I’m the original half-life. I’ve got one daughter with half a mind, the other who’s half a test tube, a house half-full of rabbit crap and half a corpse. That’s a half-life, all right. Jesus, don’t you hate the world, Matilda?
Beatrice (Joanne Woodward) em “The effect of gamma rays on man-in-the-moon marigolds”, 1972.
Why should women accept this picture of a half-life, instead of a share in the whole of human destiny?
Betty Friedan, The Feminine Mystique, 1963.
O que têm em comum Barbara Loden, Ellen Burstyn, Gena Rowlands e Joanne Woodward – Wanda, Alice, Mabel e Beatrice? Quatro atrizes e as suas respetivas personagens que, apesar de nunca se terem cruzado no grande ecrã, terão sido vizinhas de bairro ou companheiras de estrada, habitando no mesmo “subúrbio” cinematográfico imaginário, palco dos sonhos desfeitos, das “crises de nervos” e dos desejos reprimidos que, na década de 70, ainda barram o caminho para a emancipação de muitas mulheres. Estas atrizes/personagens estão entre as primeiras a encarnar o “problema sem nome” ao qual se refere a escritora e ativista Betty Friedan em A mística feminina (1963), estudo sociológico que parte da constatação de “uma estranha discrepância entre a realidade da nossa vida como mulheres e a imagem à qual nos tentávamos adequar”: mães, esposas e dona-de-casas de quem não se espera menos do que a perfeição, eis a imagem da housewife comum (branca, heterossexual, minimamente instruída, de classe-média), levada a acreditar que, se possuir toda uma gama de eletrodomésticos destinados a aumentar o conforto do lar e a auxiliar nas lides da casa, poderá ser tudo aquilo que quiser…
Na década que pôs as lutas feministas nas bocas do mundo, como se explica que tantas mulheres se acomodem ainda a viver as suas vidas “pela metade”, prisioneiras dessa “redoma de vidro” sobre a qual escreveu Sylvia Plath (The Bell Jar, 1963) – e que conduziria ao suicídio a poetisa e mãe de duas crianças? Acima de tudo, como podem elas escapar às garras do consumismo alienante sobre o qual foi talhado o American way of life? Se os meios de comunicação de massa (nomeadamente a publicidade e a imprensa feminina, bem como o cinema hollywoodiano e as séries de televisão) tiveram a sua quota-parte de responsabilidade na mistificação da imagem da mulher no pós-guerra, a partir dos anos 70, alguns/algumas cineastas do cinema independente americano e da Nova Hollywood vão procurar representar as consequências desse “problema sem nome” que corrói a existência de muitas mulheres confinadas ao espaço doméstico.
Wanda, Alice, Mabel e Beatrice: de certa forma, todas elas são “mulheres sob influência”: de um cocktail explosivo de álcool, cigarros e antidepressivos, dos homens que as amam (mal), as cercam ou as abandonam, da toxicidade das relações às quais se entregam e, sobretudo, das expectativas que a sociedade capitalista e patriarcal depositou sobre elas. Quase road movies (Wanda [1970] de Barbara Loden, Alice doesn’t live here anymore [Alice já não mora aqui, 1974] de Martin Scorsese) ou quase huis clos (A Woman Under the Influence [Uma Mulher sob Influência, 1974] de John Cassavetes, The Effect of Gamma Rays on Man-in-the-moon Marigolds [O Efeito dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas, 1972] de Paul Newman), os filmes que elas habitam expõem o contra-campo pardacento e lúgubre do sonho americano outrora celebrado em Technicolor, mostrando de que forma os primeiros sinais de saturação do sistema económico da América de Nixon se repercutem no quotidiano das famílias de classe média, afetando particularmente as mulheres nos seus papéis de housewives (em vários destes filmes, os homens são figuras ausentes, marginais ou passageiras). Para se libertarem, há as que vão e as que ficam; as que se fazem à estrada em busca da sua identidade e se desviam das rotas traçadas pela sociedade (as deambulações de Alice e Wanda pelos bares e motéis à beira da estrada), e as que plantam o caos no interior das próprias casas, fazendo delas um campo de batalha (as relações tempestuosas de Mabel e Beatrice com as suas famílias).
Um outro aspeto permite-nos aproximar Gena Rowlands em A Woman Under the Influence e Joanne Woodward em The Effect of Gamma Rays…: os dois filmes são realizados pelos maridos das atrizes, também eles atores mais ou menos bem sucedidos (enquanto John Cassavetes acumula papéis pontuais na televisão desde os anos 50, Paul Newman estabelece-se como galã e ícone de Hollywood, ao lado de Robert Redford ou Marlon Brando). Entre as várias razões que terão levado Cassavetes et Newman a passar para o outro lado da câmara, podemos destacar uma certa desilusão ou desprezo pela indústria cinematográfica e pelo star system hollywoodianos, assim como o desejo de realizarem filmes que permitam relançar as carreiras das mulheres que amam, para as quais é cada vez mais difícil obter bons papéis à medida que se vêem obrigadas a assumir as responsabilidades da maternidade e que são substituídas por atrizes mais jovens. Assim, no mesmo ano em que Rowlands faz a sua entrada fulgurante no cinema independente de John Cassavetes, em Faces (1968 – eludo deliberadamente A Child is Waiting [1963], produção hollywoodiana renegada pelo cineasta), Paul Newman realiza a sua primeira longa-metragem Rachel, Rachel (1968), já com Woodward no papel principal.
Como Cassavetes, Newman oferece a Woodward um mundo alternativo onde ela pode ser o que quiser e, sobretudo, onde ela pode dar a ver o avesso da imagem de glamour que Hollywood inculcara sobre ela, e da qual o casal se queria demarcar; ainda hoje, eles são considerados como The Last Movie Stars (título da série documental de 2022, criada por Emily Watchel e realizada por Ethan Hawke, a qual presta homenagem à sua longa história de amor dentro e fora do ecrã, desde o seu encontro no final dos anos 50, em The Long, Hot Summer [1958] de Martin Ritt, até ao falecimento do ator, em 2008). Woodward figura em cinco dos seis filmes realizados por Newman; desses cinco, três são veículos para a atriz: em Rachel, Rachel (1968), ela é uma frágil professora celibatária que, aos 35 anos, nunca conheceu o amor e ainda vive com a mãe, tão prepotente quanto dependente; em The Glass Menagerie (Algemas de Cristal, 1987), ela é uma mulher amargurada que foi abandonada pelo marido e cujo maior objetivo é casar a filha aleijada; entre os dois filmes citados, ela encarna a mãe borderline no centro da família disfuncional de The Effect of Gamma Rays on Man-in-the-moon Marigolds (1972) – papel pelo qual receberá o prémio de melhor interpretação feminina, no Festival de Cannes de 1973, dezasseis anos após ter sido galardoada com o único Óscar da sua carreira, pela sua prestação no drama psicológico The Three Faces of Eve (As Três Faces de Eva, 1957) de Nunnally Johnson, filme no qual interpreta as três personalidades de uma mulher com transtorno dissociativo de identidade.
The Effect of Gamma Rays… não só constitui uma carta de amor de Paul Newman à versatilidade de Joanne Woodward enquanto mulher e atriz, como se dirige às gerações seguintes, deixando-nos imaginar um outro futuro para Ruth e Matilda.
De certa forma, a personagem de Joanne Woodward em The Effect of Gamma Rays… revela a “quarta face” da Eva que existe em cada mulher: ela encarna o lado decadente, indomável e irreversível de uma mulher madura que já não reconhece o seu reflexo nos espelhos que a rodeiam nem nos padrões da sociedade que a enquadram. Adaptado da peça homónima de Paul Zindel, o filme de Paul Newman reúne vários ingredientes de um psicodrama familiar com um toque de lirismo, reminescente do estilo de Tennessee Williams. A intriga gira em torno de uma tríade de figuras femininas: Beatrice Hunsdorfer, viúva de um marido que a terá abandonado e deixado na miséria, é mãe de duas jovens que tentam o melhor que podem e sabem construir as suas identidades e futuro; a mais velha, Ruth (Roberta Wallach, filha do veterano Eli Wallach), aparenta ser uma adolescente normal, preocupada com a sua aparência e popularidade, mas é vítima de ataques de epilepsia que plantam nela o receio de se tornar “louca” como a mãe e, pior ainda, de ser alvo de chacota geral; a mais nova, Matilda (Nell Poots, filha de Newman e Woodward), menina tímida de olhos tristes, assiste impotente às crises da mãe e da irmã, até descobrir nas aulas de ciência o seu porto de abrigo, e na noção de átomo o valor da sua existência: como explica o seu professor, os átomos que fazem parte do seu corpo existem na Terra há milhares de milhões de anos, e poderão ter vindo de um animal ou de uma planta, de um grão de areia ou de um diamante em bruto, ou talvez até de um corpo celeste disperso aquando do Big Bang… (“Atom. Atom. What a beautiful word”, sussurra a jovem, extasiada). É precisamente a personagem de Matilda quem prepara, para a science fair do liceu, a experiência-metáfora que dá o título à peça de Paul Zindel, a qual consiste em determinar de que forma diferentes quantidades de radiação gama afetam o crescimento das flores de uma mesma espécie: algumas sofrem estranhas mas belas mutações, outras tornam-se estéreis e acabam por morrer.
Autêntica “erva daninha” que prejudica o desenvolvimento dos seus “rebentos”, Beatrice projeta nas filhas todas as suas frustrações, sabotando, mesmo de forma inconsciente, quaisquer chances de serem bem sucedidas; estas já perceberam que não podem contar com a mãe para lhes dar o exemplo, mas dificilmente escapam à sua influência nefasta. A experiência científica de Matilda impõe a moldura temporal da intriga narrativa, que de outro modo seria “diluída” na temporalidade repetitiva e indolente do quotidiano doméstico: cigarro após cigarro, Beatrice passa os dias de roupão, mergulhada na secção de classificados dos jornais locais ou agarrada ao telefone, à cata de uma oportunidade de negócio que lhe permita dar a volta ao seu destino miserável – cena que Ruth parodia diante dos colegas, num exercício de expressão dramática em que deve representar algo “real”. Fazer troça da sua realidade quotidiana no que ela tem de mais grotesco ou sórdido parece ser, para Ruth, uma maneira de se proteger do julgamento dos outros; mas essa ilusão de controlo sobre a sua própria imagem é completamente desfeita aquando dos surtos epilépticos que sacodem o seu corpo e desfiguram as suas feições.
Paul Newman dirige as suas atrizes como ator do Método que é: para ele, as semanas de preparação e de ensaios são tão ou mais importantes quanto as rodagens, e a realização deve ser o menos intrusiva possível, já que a força emocional do filme assenta menos na inovação técnica ou estética do que no trabalho do texto e dos corpos (e notemos que Joanne Woodward não só passou pelo Actors Studio como foi formada pela bailarina e coreógrafa moderna Martha Graham). Enquanto a mise en scène se retrai nas cenas em que a performance das atrizes é mais intensa, é nos momentos vazios com que se preenche o quotidiano familiar que a pegada do realizador mais se faz sentir. Para além dos espaços domésticos comuns (cozinha, sala de estar e quintal), geralmente mergulhados na penumbra e na desordem, no limite do insalubre, Newman acorda uma atenção particular aos espaços íntimos da casa: enquanto o quarto de Beatrice faz lembrar uma capela mortuária, onde ela vela a sua juventude desperdiçada num casamento falhado, o quarto partilhado pelas duas irmãs, com o seu papel de parede cor-de-rosa florido, evoca a réstia de inocência e de esperança que ainda as envolve; por fim, existe ainda um terceiro quarto, no rés-do-chão, que Beatrice se vê obrigada a arrendar temporariamente a idosos, que aí são ”despejados” pelas suas famílias, muitas vezes até à morte.
Em regra geral, Newman deixa os corpos e rostos das suas atrizes ocuparem o espaço do ecrã, por vezes isolando uma delas num grande plano revelador de lampejos de vulnerabilidade, de loucura ou de esperança, outra vezes jogando com a profundidade de campo para figurar as tensões que pautam a sua coexistência no espaço exíguo e sufocante do lar. Contrariamente à peça de Zindel, cujo huis clos à la Tennessee Williams é justificado pela claustrofobia da personagem de Beatrice, o cineasta e o argumentista Alvin Sargent introduzem vários cenários exteriores que permitem contextualizar o filme e realçar o seu posicionamento crítico em relação à América dos anos 70 (aliás, a bandeira dos EUA pode ser vislumbrada em vários planos). Para além da escola, refúgio solitário para Matilda (sala de aula) ou convivial para Ruth (recreio), Beatrice erra pela vizinhança, por bares mal frequentados e lojas de antiguidades, até vir “naufragar”, podre de bêbada, vestida e maquilhada como uma vamp decadente, na cerimónia de entrega de prémios da feira científica no liceu das filhas, para horror destas. Em cada um destes locais, assistimos ao encontro/confrontação de Beatrice com um homem diferente (um vizinho, um engate ocasional, um agente da polícia e antigo colega, o professor de ciências de Matilda, entre outros) e é através do olhar destes que percebemos como é que a sociedade a vê: devassa e desequilibrada, todos a tratam pela alcunha “Betty the Loon”.
Da fragilidade de Beatrice, o cineasta praticamente só mostra o que transborda da sua personalidade histriónica e afeta diretamente Ruth (a imitação que faz da mãe e que se lhe cola à pele, os espasmos que dão conta da revolta do seu corpo adolescente) e Matilda (as palavras apaziguadoras que lhe dirige no seu discurso final, em voz off, sobre um freeze frame do seu rosto angelical: “No Mama, I don’t hate the world”), com uma exceção: a cena, profundamente melancólica, em que Beatrice, envolta por um manto de verdura e pela luz da madrugada, se precipita numa corrida até ao topo de uma colina deserta, qual Capuchinho Vermelho que nem lobo nem caçador vêm salvar. Durante o resto do filme, a mise en scène de Newman, dura e crua, não procura de forma alguma suavizar os traços da fisionomia ou da personalidade de Beatrice/Joanne Woodward, e dificilmente a julgamos bela ou sentimos empatia por ela, ainda que não a vejamos necessariamente como um monstro. Afinal, Beatrice, autêntico “radical livre”, é também ela o resultado de uma dessas experiências radioativas que correram mal: a saber, a tentativa, à escala de uma nação, de aprisionar as mulheres nos papéis de housewives perfeitas, deixando-as desamparadas a partir do momento em que as suas frustrações ou os seus desejos de emancipação deixam de ser lucrativos para o sistema económico… Em última instância, The Effect of Gamma Rays… não só constitui uma carta de amor de Paul Newman à versatilidade de Joanne Woodward enquanto mulher e atriz, como se dirige às gerações seguintes, deixando-nos imaginar um outro futuro para Ruth e Matilda.