O filme esboçou-se num sonho (do realizador) em que uma aranha emergia da boca de uma mulher à noite, enquanto ela dormia. Não era um pesadelo, era mais um espanto: uma aranha que vivia na boca dela, saía à noite para uma volta pela casa, para depois regressar ao seu corpo. Durante o dia, a mulher não dava por isso. (…) Esta imagem dava uma presença física à ideia de que há coisas a acontecer dentro de nós, que são estranhas e perturbadoras.
David Cronenberg
Depois de Stereo (1969) e Crimes of the Future (1970), dois objectos irmanados e de fim de um ciclo exploratório, Cronenberg retirou-se para o sul de França, numa sabática de um ano, onde voltou a tentar a escrita de um romance e se interessou por escultura: uma das que fez, em alumínio e que designou de “Surgical Instrument for Operating on Mutants”, incorporava um órgão a operar e o próprio instrumento, algo que haveria de participar do seu filme Dead Ringers (1988). Regressado a Toronto, decidiu que o Cinema seria a sua linguagem de expressão, para a qual precisava de um crescente domínio técnico e de orçamentos mais vigorosos, para chegar ao público. Escreveu, então, “Orgy of the Blood Parasites”, o guião que seria a base de Shivers (Os Parasitas da Morte, 1972).

Cronenberg olhou em volta e constatou que a produção de cinema do Canadá estava reduzida ao documentário: “there’s was no filmmaking of the imagination”. Reparou, então, numa pequena produtora, a Cinepix, que distribuía soft-porno europeu (maioritariamente de produção francesa), com crescente implantação no Québec, mas com reduzido impacto no Canadá anglófono. A Cinepix era liderada por André Link (um judeu europeu, fluente em francês) e John Dunning (um típico anglo-saxónico, branco e protestante), uma dupla que representou para a produção canadiana algo tangente ao trabalho de Roger Corman nas traseiras de Hollywood: filmes em que o assunto garantia a audiência, independentemente da qualidade artística da abordagem. Cronenberg recorda-se de algumas viagens a New York com os pais, durante adolescência, de ter visto filmes com Brigitte Bardot, que não eram mostrados no Canadá, por não estarem autorizados. Então, para ele, o cinema representou desde cedo “sexo, fantasia, erotismo e a Toronto dos anos 50 não era nada disso, era muito repressiva, muito Eisenhower”, como os edifícios de Stereo. O rock n’ roll americano era também “luxuriante” e ele recorda-se de ter escutado pela primeira vez Little Richard e Fats Domino e “nem sabia que eles eram negros, pois no Canadá não havia afro-americanos”.
Quando abordou a Cinepix, eles tinham já produzido uns quantos filmes de um soft-porn exuberante, um exploitation que abusava do corpo feminino; no entanto, os filmes estavam a ser mostrados, as pessoas pagavam pelos bilhetes e havia discos com as bandas sonoras, que eram difundidas pelas rádios do Québec. Enquanto Cronenberg era introduzido ao nacionalismo do Québec, “uma cultura inclusa que se excitava a si própria”, os lideres da Cinepix pretendiam estender-se e tomar o Canadá inglês e esperavam que Cronenberg e Shivers participassem desse itinerário, no que seria a primeira produção de um filme de terror canadiano.
O financiamento e a estreia de Shivers anteciparam os problemas de incompreensão e de censura que a obra de Cronenberg haveria de gerar junto de produtores, financiadores, instituições, crítica e público. A Cinepix teve muitas dificuldades em garantir a aprovação para o financiamento do filme junto da Canadian Filmmakers Distribution Centre (CFDC), que tratou o guião com “repulsa” e só anui três anos após a entrega. “Orgy of the Blood Parasites”, o título original, apontava para um pastiche dos filmes de terror americanos dos anos 50, pelo que Cronenberg alterou o titulo no Canadá para “The Parasite Murders”, numa estreia “infame”, em que grande parte do público se sentiu confrontado, como refere Chris Rodley: “O público não estava preparado para Shivers, pela sua crueza, a alarmante e chocante imagética, como um ataque ao espectador, que experimenta a sensação trémula que sugere que poderemos ter assistido ao fim do inconsciente. Foi atirado para o ecrã algo de verdadeiramente perverso, um esplendor repulsivo, desmascarado e desavergonhado. Shivers estava para lá dos nossos piores medos de forças reprimidas, desejos e fantasias sexuais distorcidas, numa experiência inesquecível, que abriu inevitavelmente, e assente na imagética, as comportas da aversão e da afronta”.

Como a estreia em Montreal (Québec) correu bem, decidiram-se pela tradução de “Frissons” para o titulo internacional de “Shivers”. Os EUA foram a excepção, em que o filme distribuído com o título “They Came from Within” teve uma estreia medíocre, com más cópias de uma versão aparada na montagem para fugir à classificação X-rating atribuída pela Motion Picture of Association of America, que pretendia colocar o filme no âmbito da pornografia. Exibido em quarenta países, Shivers, que ganhara a reputação de primeiro “venereal horror movie”, tornou-se a produção mais rentável da CFDC, mas isso voltou-se contra o futuro próximo do realizador, pois o Instituto não “pretendia os cofres públicos cheios de porcaria”. Aliás, o conteúdo de natureza violenta e sexual foi tão controverso, que o Parlamento do Canadá debateu-o, questionado o valor artístico e sociológico da obra.
O genérico de Shivers apresenta o edifício Starliner, que assume para o espectador o estatuto de personagem, como acontecera em Stereo, mas aqui para lá de uma atmosfera opressora em volta das personagens e das suas motivações: aquele bloco de apartamentos cumprirá as regras do lugar de um filme de terror. Shivers foi rodado durante quinze dias numa torre de habitação em Tourelle-Sur-Rive, em Nun’s Island, Montreal. O edifício de 1962, projectado por Mies van der Rohe, integra o vidro e o aço como os seus materiais de eleição, cultivados pela escola de Chicago, num exemplar minimalista (uma métrica repetitiva e geométrica dos vários elementos), ao encontro da expressão que este mestre do modernismo cunhou: less is more.
A descrição do narrador anfitrião (Ronald Merrick, que transita dos filmes anteriores) estabelece o edifício numa ilha distante do trânsito e do barulho da cidade, um paraíso primordial, mas servido pela tecnologia, reforçado no nome e nos primeiros enquadramentos de Cronenberg que apontam para a semelhança com uma nave espacial. Os apartamentos são descritos como muito confortáveis, dispondo de quartos com áreas extensas e iluminadas pela luz natural, dotados de eletrodomésticos, televisão por cabo e acesso a um parque subterrâneo, ao encontro da relação do automóvel com a vida moderna, em que os pilares da torre se erguem do rés-do-chão para permitirem o seu atravessamento. Mas, o edifício não é apenas um contentor de apartamentos, é uma espécie de comunidade. Uma cidade em altura com uma piscina com vista para o rio que desagua no mar, campos de golfe e de ténis, restaurantes, lojas, incluindo um talho, uma farmácia e uma clínica médica. O narrador convida os utilizadores a desfrutarem de tudo, sem sair do Starliner, até da beleza do céu e das estrelas.

Os cancros criativos, esboçados em Crimes of the Future, tornam-se o assunto de Shivers. O projecto pretendia aumentar as possibilidades de transplantes de órgãos através da criação de parasitas que depois de aprimorados no organismo assumiriam a função de um órgão. O espectador é informado da natureza da experiência pelo relato de um dos investigadores, Rollo Linsky, ao médico do Starliner, St. Luc, relevando mais uma vez os cientistas como os protagonistas eleitos por Cronenberg. Se a descrição do projecto atribui uma condição benévola aos parasitas e por inerência à doença, o inicio da narrativa estabelece que a experiência escapou ao controlo dos cientistas, quando assistimos ao assassinato de uma jovem mulher (depois de esquartejada e desinfectada), seguida do suicídio de Emil Hobbes, primeiro proponente da experiência, que tinha usado a jovem Annabelle como cobaia.
Até a carne envelhecida é erótica; a doença é o amor entre dois seres diferentes… até morrer é um acto de erotismo. Há sexualidade na fala, a respirar, a existir.
No consultório sucedem-se as descrições de caroços no abdómen de vários pacientes, de diferentes idades, todos habitantes do Starliner. Annabelle era popular e encarregara-se de disseminar a praga, como uma doença venérea. Um paciente idoso, também contaminado, será o porta-voz do cineasta ao manifestar uma obsessão com o envelhecimento: vai dizendo a outros pacientes em várias ocasiões que infelizmente ainda não é reversível, enquanto enumera métodos de retardar o envelhecimento, pensando a ciência como uma forma de fintar a morte.
A princípio o parasita esconde-se, enquanto produz ruídos ameaçadores, em canalizações e condutas do lixo, uma metáfora para a forma como o sexo é ainda um assunto oculto e dominado por convenções e restrições. Mas passará a aparecer noutros lugares do edifício com predomínio de várias sequências em casas de banho, lugares que induzem comportamentos sórdidos. A forma predilecta de manifestação do parasita será o falo. Um dos primeiros contaminados, Nick Tudor, um homem ainda jovem, fala com o seu parasita, que se manifestará no abdómen como uma erecção. Pouco depois, a criatura sairá da boca de Tudor com uma tonalidade e uma configuração que a aproxima de um excremento, para confirmar o carácter orgânico do parasita. Veremos pouco depois os instantes anteriores à penetração (uma intrusão sexual), a uma mulher deitada numa banheira, em que o parasita violador, saído do ralo, apresenta uma forma pontiaguda e a mesma tonalidade que saíra das entranhas de Tudor.
A criatura também se transmite de forma oral: duas mulheres beijam-se e assistimos à penetração, à passagem do intruso, que desliza pela garganta da nova hospedeira. Os ataques à população do hotel pelos contaminados surgem com uma fúria sexual, como quem cumpre uma necessidade. No entanto, estas abordagens surgem envolvidas num ambiente de paródia, que evidência a ambivalência de Cronenberg dentro do género de terror, como veremos. Mas, talvez a particularidade mais interessante é que a disseminação da praga não descrimina e a contaminação daquele terror venéreo chega a todas as idades, de crianças a velhos: são zombies sexuais sem restrições, a pôr em marcha uma possibilidade de deter o envelhecimento.

Em montagem paralela com a disseminação da praga venérea, as conversas entre o cientista Linsky e o médico St. Luc aproximar-nos-ão de objectivos mais amplos da experiência e das ideias de Emil Hobbes. O homem é um animal que pensa demasiado e que perdeu a relação com o corpo e com o instinto, diz o cientista. Por isso, este parasita empurra-nos a amplificar a relação com os nossos organismos, numa combinação de doença afrodisíaca e venérea que transformará o mundo numa orgia, despreocupada e de grande beleza. Esta regressão comportamental de personagens que olham para o futuro, será um dos interesses de Cronenberg, colocando mais uma camada na eliminação das limitações sexuais. Uma doença, então, transmitida por via sexual, mas benigna, com atitudes sexuais frenéticas como efeito secundário, em oposição ao caracter punitivo atribuído à sida. Os contaminados só pontualmente conhecem sintomas de fadiga, pois a doença parece dotá-los de mais robustez e habilidade. Nesse retorno ao reino animal, a um espírito de um humano mais instintivo e mais disponível para os apelos do inconsciente, os ambientes despertam na população comportamentos e acções violentas, como numa sequência no parque subterrâneo, em que um dos contaminados impele o seu automóvel contra o veículo do médico, como uma cópula, sugerindo nessa acção um carácter mais fertilizador do que destrutivo, num prenúncio de Crash (1995).
Já próximo do desfecho da narrativa, a enfermeira partilha com o médico do Starliner um sonho que a invadira na noite anterior, em que fazia amor com um estranho. O homem era velho, muito velho. Cheirava mal, era repugnante. O velho dissera-lhe que tudo é erótico, que o sexo está em todo o lado. Até a carne envelhecida é erótica; a doença é o amor entre dois seres diferentes… até morrer é um acto de erotismo. Há sexualidade na fala, a respirar, a existir. A enfermeira acreditara no velho homem e fizeram amor divinalmente. Logo a seguir à descrição do sonho, o parasita sai da boca da enfermeira, para ser estancado pelo médico. St. Luc era aqui o último resistente à possessão pelo sexo. Desde as primeiras cenas que se percebe que Cronenberg abandonou os protótipos experimentais dos primeiros filmes, para se infiltrar no território do horror movie e do exploitation, convocando a exibição do corpo feminino e sexo em abundância.
A preparar o desfiar da narrativa, são disponibilizados indícios ao espectador que antecipam o terror, ou seja: de acordo com os códigos do género do terror, o erotismo antecipa os ataques, como o presságio do castigo a desferir sobre os personagens. Mas a fúria dos zombies é mediada por uma tensão provocada pelo absurdo e pelo humor, pois as investidas dos contaminados ocorrem sob a forma de sexo, o que questiona o terror em favor do deleite, que os violentados invariavelmente abraçam, por entre urros e gemidos que se expandem para lá da torre de apartamentos. O cinema surge como uma leitura de subversão do mundo: uma doença sob a forma de sexo que ameaça invadir a norma, questioná-la para quebrar velhas construções, como num sonho. Cronenberg entende a sexualidade como um dos “assuntos básicos” da humanidade, pois “vida, morte e sexualidade estão interligados”. Como os seus filmes têm uma evidente preocupação com “a morte e o corpo humano, a sexualidade é automaticamente” envolvida. E a transgressão que está latente na sua obra é resultante de, como espécie, “ainda não estarmos evoluídos” sexualmente, nas dimensões físicas e culturais.

Os seus filmes são, então, uma “tentativa para compreender o que um humano completamente desenvolvido poderia alcançar”. Cronenberg recorda Life Against Death (1959), de Norman O. Brown, que abordava os estudos de Freud sobre a “sexualidade na criança” e a “perversidade polimórfica”, uma sexualidade não “genital, não focada”. Nos anos 60 vários estudos desenvolveram essa possibilidade de pan-sexualidade, de uma “inundação de sexualidade”, mas apesar da libertação da associação da gravidez ao sexo, continuamos muito longe de testar essa “consciência dionisíaca”.
Costumam perguntar a Cronenberg: “porque não faz como Alfred Hitchcock e apenas sugere as coisas?”. Ele pergunta, então, se viram Frenzy (Frenzy – Perigo na Noite, 1972, fase de regresso a Inglaterra), que tem “cenas bem sórdidas”. O cineasta pensa que a “reserva de Hitchcock de mostrar as coisas, se devia mais à noção da censura” existente (em Hollywood) “do que às suas vontades”. Cronenberg “tem de mostrar as coisas porque ele está a mostrar coisas que as pessoas não podem imaginar”. Se fosse uma questão de “mostrar alguém a ser alvejado ou a cortar as goelas, poderia fazê-lo fora de campo e o público aproximava-se da ideia do que tinha acontecido”. Mas se pensarmos em Max Renn em Videodrome (Experiência Alucinante, 1983) e a “fenda no seu estômago… se ficasse fora de campo, o que o público pensaria? Não funcionaria”. Essas imagens e essas possibilidades têm de ser mostradas. Não é para chocar o espectador. “São imagens que dão uma presença física à ideia de que há coisas a acontecer dentro de nós, que são estranhas e perturbadoras”. O propósito era, então, “mostrar o impossível de ser mostrado, de falar o não falado”.
O seu cinema estava a “criar coisas que não havia forma de sugerir, porque não eram comuns ocorrências da imaginação”. Pretendia “mostrar algo que não poderíamos acreditar, porque seria ultrajante, ridículo ou bizarro”. Mas o filme “torná-lo-ia real” para o espectador, “mostraria que é verdadeiro”. Cronenberg diz desconhecer “de onde vêm estas imagens extremas”. Para ele parecem “francas, naturais e óbvias” quando despontam. Os parasitas de Shivers vieram do “seu fascínio de infância pelo microscópio, pelos insectos”. Ao contrário dos outros miúdos, ficava deslumbrado a “ver um louva-a-deus a ingerir gafanhotos: era para ele mais do que belo”, algo que via amplificado e que lhe provocava uma “satisfação” visual e intelectual.

Seria necessário seguir o percurso dos filmes para verificar o que é agora evidente, pois o género de terror foi para Cronenberg apenas um casulo para dele emergir a sua crisálida: um discurso filosófico e meditativo, sobre o corpo e a transformação, as entranhas e o seu colapso, o envelhecimento e a morte. O que Cronenberg apreciava nos realizadores dos anos 60 e 70, como Bergman e Fellini, é que os seus filmes produziam “um mundo consistente de filme para filme”, com “um tom, um sentimento e dinâmicas” recorrentes e reconhecíveis para o espectador. No entanto, mesmo dando conta que começara a criar o seu mundo, várias vezes procurou sacudir essa expectativa relativamente ao seu trabalho, pois poderia tornar-se uma “armadilha”, que conduziria à “rejeição” de um próximo filme, por não encaixar em determinado “padrão”. Este entendimento é válido para o espectador e para a crítica.
As preocupações de Cronenberg sobre a libertação do indivíduo das amarras e das convenções sexuais cumpre-se no êxtase de grupo na piscina, como o culminar do projecto científico e do auspício dos seus proponentes: uma orgia, um festim sexual, como uma homenagem ao acto fundador do parasita.
Cronenberg afirma que em todos os seus filmes há “um demónio no canto que não vemos, mas está lá”. No caso de Shivers o demónio é que “as pessoas apreciam as cenas em que os gajos derrubam as portas e fazem o que lhes apetecesse com as pessoas que estão lá dentro”, ou “em que mulheres correm nuas e aos gritos ao longo dos corredores”, fascinadas por experienciar esse retorno ao instinto primordial de que nos falava o cientista. É evidente que há uma disponibilidade do público para a violência e a transgressão, um apelo para a contaminação de algo “proibido”, mas os espectadores também “podem odiar-se por gostarem dessas cenas”. Cronenberg recorda que a critica francesa viu em Shivers “um ataque à vida burguesa, à sua moral e sexualidade”. Mas o cineasta diz-nos que essa forma padronizada de olhar os filmes é redutora: “ao viver em Nun’s Island, todos queríamos partir daquele lugar e fugir, nus, aos gritos pelos corredores”.
Chris Rodley diz-nos que Cronenberg ascendeu à condição de autor, “mais no sentido europeu do que americano”, pois “ele escreve e dirige a maioria do seu trabalho” e persistiu em concretizar os seus filmes “fora de um sistema” que pudesse “ameaçar tomar o controlo de partes ou do todo da produção”. E com essa abnegação, forçou “uma poderosa, chocante e assustadora visão do mundo”, numa série de filmes que começaram como exploiters de pequeno orçamento até chegar a grandes produções. Mas essa ascensão do cineasta foi feita por um caminho pedregoso.

A análise de uma obra através dos princípios de autoria, lembra-nos Rodley, impôs-se nos anos sessenta nas publicações de cinema mais progressistas, em que “se dissecavam os filmes para demonstrar a recorrência temática de preocupações e obsessões do realizador”, entregando uma gradual irrelevância a outros aspectos, como a mise en scène. Esta opção apresentou um eixo virtuoso: “permitiu reexaminar o trabalho de realizadores americanos e questionar as equações tradicionais de oposição entre alta e baixa cultura, arte e cinema, cinema europeu e americano”. No entanto, prossegue Rodley, “o autorismo foi perdendo a sua credibilidade na teoria do cinema e na critica”, gradualmente “mais reacionária do que progressista”, tendo-se transformado numa pobre “ferramenta utilizada por qualquer coluna de jornal e muitas vezes usurpada com motivações de ordem ideológica, da semiologia e da psicanálise”. No arranque da obra, alguma crítica “progressista” foi capaz de observar a “inteligência” de Cronenberg no trabalho exploratório dentro do género de terror, mas a compulsão do cineasta que faz dele evidentemente um “autor clássico”, baralhou a critica, que se revelou incapaz de decifrar os seus temas e de apreciar as qualidades de uma mise en scène cada vez mais sofisticada.
Na sequência final de Shivers, os zombies sexuais, vindos do exterior como uma manada, são um eco evidente de Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968); se os zombies de George A. Romero eram as criaturas saídas do martírio do Vietname, a cabeça de Cronenberg estava no início dos setentas tão ocupada pelas possibilidades da contra-cultura como com os traumas que chegavam da América, como o massacre de Charles Mason ou o assassinato dos irmãos Kennedy e do reverendo Luther King. As preocupações de Cronenberg sobre a libertação do indivíduo das amarras e das convenções sexuais cumpre-se no êxtase de grupo na piscina, como o culminar do projecto científico e do auspício dos seus proponentes: uma orgia, um festim sexual, como uma homenagem ao acto fundador do parasita. Os bandos de contaminados libertam-se da torre Starliner e saem pouco depois, de automóvel, para a noite, para espalhar a boa nova.

Nota: este texto e os seguintes, em volta da obra de David Cronenberg, estabelecerão diálogo com a nova edição de Cronenberg on Cronenberg (1996), que o editor Chris Rodley estendeu com um novo capitulo dedicado ao filme Crash.