhar frio e analítico, como pode ser o de um crítico. Depois há, realmente, este desencontro, que é: obviamente que qualquer pessoa gostaria de ser reconhecida e o que é certo é que, na maior parte das vezes, os cineastas estão sempre chateados com a crítica, porque ela não corresponde exactamente àquilo que eles achavam que ela seria.
LM – Estão sempre à espera daquela coisa do gritar “genialidade”, mesmo para os autores mais conceituados. Parece que estão sempre à espera de um thumbs up.
Eu estou a falar de um ponto de vista, que é o meu, e vocês estão do outro lado, no lado da crítica. Mas, usando essa ideia de que há um objecto entre nós, que é um filme, a dimensão, o corpo e a alma que eu partilho com o meu objecto é infinitamente maior do que aquela que um crítico tem para com esse objecto. A crítica, mesmo quando é muito boa, vai ser sempre curta, vai sempre faltar qualquer coisa.
LM – Há um texto muito bom do John Steinbeck sobre crítica literária, em que ele diz que o editor dele lhe apresentou o que agora se chamam clippings de críticas sobre os seus livros e que ficou particularmente chocado com algumas críticas muito positivas, porque lhe davam a sensação de passarem completamente ao lado das obras. É esse olhar, a densidade desse olhar, que pode estar em falta, independentemente de se gostar ou não?
Há críticos que simplesmente colocam uns adjectivos e esses adjectivos – por exemplo, qualquer coisa do género “este filme é muito mau”, se os trocares por “este filme é muito bom” – são igualmente maus, como crítica, no final. Mas quando lês pessoas, que fizeram o seu trabalho bem, mesmo que não gostem do teu filme, não podes ficar zangado. É a opinião dessa pessoa. E é assim.