Seis anos e uma pandemia depois de Toivon tuolla puolen (O Outro Lado da Esperança, 2017) há novo filme de Aki Kaurismäki, anunciado por estes dias na competição do Festival de Cannes. Chama-se Kuolleet lehdet (Fallen Leaves, 2023) e, segundo a sinopse no site da produtora, “conta a história de duas pessoas solitárias que se encontram por acaso na noite de Helsínquia à procura do primeiro, único e último amor das suas vidas.” Nada mais clássico, nada mais excecional – apostamos –, vindo do cineasta finlandês que não cede um plano que seja às modas contemporâneas e que aloja na sua estética inconfundível uma modernidade ao arrepio das modernices. A sinopse indica também que se trata de uma adenda à trilogia da classe trabalhadora – Varjoja paratiisissa (Sombras no paraíso, 1986), Ariel (1988) e Tulitikkutehtaan tyttö (A Rapariga da Fábrica de Fósforos, 1990) –, outro indicador auspicioso de que “nada mudou” na mais original das filmografias, esponja das mais diversas lições dos clássicos.
A propósito do novo título, e em particular da recente passagem de Kaurismäki pela Cinemateca Portuguesa, a casa que voltou a celebrar um dos seus realizadores prediletos com um ciclo (“Luzes no Crepúsculo”) e uma carta-branca, recuperamos neste Recortes do Cinema o livro que a mesma Cinemateca lhe dedicou em 2000, aquando de uma retrospetiva integral, com introdução de Nuno Sena e ensaios de Peter von Bagh, Carlos F. Heredero e José Enrique Monterde, para além da filmografia comentada pelo homenageado nessas páginas. Vamos percorrer algumas das noções mais caras do seu universo fílmico na companhia de uma afortunada sessão fotográfica, pela lente da Mariana Castro, que apanhou Kaurismäki no pátio da Cinemateca. Instantâneos que deixam vislumbrar uma certa postura cinematograficamente solitária e secretamente lúdica.
Entramos na “kaurismakilândia” à boleia da referida trilogia do proletariado, exemplar do distanciamento do cineasta no que toca à configuração específica do presente. A esse tópico consagrou o conterrâneo Peter von Bagh umas linhas, num texto intitulado A Comédia dos Vencidos, percorrendo a solidão (lá está), o humor e o falhanço que distinguem as personagens kaurismäkianas em geral.
Numa altura em que o termo “trabalhador” já não era utilizado e a Finlândia, financeiramente, ia a caminho de se tornar num “novo Japão”, Aki Kaurismäki fez uma série de filmes que constituem algo como uma trilogia operária: Sombras no Paraíso (1986), Ariel (1988) e A Rapariga da Fábrica de Fósforos (1990). Estes três filmes estão numa categoria só deles – da mesma maneira que o detetive de Raymond Chandler, Philip Marlowe, é o último solitário ético. Os trabalhadores não deixaram de existir, apesar da emergência de uma nova Europa cada vez mais descaracterizada e apesar de o “socialismo real” ter provavelmente desaparecido da face da terra.
(…) A “sociedade de classes”, a “exploração” e outros problemas tidos como inexistentes são tornados reais de uma forma humorística e tangível nos filmes de Aki. O que é crucial nos “filmes dos vencidos” de Aki é o seu profundo humor; há um toque de melancolia no seu conteúdo que é reminiscente de Charlie Chaplin. Os falhados de Aki vivem inegavelmente “nas camadas mais baixas”, mas ainda têm as suas alegrias rebeldes e lugar para as suas próprias identidades.
Parece-nos que a dita alegria rebelde é algo detetável no próprio cineasta. E uma das manifestações concretas da sua atitude lúdica transfere-se para a vida musical dos filmes, com o rock’n roll finlandês a caucionar certas notas humorísticas. Porém, não há dúvidas de que é na taciturnidade doce do tango que se adivinha a formulação especial de um modo de estar, ou, se quisermos, a inscrição nos filmes da alma finlandesa enquanto experiência comum (não admira que, na vida real, Kaurismäki tenha construído o seu próprio salão de dança). Damos de novo a palavra a Peter von Bagh.
Para a geração a que ele pertence, o tango finlandês sempre existiu. Em muitas conferências de imprensa no estrangeiro insistiu que o tango teve origem na Finlândia e não na Argentina… No entanto, a poderosa forma moderna do tango finlandês data apenas dos anos do imediato pós-guerra, um tempo em que toda a fé na humanidade tinha sido destruída e a sombra da dúvida e o fatalismo ainda obscureciam o horizonte. Os intensos clímaxes da melodia do tango, evocativos do sonho de eterna juventude e das recordações de Verão, estavam cheios de desafio, poder e determinação, tal como reclamava toda a nação finlandesa nesses anos negros e a sua paisagem devastada pela guerra. Grande parte do repertório de clássicos finlandeses foi composto nesse período. (…)
O tango finlandês tem um enquadramento mágico que lhe é próprio: o pavilhão de baile, um lugar onde a natureza e a civilização, a cidade e o campo, os sonhos e a realidade se encontram. Terno e duro, sério ao ponto de ser soturno, há também alegria no álcool de contrabando escondido no casaco ou no bolso das calças. O suspense dramático aumenta acompanhado pela perturbante mistura de perfume, cigarros, vodka e cerveja (mal dissimulados pelas pastilhas para a tosse) e suor. (…) Aki Kaurismäki é uma alma gémea deste quadro (…) [que transmite] de forma poderosa a recordação das coisas passadas, o sentimento do tempo recuperado, com toda a pungência e a força palpável do presente.
Afinal, o presente sempre está lá, por portas travessas. Seja como for, e melancolias à parte, Kaurismäki não é um realizador que dê coordenadas sentimentais. As emoções de cada espectador estão por conta própria diante de uma estranheza familiar habitada pelo esplendor do banal, um pouco como nos diz José Enrique Monterde.
Se retomarmos o princípio godardiano de que um “travelling é uma questão de moral”, também a mise-en-scène de Kaurismäki se eleva ao nível de uma reflexão moral, só que já não sobre a história narrada, mas sobre as suas formas de representação. Reflexão que alcança a própria experiência do espectador na medida em que este não sabe muito bem como situar-se face ao visto e ao narrado, uma vez coarctada a sua cumplicidade emocional; mas ao mesmo tempo é afetado pela estranha forma de realismo que não pode negar perante o que vê.
Essa mise-en-scène despojada, estranha à habitual retórica melodramática, capaz de recusar a tentação da implicação ou inclusive da identificação por parte do espectador apresenta-se-nos como uma estratégia distanciadora que torna ainda mais terrível o conteúdo do relato. Um relato (…) essencialista, sem adornos desnecessários, sem linhas narrativas secundárias, com escassos momentos de clímax, sem sublinhar uma cena em relação a outra, onde o banal é equiparado ao mais dramático, tornando este último todavia ainda mais tremendo pela aparente frieza da exposição da história e pela negação da tradicional adscrição do relato fílmico no âmbito do espectáculo.
Eis um cineasta que veio do frio, de coração quente, um humanista com um mundo de referências cinéfilas no olhar, mas um filtro criativo que exerce suavemente o seu poder sobre a possível transparência do exercício da citação. É por isso que quando vemos um Kaurismäki vemos o ADN de um autor que bebeu de Bresson, Ozu, Buñuel, Huston, Becker, etc., sem se desviar um milímetro da ordem natural das suas imagens, de uma singularidade resistente e inflexível, dentro da “vigilância” dos mestres. Carlos F. Heredero resume tudo:
A obra sintética e aberta de Aki Kaurismäki aparece (…) como uma plataforma expressiva onde a mestiçagem convive com a depuração e o sincretismo com o despojamento. Uma proposta que pode ser vista, entre muitas outras possibilidades e fruto de outras tantas perspectivas, como o silencioso e melancólico lugar de encontro em que o cineasta finlandês insiste em expressar-se, com ferocidade e ternura em partes iguais, para falar com poético laconismo da solidão e dos refúgios que a combatem, da derrota existencial e dos paraísos imaginários.