Maryam Tafakory é uma artista e realizadora de origem iraniana (nascida em 1987), que se tem distinguido pelas suas curtas-metragens em forma de ensaios visuais que incidem sobre a sociedade do seu país de origem, e em particular o modo como a informação é controlada e o papel das mulheres é definido na linguagem da cultura e cinema nacional. Recorrendo a fragmentos de filmes iranianos (mas também a outras fontes, como imagens de arquivo ou retiradas da internet), Tafakory dá a volta ao sentido original dessas imagens e constrói colagens visuais acrescentando frases e contexto, para contrariar uma intenção autoritária de restringir a forma de pensar do espectador e abrir assim novas possibilidades de interpretação, de desvendar simbolismos escondidos e formas subtis de comunicação. Com estes filmes, Tafakory transforma essas imagens em armas de arremesso sobre o regime que tenta limitar o pensamento, como boomerangs que regressam como que a dizer que podem tentar proibir o que podemos sentir, mas que as imagens contém em si sempre outros caminhos para exprimir as ideias interditas.
Dos quatro filmes programados pelo Alvalade Cineclube para a sessão dedicada a mostrar a obra da realizadora, podemos dividi-los em dois momentos, de acordo com a sua temática e formato: os dois filmes mais recentes, Irani bag (2020) e Nazarbazi (2022) utilizam imagens de filmes para examinar o cinema iraniano a partir da proibição de mostrar contacto físico entre homens e mulheres, e como isso leva à procura de novas formas de expressão, e também como isso pode ser um reflexo de uma sociedade onde tudo é proibido; os seus dois outros filmes, Zakhm: Absent Wound (2018) e I Have Sinned a Rapturous Sin (2018), assemelham-se mais a filmes-poema pela sua combinação de texto e imagens de arquivo e do quotidiano, mas que, acima de tudo, se preocupam-se com o papel de submissão da mulher na sociedade iraniana.
Absent Wound comenta, ou melhor, ataca, precisamente a organização de uma sociedade que insiste em separar os homens e as mulheres nos seus direitos, mostrando espaços físicos onde a presença das mulheres é interdita (“aqui, a minha respiração é pecaminosa, diz ele”). Algumas frases vão surgindo ao longo do filme (excertos de textos do Corão, de O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir e da colectânea Female Embodiment and Feminist Theory) e que vão construindo uma colagem textual, um poema improvisado, que ao surgirem por cima das imagens subvertem o valor “sagrado” desses locais, mostrando-os como locais de perpetuação não simplesmente da tradição mas de uma agressão sobre as mulheres, como símbolos opressores da estrutura da sociedade. Intercalando imagens de um dos locais, uma espécie de templo onde homens se juntam para uma fantasia de uma espécie de treino para guerreiros, com outras imagens que progressivamente retratam a dor sentida pelas mulheres pela sua separação forçada, o contraste entre os dois evidencia a distância emocional entre quem compactua com esta condição actual, e quem procura lutar por uma qualquer mudança. À medida que o filme avança, e as imagens e palavras se tornam mais fortes, com o sangue a escorrer pela perna de uma mulher seguida das palavras “recuso-me a reproduzir / para continuar a espécie”, o efeito é atordoante, como alguém que acorda de um sonho para enfrentar uma realidade agressora presente em todo o lado, manifestando neste filme um revolta que, como sublinha o texto deste filme, não pode continuar imaginária.
Por comparação, I Have Sinned a Rapturous Sin é mais ligeiro mas igualmente eficaz a fazer o diagnóstico da forma como o regime iraniano utiliza a religião para impor à mulher um papel de submissão e de género inferior na sociedade, e a desmontar a propaganda utilizada para se auto-justificarem, sob o pretexto de uma pretensa autoridade (i)moral. Apresentando uma série de lições, comunicações, e sermões por figuras religiosas sobre o tema do comportamento sexual das mulheres, e como estas devem evitar certos comportamentos e outros conselhos progressivamente mais bizarros (como comer alface para reduzir o desejo ou aplicar vinagre na roupa interior), o filme demonstra a imoralidade destas figuras que ocupam o tempo com pensamentos perversos a pensar em formas de controlar o comportamento das mulheres. Seria cómico – e o filme diverte-se a espaços a caricaturizar estas figuras sinistras como alcoviteiros obcecados que só pensam numa coisa – se não fosse trágico pensar que este é o pensamento que controla a sociedade, e pelo qual somos recordados quando vemos as mulheres na audiência a ouvir sem poder ripostar – que é algo que o filme faz em seu nome: ao longo do filme surgem intercaladas imagens da própria Tafakory a escrever em giz passagens do poema “Sin” de Forugh Farrokhzad (artista, escritora e realizadora, é um importantíssimo nome da cultura iraniana, cuja obra está proibida, e escreveu este poema quando tinha 19 anos; viria a falecer num acidente com 32), ao mesmo tempo que sussurra essas palavras como forma de resistência: “pequei um pecado arrebatador / num caloroso abraço inflamado”; e nos momentos finais, com a recuperação de uma sequência de um filme iraniano que envolve precisamente uma folha de alface e um outro momento de desafio e desobediência em relação a estas proibições, novamente a apelar ao protesto e à revolta.
Com Irani bag, Tafakory vira as atenções para outro tipo de proibições, presentes no cinema iraniano e os seus códigos: quando é interdito mostrar o contacto físico entre homens e mulheres, como é que se filma essa acção, como é que se exprimem afectos? Neste caso, uma mala pode ser um objecto comum, mas quando surge como um intermediário, como um mediador entre duas pessoas impossibilitadas de se tocarem, ganha um significado impossível de ignorar. Tafakory mostra, através da utilização de sequências de imagens de diversos filmes iranianos, um encadeamento deslumbrante sobre a negação desse contacto no cinema iraniano. Irani bag revela como, a partir do momento em que estamos conscientes dessa proibição, como uma simples mala se pode tornar uma extensão do corpo, ou como o instante em que duas pessoas tocam ao mesmo tempo na mala, ou simplesmente por tocarem no que o outro acabou de tocar, como isso substitui-se à ausência de toque, impõe-se (esses momentos partilhados) como o “novo” toque, que sobrepõe-se à proibição, porque se é possível proibir o toque, não é possível proibir o desejo, que sobrevive através de outros meios.
Irani bag pode ser visto como uma espécie de preâmbulo para Nazarbazi, não só pela aproximação ao formato do vídeo ensaio a partir de imagens de filmes, mas pela forma como este último amplia o espectro do olhar sobre o cinema iraniano, e a forma como examina as fugas às proibições impostas no cinema iraniano – não só do toque, mas das mulheres num papel invisível, inaudível na sociedade – mas na realidade Nazarbazi (que significa precisamente “jogo de olhares”) é mais como uma súmula das obras anteriores de Tafakory, ao recuperar elementos dos seus outros filmes, como um texto poético, e um olhar mais abrangente sobre o papel da mulher na sociedade iraniana, e até uma reivindicação pela mudança. A proibição de mostrar o toque físico entre homens e mulheres no cinema leva a um jogo nas entrelinhas das imagens entre os cineastas iranianos e as audiências, como vimos em Irani bag, através de artefactos intermediários. Porém, Nazarbazi mostra que apagar esse movimento é reduzir o papel das mulheres: a algo proibido ou não mencionável (como o sangue de Absent Wound), a algo sem voz, apagado ou sem desejo (como em I Have Sinned a Rapturous Sin), a algo que não se pode tocar. Mas como mostra Nazarbazi, isso é impossível, estas imagens e a sua luz sobrevivem e sobrepõem-se a tudo, a qualquer tentativa de as limitar através de derivas autoritárias, porque o toque pode sempre assumir novas formas: pode ser um nota de papel amarrotada que contém um poema, pode ser um olhar ou sorriso ou uma lágrima, pode ser o vento sentido na roupa, pode ser uma ferida (“todas as minhas feridas vêm do amor / de amar”). Nazarbazi, que afirma definitivamente Tafakory como uma das pensadoras visuais contemporâneas mais relevantes e distintas, reúne excertos de textos de Forugh Farrokhzad (mais uma vez presente), Roland Barthes, Jacques Derrida, entre outros, para desenhar através deste encontro entre imagens e palavra uma resposta ao cinismo de quem tenta proibir, e assumir o desejo como força central do cinema: “para te mostrar onde está o teu desejo, basta proibir-to… um pouco.”
O Alvalade Cineclube exibe esta quinta-feira, dia 30 de Março, a quarta sessão do ciclo “Irão, meu amor”, (pelas 21h, no Cinema Fernando Lopes em Lisboa), que corresponde à exibição dos filmes de Maryam Tafakory aqui analisados.