Apesar de ter vencido um prémio no Festival de Cannes nesse ano, La Lunga Notte del ‘43 (A Longa Noite de 43, 1960), de Florestano Vancini, é hoje um filme algo esquecido.
Se pudesse arriscar uma ou duas hipóteses eu diria que, primeiro, desta adaptação algo incómoda do romancista italiano Giorgio Bassani não sai um bom retrato de um certo ambiente de diluição dos despojos do fascismo no interior da sociedade italiana do pós 2ª Guerra Mundial. No final, numa espécie de epílogo ensolarado, e a meteorologia ajuda-nos a compreender que com as elipses temporais vêm mudanças políticas, o desertor Franco Villani (Gabriele Ferzetti) reencontra Carlo Aretusi (Gino Cervi), que sabemos ter ordenado uma série de mortes anos antes – o filme passa-se no famigerado período da República de Salò (que Pasolini, aqui co-autor do argumento, irá filmar na sua última obra, em 1975, como espaço de sadismo e tortura dos corpos). Ao reencontrá-lo diz à mulher que era apenas um pobre homem que acha que nada tinha feito de errado… Como se o passado tivesse sido um sonho de que ninguém se lembra bem.
É uma boa tipificação da impotência da guerra, o “herói vidente” que faz do ver a sua única produção. A sua doença e imobilidade são evidentes sinais de uma Itália que se havia instalado no fascismo e que, lentamente, percebia essas consequências ainda sem nada conseguir fazer.
A segunda razão que creio explicar melhor, hoje, um certo esquecimento do filme de Vantini é que este parece ter querido acentuar o drama romântico de um amor impossível, entre os seus protagonistas. A jovem Anna Barilani (Belinda Lee), mal casada com um homem confinado à casa devido a dificuldades de locomoção originadas por sequelas da sífilis, que reencontra um romance de juventude, Franco, e que nele vê um vislumbre de felicidade. A música de Carlo Rustichelli, usada com uma certa ligeireza, acaba por acentuar essa vontade excessiva de pathos de um romantismo trágico e dorido.
Contudo, La Lunga Notte del ’43 dá-nos esse fio de argumento mas numa trama mais complexa, no qual as relações surgem de algum modo todas elas estagnadas, interrompidas, obscurecidas. O grande simbolismo, no bom sentido uma vez que primeiro é feito de matéria e só depois de significados mentais, é-nos dado pela fotografia de Carlo di Palma que nos faz entrar numa Ferrara, no norte de Itália, ensombrada em nevoeiro. Nuit et Bruillard (Noite e Nevoeiro, 1956), de Alain Resnais, tinha estreado pouco tempo antes e era conhecida a expressão de Himmler que quem se opusesse ao nazismo seria capturado e mandado para os campos para desaparecer na “noite e nevoeiro”. A “longa noite” no filme de Vantini, que regressa no plano final, num movimento de câmara que mostra a placa dos caídos pela liberdade, foi um nefasto acontecimento de massacre que ocorreu em Dezembro de 1943, quando um grupo de italianos foi executado às mãos dos italianos fascistas da república de Salò que queriam limpar a sociedade.
Mas, como dizia, o nevoeiro tem esta densidade pictórica – li comparações à Vienna de The Third Man (O terceiro Homem, 1949), de Carol Reed, outro filme que não se encontrava temporalmente longe. Este manto de obscuridade e incerteza, como no noir, precisamente, – e este, não esqueçamos, é um filme do denominado pós-neorrealismo – compõe visualmente essa incerteza das relações, essa fluidez dos sentimentos e das normas que, em cada momento, definem uma sociedade.
Talvez o elemento mais interessante em La Lunga Notte del ’43 seja precisamente a personagem do “marido traído”, Pino Barilani (Enrico Maria Salerno). Vantini mostra-nos esse fascista que já não o é mais e que passa o dia sentado à janela a observar tudo o que se passa na sua rua – rua onde se dará o massacre a que alude o título. É uma boa tipificação da impotência da guerra, o “herói vidente” que faz do ver a sua única (e neste caso, insuficiente) produção. A sua doença e imobilidade são evidentes sinais de uma Itália que se havia instalado no fascismo e que, lentamente, percebia essas consequências ainda sem nada conseguir fazer. A imobilidade de Pino é, no fundo, a imobilidade da Itália nesse período até ao final da Guerra, tal como todas as relações que vemos em sua volta: a sua mulher tão imobilizada quanto ele, entre a farmácia onde trabalha e a casa, num casamento infeliz; e mesmo Franco que quando o conhecemos sabemos que não deverá sair de casa sob pena de ser apanhado e morto.
Finalmente, talvez não seja um pormenor que Pino fale constantemente com a sua mulher de cinema. Ela vai ao cinema, mas o filme é interrompido a meio, devido à ameaça de bombardeamento. O cinema literal não é possível, mas é aí que Anna reencontra Franco: e, portanto, o cinema real começa… Bem como a impossibilidade de ir ao cinema do próprio Pino (ele pede-lhe para ela lhe contar todos os enredos dos filmes que vê) que é compensada com a sua posição de “espectador” da sua rua, onde o realismo cinematográfico da rua faz desenrolar um filme de colaboradores e resistentes, vítimas e carrascos.
Num dos diálogos, Pino diz a Anna que fica zangado com as coisas estúpidas que acontecem no cinema italiano. “Não te recordas do cinema americano? Isso sim, era outra coisa…” Isso deixa-me a pensar como James Stewart [Rear Window (A Janela Indiscreta) é de 54] é aquele que, imóvel da sua janela, resolve o crime e Pino é aquele que, imóvel da sua janela, assiste, impotente, aos crimes. Duas acções, uma exterior, outra interior, e dois continentes mentais tão distintos a separá-las.