Não posso começar este texto sem repreender-me pela tendência um tanto irracional, um tanto clubística, que certos cineastas despertam em mim, de que à partida um filme realizado pelo sujeito “x” é inevitavelmente bom. Esta “política de autor” é talvez o elemento mais incapacitante e deformador para analisar um filme objectivamente e é, no entanto, aquela que mais prolifera entre a crítica. Sobretudo num tempo onde os autores são cada vez menos, as vozes excitadas de certos críticos, sobre o nome de terminados cineastas celebrados e aclamados, demonstra unicamente a sua própria patética tendenciosidade.
Contra a mentalidade do autor, devemos sempre contrapor o filmismo. Ou seja, a regra que separa o filme do seu autor, para que possamos analisar o filme em si, sem que este faça vibrar as cordas das glórias passadas e a importância do grande metteurs en scène. Claro que um filme nunca deve ser uma unidade fechada sobre si mesma, sobretudo num filme autoral, onde por vezes encontramos certas linhas de estilo que passam de filme para filme, planos caractertísticos ao cineasta, temáticas recorrentes, coisas que dialogam ou se transformam no seu universo. No entanto, mesmo atendendo a esse discurso essencial sobre o modo como analisamos um filme, este nunca deve sobrepor-se ao objecto em si. Contudo, o artifício com que alguns críticos cobrem a pobreza de certos filmes adquire sempre um lado fantasista, onde o crítico, tal como o trolha aflito, vai cobrindo de cimento os buracos do filme, sempre na iminência do edifício ruir.
Sem que nenhum crítico se sinta mais visado do que eu por estas palavras, pois pior que denunciar certas lubricidades, só a ideia de que o ataque infame lhes é dirigido, dou o exemplo da minha relação com Paul Thomas Anderson, cineasta que durante tantos anos fiz como meu e que hoje me arrependo amargamente de certos elogios que lhe teci [sem, no entanto, perturbar a minha relação com Boogie Nights (Jogos de Prazer, 1997)].
Mas bom, partamos para Pacifiction. Se é certo que Pacifiction é uma aparente ruptura com os anteriores filmes de Serra, ou seja, já não se situa num tempo histórico anterior e não parta de nenhum livro, o contemporâneo e mesmo a ausência de um texto prévio não é uma novidade no corpo de trabalho de Serra, na medida em que o mesmo já realizou vários filmes-ensaio nesses domínios [filmes esses que estiveram em exibição no Carpe Diem em Lisboa, aquando a estreia de La Mort de Louis XIV (A Morte de Luís XIV, 2016) e a performance Roi Soleil na galeria Graça Brandão].
Tudo é mostrado ao espectador pelo lado mais evidente, sem que consiga sequer ser erótico, pois o erótico sempre foi inimigo do óbvio.
Contudo, mesmo nessas obras que não deixam particular memória, há sempre um carácter transgressor que em Pacifiction se perdeu por completo. O que resta do discípulo de Sade ou Casanova é apenas a provocação leve e óbvia de elementos sexuais, num jogo forçado, onde a pouca tensão que Serra consegue criar se esboroa por completo ao longo de quase três longas e fatídicas horas. Entre o bar onde os empregados aparecem praticamente despidos a servirem cocktails, um grupo tribal que encena uma luta animal de elementos kitsch para que possa ser servido às massas que vêm apreciar o “exótico”, a actriz trans sempre sorridente e libidinosa e o grupo de jovens revolucionários, tudo é mostrado ao espectador pelo lado mais evidente, sem que consiga sequer ser erótico, pois o erótico sempre foi inimigo do óbvio.
Numa distinção bastante conservadora (e problemática), porém, aplicável a Pacifiction, Byung-Chul Han distingue o «erótico» do «pornográfico», alegando que o mundo contemporâneo está capturado pelas imagens pornográficas (imagens sem densidade) e, por oposição, são as imagens eróticas que constituem um véu, uma distância, para que possamos delas extrair múltiplos sentidos e percepções. De facto, quando Serra nos dá uma dj de peito à mostra, a dançar de forma sensual, restou-me dar um bocejo final face a todo aquele universo falsário de sensualidade gasta e de lugares-comuns.
É estranho pensar que o filme que antecede a Pacifiction seja Libertè (2019), sobre o qual escrevi um elogioso texto, porém faltou dizer algo importante e sobre o qual agora me vejo confrontado ao ver e escrever sobre este filme: equanto o tédio ocupava Libertè do lado do ecrã (do filme), em Pacifiction, o tédio fica do lado de lá do ecrã, ou seja, do lado do espectador. Se aparentemente Serra tinha compreendido bem a lição de Sade e sobretudo de Warhol e Dwoskin, de que o sexo está intimamente ligado ao tédio, o erótico a um jogo que se alonga e se distende até que o cansaço se abata sobre os corpos, à relação íntima entre caçador e caça, que exige sempre das partes uma fuga e uma luta até que possa consumar o acto da caçada, tudo nos é dado de forma gratuita e sem mediação em Pacifiction.
De facto, este último filme de Serra entra duplamente no jogo contemporâneo: em primeiro lugar, através de uma história geopolítica muito mal amanhada, feita de diálogos penosos de acompanhar e de uma intriga que à força de querer parecer opaca e misteriosa, revela unicamente o pretensiosismo do didactismo; em segundo lugar, porque tal como o mundo contemporâneo que Serra procura criticar, fica refém dessas mesmas imagens que o próprio julga possuir um carácter de ruptura.
Na verdade, Serra foi um criador de imagens transgressoras (e não quero com este “ser” conjugado no passado vaticinar qualquer tipo de futuro cinematográfico a Albert Serra, apesar da tentação que há em declarar a extrema-unção, com base em anteriores casos de autores que sempre que pisaram fora dos seus domínios, como foi o caso Kiarostami ou de Apichatpong, toda a vitalidade criativa se dissipar no ar), mas Pacifiction, mais do que um filme que desfigura o universo de Serra, é antes um produto de imagens domesticadas pela sua banalidade, o típico produto pronto a reunir consensos em festivais e a ser celebrado entre críticos. Depois de ter visto, durante a apresentação do filme, Albert Serra na Cinemateca Portuguesa a sorrir, ao proferir que este havia sido o seu filme mais rentável, não posso deixar de lamentar aquele sorriso de triunfo, de quem acredita ter feito mais um filme terrible, mas onde por fim, o grande público e os críticos se renderam à evidência do génio, e não antes o seu contrário.
Parece-me a mim que foi antes Serra que se rendeu ao gosto da indústria e se acomodou, dentro do seu próprio universo (pois não posso deixar de reconhecer ainda assim a idiossincrasia do mesmo, muito em particular na gestão dos tempos e das regras que constituem aquele corpus), a um exercício fácil de digerir, que tem como expoente máximo a cena final, através da boca do capitão da marinha, no qual este discorre em torno de valores como pátria, soberania ou defesa (discurso esse tão fatídico quanto o próprio gesto de colocar este remate final, caso fosse escapar o sentido de tudo aquilo ao espectador).
★★☆☆☆