O encontro com a obra de Júlio Alves surgiu mediada pela galáxia Pedro Costa e dois documentários: Sacavém (2019) e Diálogo de Sombras (2021), os dois estreados no passado dia 23 de Março, depois do percurso pelos festivais. Em Sacavém, como parte do trabalho de investigação académica do realizador, abeiramo-nos da obra de Pedro Costa, a partir de Casa de Lava (1994), no diálogo com um conjunto de objectos: um caderno-memorabilia com que Costa mapeia as suas criações, um conjunto de fotografias ou o elevador utilizado por Ventura à procura do rasto das suas memórias em Cavalo Dinheiro (2014). Um filme feito, então, com a cumplicidade de Costa, mas liberto do formato entrevista e da utilização de imagens de arquivo e em que o próprio cineasta faz aparições fugazes, entre os reflexos de portas e janelas de um gabinete ou como um espectro dissolvido na escuridão durante a montagem de um cenário.

Em 2019, a exposição Pedro Costa Companhia, apresentada no Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves, explorava um conjunto de afinidades artísticas, estéticas e éticas: os Straub, Chantal Akerman, um mosaico da Hollywood humanista (Chaplin ou Borzage) ou iconoclasta (Stroheim) ou artistas como Rui Chafes e Paulo Nozolino. Diálogo de Sombras escapa ao mero registo da exposição ao problematizar o acto de ver, ao intensificar esse diálogo, por vezes quase um duelo, entre o espaço contínuo de narrativas convocados por esses elementos, de modelos de humanismo no retrato dos desfavorecidos, e as projecções dos close-ups dos príncipes de Costa: Vanda, Vitalina e Varela.
A Arte de Morrer Longe, um filme que poderia ser uma possibilidade do tão ambicionado cinema do meio da produção portuguesa.
Entre os dois documentários, Júlio Alves realizou A Arte de Morrer Longe (2020), uma adaptação da novela de Mário de Carvalho (reeditada no livro Cronovelemas), que também estreou nas salas de cinema no passado mês de Março. No primeiro diálogo do filme, o protagonista diz apreciar a ideia de um universo que não tem fim, ou onde o fim está cada vez mais longe e remata, olhando para a companheira (que vemos de costas), que esse fim tem uma parte triste: as coisas estão cada vez mais afastadas. Num campo/contra-campo que os aparta e os distancia, estas linhas insinuam um casal em crise, às portas da separação, como planetas separados por uma barreira irremovível, mas que se descortinam com nitidez. O casal Arnaldo e Bárbara (óptimos Pedro Lacerda e Ana Moreira) procuram concretizar a separação através da divisão dos objectos outrora comuns, em sessões a que se volta durante vários dias. Mas há um problema que subsiste: a tartaruga que ele lhe ofereceu, mas que ela repete que não quer, que é dele.
A tartaruga, um elemento vivo, embora muitas vezes imóvel, é a ultima barreira da separação. Representa o tempo que passaram juntos, por isso ela diz não querer tocar-lhe, como se rememorasse a sujidade acumulada, os detritos daquela relação. Apesar do tom sisudo e melancólico de Arnaldo que manifesta a monotonia dos dias e do ofício de contabilista, ele transporta um saco, onde se lê “Make Way for Love”, não como uma inscrição publicitária, mas como um preceito que atribuiu ao amor o centro do mundo, tão geométrico como uma praça desenhada por um contorno de automóveis. A canção do crooner Marlon Williams há-de assomar vinda de outro tempo, vinda de tempo nenhum. Make Way For Love, então, a que se sucederá pouco depois o espelho de dois ou três planos de Sunrise (Aurora, 1927), de Friedrich Wilhelm Murnau, o mais belo dos filmes, em que o amor é salvo da ameaça do mal, como um milagre que desponta da tormenta. A canção voltará a ouvir-se para rasgar o torpor do casal e para expandir o filme e a imaginação do espectador, para encenar um musical à beira rio, num estúdio feito de estruturas de metal. Um filme que poderia ser uma possibilidade do tão ambicionado cinema do meio da produção portuguesa.

Em Fogo-Fátuo (2022), filme de João Pedro Rodrigues estreado no final de 2022, Alfredo (Mauro Costa), o putativo herdeiro da realeza de Portugal, atormentado pelos problemas ambientais e pela devastação provocada pelos incêndios que marcam a agenda de todos os Verões, alista-se nos bombeiros, contra a vontade dos pais, como quem parte para uma batalha noutro continente, à conquista dos infiéis. No quartel apaixonar-se-á por Afonso (André Cabral), destinados que estão a apagar fogos juntos.
Talvez a melhor forma de expressar o tumulto para o espectador que encontrou o cinema de Rodrigues em O Fantasma (2000), a sua primeira longa, seja relembrar aquela primeira sequência em que um cão cheira e rosna junto a uma porta, a tentar forçar a entrada no quarto onde dois corpos masculinos, um deles mascarado por um manto negro de latex, se guerreiam numa toada sexual violenta, paroxística. A sinopse de Fogo-Fátuo enquadra-o como uma comédia erótica em formato musical. Depois de um percurso de mais de 20 anos de longas e curtas-metragens de uma notável coerência e força autoral, Fogo-Fátuo é a demonstração de que o cineasta não se quer cativo das gavetas do cinema gay; escapa ao imobilismo (Rodrigues disse em entrevistas que não lhe interessa fazer sempre o mesmo filme) e auxiliado pela presença dos elementos herdados da screwball comedy, que nunca tínhamos encontrado no seu cinema, constrói uma violenta sátira à utilização activista e instantânea dos temas do presente (da ecologia às heranças coloniais), e resolve Fogo-Fátuo apenas e só com cinema e a sua linguagem (belíssimos travellings, sim, como num musical). Tal como em O Fantasma, em que o destino do herói a negro se rompe numa noite americana, para se erguer numa colina de lixo na cidade de Lisboa.

Ainda de João Pedro Rodrigues, a meias com Rui Guerra da Mata (seu companheiro de muitos filmes e que também participou na escrita do guião de Fogo-Fátuo), espera-se a estreia comercial este ano de Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes Nem Depois (2022). O filme ambiciona desenhar um mapa sentimental dos lugares da juventude do Cinema Novo, de Os Verdes Anos (1963) de Paulo Rocha, que Rodrigues e Guerra da Mata avistavam da janela de casa em tempos de pandemia. A princípio, os enquadramentos identificam vestígios do tempo que passa, de manchas de humidade em tectos e paredes, para depois seguirmos para uma linha que separara nos anos 60 a ruralidade da cidade, uma mata que na Lisboa de hoje faz figura de ilha. Mas o filme transforma-se, de um registo quase observacional para uma sinfonia da cidade, ritmada pelo movimento de pessoas, skaters e automóveis, e pelo canto de Isabel Ruth, que da perspectiva da janela dos cineastas nos abre a porta de um musical melancólico. Num filme em que o espectador repara quando a câmara mexe, quando algo de significativo é dado a ver, que dispensa a narração e outras muletas, voltaremos a encontrar ruas, praças, jardins e compartimentos interiores, esvaziados pela pandemia, testemunhos de uma cidade fantasma vigiada pelas imagens.
Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes Nem Depois cumprirá o esboço do traço do tempo ao percorrer os interiores de Os Verdes Anos, no abrir e fechar de portas que redime Isabel Ruth, que sairá para a rua para cantar uma ode a Lisboa.
