Putas ou lésbicas, tanto nos faz que nos nomeiem, desde que se lute e não se perca. Chegou a hora de dizer basta. E formarmos um bloco com os nossos corpos. Novas Cartas Portuguesas (1972)
O que podem…o que podem as palavras, as frases, a literatura? O que é que o reino literário, físico, transformativo da escrita enquanto catarse, manifesto, artefacto consegue fazer que as imagens nunca conseguirão? Sabem aquele ditado, “uma imagem vale mil palavras”? Bem, no que diz respeito à sufocante invisibilidade da existência das mulheres enquanto seres humanos activos na sociedade, não há imagens que façam a tradução quando até aqueles com os olhos mais abertos parecem estar programados para não as ver. A determinada altura no iluminado documentário de Luísa Marinho e Luísa Sequeira, O que Podem as Palavras (2022), agora nos cinemas Portugueses depois de uma passagem vitoriosa pelo DocLisboa o ano passado, onde arrecadou o Melhor Prémio do Público, fala-se disto mesmo relativamente ao porquê do muito ouvido “escrever sobre as mulheres”, que é sempre sobre “as mulheres” e nunca sobre a humanidade. Esta não é só a questão do filme, mas também a do motor que energiza todas as nossas vidas. As palavras tão facilmente potenciam como diminuem e até neutralizam, especialmente no que diz respeito à agência das mulheres e à incessante luta por ela. São instrumentos que se fazem armas quando tudo o resto falha. Para o bem e para o mal. Leio todos os dias conjunções de palavras que são escritas como quem pressiona chagas sangrentas. Não me parece haver trabalho mais importante do que este, o de fazer um cuidado uso delas para tentar conjurar uma imagem da prisão sentida, que não é rebeldia – não há rebeldia quando não há escolha – e no caso das três mulheres que se entrelaçaram e deram a sua voz colectiva a todas as outras num Portugal ainda salazarista, a prova não foi só a de um assalto à linguagem, mas mais ainda do objecto de solidariedade que dele fizeram nascer.

É importante este debate entre a palavra e a imagem. É a palavra suficiente? Precisamos que a imagem a acompanhe? O filme mais recente de Sarah Polley, Women Talking (A Voz das Mulheres, 2022), responde a tais questões com ardor. Mas já aí vou. Primeiro que tudo, O que Podem as Palavras é sobre as “Três Marias” e as suas Novas Cartas Portuguesas, gesto de resistência, e livro que foi de censurado três dias depois de estar em circulação, serviu como justificação para a perseguição e o processo judicial a que as escritoras foram alvo, mas ah como moveu também o movimento internacional das mulheres pelo mundo fora – de Lisboa a Paris a Nova Iorque – e descoagulou o activismo feminista por Portugal fora que continua a abraçar gerações de mulheres. Com isto, há que dizer que se sente no seu latejar, como já se sentia no livro, que nada disto é só sobre onde se vive, mas onde podemos viver, longe da violência imposta pelos fios de fibra patriarcais num entendimento ainda agora agarrado a um conservadorismo inano. Pegando nas vozes e palavras de Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa -, primeiros nomes desgraçados que diminuíam todas as mulheres ao mesmo denominador (a minha mãe é também ela uma Maria, mas deixou entretanto de assinar este seu primeiro nome) -, o modesto documentário parte de um desenho-mapa da memória das três mulheres, que em conversas com a eloquente Ana Luísa Amaral em 2013/2014 relembram e recompõem o texto, subtexto e contexto do momento de criação e do eco subsequente ao livro revolucionário, e a ele lhe adiciona a profusão do documentário enquanto tecido multidisciplinar que amplia o arquivo histórico da altura, fixa-se enquanto registo educativo e tem os moldáveis requisitos para acompanhar e se adaptar à evolução do mundo.
O que Podem as Palavras parte de um desenho-mapa da memória das três mulheres (…), e a ele lhe adiciona a profusão do documentário enquanto tecido multidisciplinar que amplia o arquivo histórico da altura, fixa-se enquanto registo educativo e tem os moldáveis requisitos para acompanhar e se adaptar à evolução do mundo.
Cosido pelo timbre romanesco de Mia Tomé, que oferece a sua voz a citações e textos que oxigenam o filme para que este consiga prosseguir com elegância, o documentário é capaz de injectar o destemor feminista sem deixar o documento deambular em qualquer sentimentalidade. Se faz falta uma outra perspectiva? Claro que sim. Como outros se viram e continuam a ver impactados pelo que ali se passou. Talvez seja por isso que o filme pareça magro no seu rescaldo. Eu queria mais ainda, mais ângulos, mais olhares, mais fogo de artifício. Mais tempo com estas mulheres, que é o mesmo que dizer mais tempo com as mulheres da minha família que, tal como todas aquelas que habitam o ecrã, também já não se encontram entre nós. Essa ponte entre a vida e a morte é crucial. Mas onde O que Podem as Palavras pode ser acusado de altos níveis de sobriedade, compensa com honestidade. Nos meandros do que é social e filosófico, e sempre mas sempre politizado – da liberdade sexual ao desmontar do binarismo ao mercado do trabalho ao corpo da mulher – as palavras viajam para o reino observacional e situacionista, visibilizando as estruturas do que é pensado enquanto individual, mas é, claro, colectivo. Quando é revelado que as três tinham métodos diferentes de ser e até de escrever, as várias camadas e peças do filme unem-se. É comovente como este tinha partido do fim, do colectivo. Vamos fazer isto juntas. E todos os caminhos vão dar ao mesmo lugar: ao alcançar da sororidade, a união entre mulheres na e apesar da diferença, sem dúvida o mais gutural dos gritos de reivindicação. Se três mulheres fizeram assim tanto barulho, as duas maravilhosas Luísas que assinam também elas em conjunto o documentário prosseguem o mesmo impulso dianteiro; exercício de continuidade em tempos de capitalismo selvagem.

Mas voltemos por breves momentos à palavra e à imagem. Numa metáfora para um limbo de tempo e espaço (é sempre esse o mundo das mulheres – nos anos 70 ou em 2023), o Women Talking não faz cinema das palavras. A sua abordagem é profundamente transparente na forma como trabalha o propósito de forma estética, e realiza a figura de estilo, o fogo de que O que Podem as Palavras apenas fala. Se vistos ao lado um do outro, a double bill engendra os mecanismos da conquista que levará qualquer um às lágrimas. Num primeiro acto, o documentário português fala sobre o poder da palavra enquanto a usa de forma expositiva. Num segundo, o filme da realizadora, escritora e actriz canadiana Sarah Polley mostra-a. O que importam são as palavras, o seu ressoar e o exercício de continuidade, mais uma vez, que desse ressoar ocorre. Chega segunda-feira de manhã pós-cerimónia dos Óscares e Sarah Polley tinha, merecidamente, vencido a estatueta para Melhor Argumento Adaptado (do romance de Miriam Toews). Ambos são lugares de fala vibrantes que exemplificam e dissecam eventos, o futuro e os vários porquês. Mas nada mais importa do que ver como estas mulheres dão definição ao que através delas aconteceu. É aqui que habita a verdadeira revolução: na recusa em parar de pensar. Há tanto movimento dentro de cada filme, tanta ocupação do campo da consciência no debate sobre a criação de algo novo que ambos acabam elevados ao vigoroso cinema da militância, onde é a palavra que dá azo à imagem, e não a imagem sozinha que o forma. Se possível, corram para os cinemas e vejam um a seguir ao outro. Não há combinação mais intemporal.
★★☆☆☆