Na mesma semana, duas acusações sérias pairaram sobre a crítica. Nas duas, acusou-se o crítico de receber dinheiro para falar bem de um filme. Acontece? Não sei. Talvez acontecesse em outros tempos, ou acontecesse mais, quando a crítica valia alguma coisa. Hoje, a crítica vale para quem? Para uma parcela irrisória do frequentador de cinema, tão irrisória que não valeria a pena comprar sua palavra. Quem seria louco de gastar dinheiro com um crítico quando se pode pagar publicidade muito mais eficaz?
Eu pelo menos nunca fui pressionado a falar bem de coisa alguma, em nenhum veículo para o qual escrevi. Também nunca ouvi falar, entre as podridões que acontecem no ramo e me chegam como segredos a serem publicados após a morte de quem contou, de algo tão sórdido. Mas os que acusaram tiveram a certeza de que isso aconteceu. Devem achar que nadamos em notas de dólares, tais como Tio Patinhas em sua caixa forte. Ou que elogio da crítica vale muito a não ser para inflar egos e ajudar na carreira de filmes menores, que só em caso de insanidade pagariam para um crítico.
Não posso dizer quem foi uma das vítimas de tamanha falácia, embora possa dizer que a pessoa é veterana na crítica brasileira e possa mencionar o filme: Cocaine Bear (O Urso do Pó Branco, 2023), de Elizabeth Banks, essa pérola do mau gosto que só poderia ser elogiada por alguém que fosse comprado. E, no entanto, num radar pessoal e muito falível, chutaria que uns 30% da crítica se empolgou minimamente com a ursa viciada em pó que aniquila visitantes de um parque estadual. 30% que teria embolsado algum cascalho para defender tamanha porcaria. A Universal está tão preocupada que agora precisaria subornar críticos, vejam só. Eu estaria entre eles, mas aparentemente não me procuraram.
Para esse tipo de pessoa, crítico é alguém que jamais defende cinema americano. Se for de ação, então, cruz credo.
O outro caso é pior, porque mais estúpido ainda, e envolve este pobre crítico. Teria eu sido pago para falar bem de John Wick: Chapter 4 (John Wick: Capítulo 4, 2023), de Chad Stahelski, longa que aproximadamente 70% da crítica mundial amou. O leitor, um outro, sem ver o filme (a estupidez não tem limites), leu o texto que escrevi e achou que tinha jabá envolvido. Evidente preconceito contra o cinema de ação, de alguém que não tem ideia do que os Cahiers du Cinéma aprontaram ali nos anos 1950 defendendo Hitchcock e Hawks contra os conteudistas e verossímeis. Para esse tipo de pessoa, crítico é alguém que jamais defende cinema americano. Se for de ação, então, cruz credo. Para esses, só interessariam aos críticos os filmes europeus ou orientais, filmes de arte, dentro dessa tolice que é separar arte de entretenimento para falar de cinema.
Nos dois casos, aliás, percebi nos comentários dos acusadores um profundo desconhecimento de cinema e de como é a situação da crítica hoje e de qual é o papel de quem a exerce. Desconhecimento também de como um filme deve ser julgado pela crítica, embora a maioria da crítica atuante de hoje partilhe desse desconhecimento. Por fim, uma ideia anterior aos anos 1950 (e por isso, pré-Cahiers), de cinéma de qualité, em que violência gráfica e sangue espirrando não são coisas de filmes dignos da dita sétima arte. Talvez o problema esteja na própria crítica, que não se valoriza e com isso empobrece os leitores.
Críticos que elogiam de tudo, sem muito critério, como se o cinema de hoje fosse o melhor de todos os tempos, elevando um filme por semana a obra-prima, como já alertava Michel Mourlet em 1959, quando os críticos costumavam ser bem mais rigorosos. Críticos que exibem brindes recebidos de distribuidores e agradecem a “parceria”. Dão a entender o quê? Que a crítica pode ser comprada, e por uma ninharia. Sei que não se trata disso, que esses críticos são mais ingênuos e despreparados, quando não deslumbrados com um falso poder do que realmente desonestos. Mas o leitor estúpido terá a mesma noção? Provavelmente não.
Vivemos todos num grande mal-entendido em que quase ninguém mais sabe sequer o que é crítica.