Si les Africains ne racontent pas leurs propres histoires, l’Afrique va bientôt disparaître.
Ousmane Sembène
If, in the context of colonial production, subalterns have no history and cannot speak, subalterns as women are even more deeply in the shadows.
Gayatri Chakravorty Spivak, Can the Subaltern Speak ?, 1985
Em vigor entre 1934 e 1960, o Decreto Laval proíbe a realização de filmes por cidadãos africanos nas colónias francesas, deixando a representação dos povos e das culturas da “África negra” exclusivamente nas mãos de cineastas e etnógrafos do “Primeiro Mundo” ocidental (com destaque para Jean Rouch), os quais, mesmo quando bem intencionados, acabam muitas vezes por exercer um olhar exotizante e paternalista sobre o “Outro negro”. A emergência tardia de novos olhares cinematográficos eminentemente africanos será impulsionada pelo reconhecimento da independência de várias colónias francesas da África subsariana, no início dos anos 60, acontecimento que não só conduz à revogação do Decreto Laval, como se faz acompanhar por uma mudança de atitude do governo francês de Charles de Gaulle em relação à produção cinematográfica nesses países. Alguns dirão, contudo, que as políticas de apoio e de cooperação financeira e técnica implementadas pelos organismos estatais franceses contribuem inicialmente para manter a indústria cinematográfica africana sob o seu controlo: isso é particularmente notório na escolha do francês como língua principal da maioria das produções, sendo este um fator decisivo para a obtenção de financiamentos por parte dos realizadores africanos.
A génese de La Noire de… (1966), primeira (curta) longa-metragem de ficção realizada pelo escritor e cineasta senegalês Ousmane Sembène, constitui um exemplo emblemático da ingerência do Ministério da Cooperação francês na produção cinematográfica das ex-colónias nos anos 60. Não obstante os esforços do realizador para tornar o seu projeto elegível aos apoios franceses, o argumento de La Noire de…, adaptado de um conto escrito pelo próprio (incluído na coletânea Voltaïque, publicada em 1962), será chumbado – uma decisão que pode ser entendida como uma tentativa de travar a produção de um filme cujo posicionamento político explícito, neste caso a denúncia do oportunismo neocolonialista e do racismo endémicos do Ocidente em relação à mão-de-obra barata oriunda dos países africanos, é encarado como uma crítica virulenta à política cultural do Ministério da Cooperação nas ex-colónias. Será, então, graças a André Zwobada, antigo assistente de Jean Renoir no documentário comunista La vie est à nous (1939) e realizador residente em Marrocos desde o fim da guerra (Les noces de sable, 1949), que o filme de Sembène acabará por ser produzido com o apoio das Actualités françaises, onde Zwobada trabalha; no entanto, para se aproximar do formato curto das reportagens, o cineasta vê-se obrigado a reduzir a sua duração para cerca de uma hora. Sembène terá mesmo inventado uma palavra, mégotage, para designar essa prática da montagem que consiste em “retalhar” um projeto para o tornar “próprio para consumo” (e sobretudo, passível de ser financiado), aproveitando todas as “esmolas” oferecidas pelo Ocidente. Apesar das dificuldades, La Noire de… não passa despercebido à crítica internacional aquando da sua estreia, em 1966, entrando para a história do cinema como o primeiro filme de um cineasta africano a receber o prémio Jean Vigo, para além de ter ganhado o Tanit d’or na primeira edição das Jornadas cinematográficas de Cartago, na Tunísia.

Aquele que é considerado por muitos como o “pai do cinema africano” vê no cinema uma linguagem universal ao alcance de todos e um potencial aliado na emancipação cultural dos povos africanos: militante comunista e anticolonialista, Ousmane Sembène defende a importância da África contar as suas próprias histórias, para que outros não o façam em seu nome. A sua decisão de trocar a atividade literária pela prática de um cinema militante, no início da década de 60, espelha de certo modo a preocupação de Sembène em tornar as suas criações mais acessíveis aos seus conterrâneos, na sua esmagadora maioria analfabetos. Se Mandabi (1968) será na prática a sua primeira longa-metragem em uolofe (Wolof), a língua natal do realizador, nas suas três curtas realizadas entre 1963 e 1964 (Borom Sarret,L’Empire songhay e Niaye), Sembène manifesta já uma preocupação significativa em dar voz aos “subalternos”, para utilizar o termo da crítica literária e feminista indiana Gayatri Chakravorty Spivak, no seu ensaio de referência sobre o pós-colonialismo, “Pode o subalterno falar?” (1985).
Realizado no rescaldodo processo de descolonização do Senegal, La Noire de… quase não precisaria de palavras para nos fazer sentir o desespero que assola progressivamente a sua protagonista, mantendo-se esta praticamente muda durante grande parte do filme – as raras palavras que saem da sua boca são “Oui, Madame” e “Oui, Monsieur”; porém, é por meio de uma narração em voz off, também elaem francês – “mégotage” oblige –, que temos acesso ao monólogo interior da heroína designada pelo título, ostensivamente ambivalente. Através do duplo sentido da preposição “de” (proveniência ou possessão), Sembène evoca simultaneamente a origem racial e o destino social da sua protagonista: como se ser uma “negra do Senegal” (ou de qualquer outro país africano) fizesse dela legítima propriedade dos patrões brancos e justificasse a sua sina milenar de “escrava”. Contrariamente à Madame de… (1953) de Max Ophüls, o título Noire de… sugere menos o anonimato de uma figura ilustre cuja reputação se quer proteger, do que a perda da individualidade do “Outro” subalterno, cuja voz é ignorada ou silenciada pelas esferas dominantes da sociedade.
A Negra de Ousmane Sembène tem um nome, e importa dizê-lo – e ouvi-lo – em voz alta. Ela é Diouana, jovem senegalesa, originária de uma povoação pobre nos arredores de Dakar, recém-chegada metrópole, de armas e bagagens, o olhar brilhante de promessas de uma vida melhor. Vestido às bolas, lenço na cabeça, colar de pérolas – falsas, claro – e brincos em forma de flor: a cor branca de cada detalhe da sua indumentária contrasta com a pele negra do ultramar. No cais, Diouana interroga-se: “Será que alguém me veio esperar?” (e é como se perguntasse: “Será que a minha existência conta para alguém?”). A voz que ouvimos, em francês, a acompanhar a efígie da estreante senegalesa Mbissine Thérèse Diop, pertence à cantora e atriz haitiana Toto Bissainthe, que assume o papel de narradora supostamente autodiegética de um destino que poderia ter sido o seu, como terá sido o de tantas mulheres africanas que vieram trabalhar para a metrópole como amas ou empregadas. Descendente dos navios negreiros utilizados no transporte de escravos para a América, o cruzeiro que traz Diouana até ao sul da França terá transportado muitos outros emigrantes vindos do continente africano após a primeira vaga da descolonizações; todavia, na primeira cena na alfândega, vemos apenas homens e mulheres brancos, que imaginamos tratar-se de cidadãos de classe média-alta de regresso após umas férias num destino exótico ou uma viagem de negócios. La Noire de… começa assim com a imagem emblemática de um navio, símbolo das duas facetas do neocolonialismo – emigração e turismo – no novo mundo globalizado da segunda metade do século XX.
Efetivamente, alguém veio buscar Diouana: “Monsieur” (Robert Fontaine) condu-la até à àquela que será a sua nova moradia, em Antibes, onde por sua vez é recebida por “Madame” (Anne-Marie Jelinek). Esta mostra-lhe o seu quarto e presenteia-a com a vista da Côte d’Azur pela janela, um paraíso estival e cosmopolita que a jovem não chegará a ter ocasião de visitar. O novo quotidiano que a espera na casa dos patrões revela-se bem diferente daquilo que a jovem idealizara quando, meses antes, ainda no Senegal, fora contratada para tomar conta dos filhos do casal; mas uma vez em França, Diouana depara-se não só com a ausência das crianças, como é mantida fechada no apartamento, sob a vigília constante da Madame, vendo-se reduzida à condição de simples criada para todo o serviço, para não dizer escrava: limpar e arrumar a casa, lavar e passar a roupa, cozinhar pratos exóticos para os patrões e os seus convidados… Estes últimos não se coíbem de tecer comentários no mínimo condescendentes, para não dizer racistas, sobre o destino das ex-colónias e dos povos nativos (“Desde a independência, os negros perderam muito da sua naturalidade”), de apreciar a capacidade de Diouana de perceber – e obedecer– “instintivamente, com um animal” às ordens dos seus patrões, ou ainda de lhe espetar dois beijos na face, sem o seu consentimento, para, dizem, sentirem pela primeira vez o toque da “pele de uma negra” contra a sua.

Como grande maioria da população senegalesa nos anos 60, Diouana não fala francês, não sabe ler nem escrever; assim, quando recebe uma carta da sua mãe (que certamente terá recorrido ao escrivão da aldeia para a redigir – interpretado pelo próprio realizador, numa cameo que reitera através da ficção o empenho de Sembène no combate contra a iliteracia do povo africano), é o patrão quem lha lê e se apronta a escrever uma resposta em seu nome; através da personagem de Monsieur, o cineasta denuncia o paternalismo, cegueira e cobardia que subjazem às relações económicas e diplomáticas entre a França e as ex-colónias. A cena em torno da carta espelha perfeitamente a crítica que Spivak faz aos intelectuais pós-coloniais, os quais, ao pretenderem “falar pelo outro e, por meio dele, construir um discurso de resistência” acabariam por “reproduzir as estruturas de poder e opressão, mantendo o subalterno silenciado, sem lhe oferecer uma posição, um espaço de onde possa falar e, principalmente, no qual possa ser ouvido” (Sandra Regina Goulart Almeida, prefácio da edição brasileira de “Pode o subalterno falar?”, Editora UFMG, 2014).
Esse espaço onde a mulher subalterna pode simultaneamente falar e ser ouvida, Sembène cria-o através do papel que a voz off desempenha em La Noire de…: trata-se de um espaço meramente mental, é certo, mas é nele que Diouana pode expressar livremente os seus pensamentos mais íntimos, as suas esperanças ou desilusões, os seus desejos pueris ou as suas pulsões fúnebres. Expressando-se na primeira pessoa e em francês, a voz melodiosa de Toto Bissainthe, influenciada pela arte dos griotes (depositários e transmissores da memória ancestral africana por meio da tradição oral), narra os eventos que conduziram Diouana à sua situação atual; estes são restituídos através de vários flashbacks que mostram, de forma elíptica, a sua decisão de ir a Dakar procurar trabalho “para os brancos”, a longa espera na praça onde um grupo de mulheres africanas se reúne diariamente, qual mercado de escravos, a chegada providencial da Madame, que escolhe Diouana no meio da multidão, a alegria dos primeiros tempos enquanto ama das crianças, até ao convite para acompanhar a família no regresso à França.

Com efeito, apesar das reservas expressas pelo namorado senegalês (Momar Nar Sene), que adivinhamos ser politicamente mais consciente do que Diouana (nomeadamente através da presença, no quarto deste, de uma foto do líder anticolonial e político congolês Patrice Lumumba), a jovem vê na proposta da patroa a promessa de uma vida de luxo enfim ao seu alcance, como ilustrada nas revistas de moda que tanto gosta de ler. A este respeito, consta que Sembène tinha previsto incluir no filme várias sequências filmadas a cores, com um filtro rosa, que representariam a visão idílica que Diouana tinha da França (tendo estas sido posteriormente excluídas da montagem para reduzir a sua duração). O cineasta opta então pela economia narrativa e pela sobriedade da mise en scène, aproximando-se em vários aspetos de um certo neorrealismo: fora os flashbacks, o “fantasma” do Senegal é tornado omnipresente através da banda sonora, pontuada por ritmos musicais africanos; também a França idealizada é deixada no fora-de-campo, sugerida unicamente através da paisagem da Côte d’Azur vista pela janela; e as tensões sociais e raciais que pautam as relações entre as personagens inscrevem-se na própria matéria das imagens, através da fotografia a preto e branco, dos jogos de luz e sombra que inscrevem a silhueta de Diouana no enquadramento, ou do contraste entre a decoração minimalista do apartamento burguês dos patrões e o amontoado de memorabiliaafricana que se impõe no quarto da jovem.
É de salientar que, contrariamente ao argumento, na versão original do conto de Sembène, a história de Diouana é narrada a posteriori pela personagem da patroa. Entre o texto e o filme, opera-se uma mudança de perspetiva que prefigura igualmente uma inversão das dinâmicas de poder entre a entidade dominante/observadora e o sujeito dominado/observado. Sob o silêncio de protesto e o estado de alienação e de depressão que tomam progressivamente conta do corpo de Diouana/Mbissine Thérèse Diop, ergue-se a voz interior de Diouana/Toto Bissainthe, como um grito do Ipiranga: “Madame m’a menti. Elle m’a toujours menti… Jamais plus elle me mentira. Elle voulait me garder ici comme une esclave… (…) Jamais plus Madame ne me verra !… Jamais plus de Diouana ! Jamais plus je ne les verrai moi aussi.” Nunca mais escrava, nunca mais Diouana? Traduzindo a revolta da heroína por tais palavras, o filme sugere que só um gesto radical e irreversível lhe poderá garantir a última palavra no que diz respeito ao exercício da sua liberdade.
Apesar das contradições e questionamentos que suscita a decisão de Sembène de recorrer a uma voz francófona para traduzir as memórias e os pensamentos mais íntimos e sombrios de Diouana, esse detalhe não deixa de ter um impacto dramático, ao sugerir o quanto os grilhões do colonialismo pesam sobre a identidade da protagonista, ao ponto de moldar o seu “eu interior” numa língua que ela não pode, não sabe, falar. À medida que toma consciência da sua situação, Diouana mostra-se não só disposta a reatar laços com elementos da cultura africana que antes tinha renegado (por exemplo, ao trocar o vestido branco, as jóias e a peruca por tecidos estampados e um penteado de tranças africanas) como capaz de afrontar fisicamente a patroa, nomeadamente quando decide recuperar uma máscara tribal que havia oferecido aos patrões. Essa máscara circula nas mãos de várias personagens e adquire diferentes significados ao longo do filme: para Diouana, o objeto simboliza simultaneamente a bagagem cultural que carrega consigo para onde quer que vá e a verdadeira identidade que ela procura esconder sob a “máscara” da moda ocidental; para os patrões, trata-se de um objeto de coleção que têm orgulho em possuir e ostentar (mais tarde, será também o recetáculo de todos os remorsos de Monsieur perante o destino fatídico de Diouana); e, por fim, de regresso às mãos da criança que a víramos envergar no início do filme, o objeto assume contornos de um totem, um símbolo da resistência do povo africano que, sob a máscara protetora dos seus antepassados, ganha finalmente coragem de olhar nos olhos o seu ex-colonizador.

La Noire de… será exibido no âmbito do ciclo “Domesticidade(s)“, no Batalha Centro de Cinema, no Porto, no dia 10 de Março, às 21h15.