É como um sonho acordado
Esse vulto besuntado
A revolver-se no lodo
A deslizar de uma larva
Emergindo lá no fundo
Tenho medo ó medo
Leva tudo é tudo teu
Mas deixa-me ir
In “Como um Sonho Acordado”,
canção e letra de Fausto, do álbum Por Este Rio Acima (1984)
Durante muito tempo se disse que o cinema português (e de modo geral, Portugal) não havia ainda lidado com os fantasmas da Guerra Colonial. Como explica Paulo Cunha, no artigo “Guerra Colonial e Colonialismo no Cinema Português”, José Matos Cruz fez um primeiro levantamento dos títulos onde a Guerra Colonial é abordada, sendo 29 Irmãos (1965) a primeira ficção que faz referência explícita ao conflito – filmes como Acto da Primavera (1963) ou Mudar de Vida (1966) faziam alusões mais ou menos metafóricas ou subliminares, sendo que no caso de Manoel de Oliveira a metáfora foi tão, ou tão pouco, subtil que o realizador acabaria por ser preso no Aljube exatamente pelo que tornou explícito no final de uma sessão do filme do Cine-club do Porto. Em período marcelista, e com a guerra sem fim à vista, a nova geração abordava a questão colonial em filmes como Nojo aos Cães (1970), Catembe (1972), Deixem-me ao Menos Subir às Palmeiras… (1972) ou O Mal Amado (1974), todos muito amputados pela censura, senão mesmo proibidos e só estreados após a revolução. No entanto, após o 25 de Abril e pela via da ficção, só mesmo Os Demónios de Alcácer Quibir (1976), de José Fonseca e Costa, rodado em pleno PREC, abordou, pela via alegórica, os fantasmas coloniais a partir da mitologia sebastiânica [antecipando, de certo modo, NON ou a Vã Glória de Mandar (1990)]. Citando Cunha, “O fim da Guerra Colonial e o princípio das liberdades originou um surto de obras literárias sobre o conflito e sobre o fim do Império. No entanto, o cinema português caminhava desconfiado e lentamente, ao contrário do que acontecera no cinema americano em relação ao Vietname”.
Só a partir dos anos 1980 é que as sequelas da Guerra começam a ser representadas no cinema, primeiro com o híbrido Acto dos Feitos da Guiné (1980) e A Culpa (1980), de António Vitorino de Almeida, sobre um ex-combatente que vive com a culpa de ter morto dois homens em combate; depois Um Adeus Português (1985), de João Botelho, “o primeiro filme português onde a guerra é explicitamente o centro e o motor dramático”. Depois destes, outros títulos apareceram como Matar Saudades (1987), o já referido filme de Manoel de Oliveira, NON ou a Vã Glória de Mandar, A Idade Maior (1991), Ao Sul (1993) ou mais tarde e pela via do stress pós-traumático dos ex-combatentes Inferno (1999) – Joaquim Leitão regressará, de forma explícita à guerra, com 20,13 – O Purgatório (2006). Mais recentemente, as incursões pelo universo do conflito colonial marcam-se, ora pelo filtro literário – a partir dos autores que marcaram o imaginário ficcional da guerra colonial da perspetiva portuguesa, Costa dos Murmúrios (2004), Cartas da Guerra (2016) –, ora pelo lado memorialista – O Grande Kilapy (2012), Estilhaços (2016), Guerra (2020) – ora pela questão do assombramento – fantasmático, Cavalo Dinheiro (2014) ou Our Madness (2018), e cinematográfico, Yvone Kane (2014) ou Spell Reel (2017).
Nação Valente (2022), o mais recente filme de Carlos Conceição, integra-se nesta última vertente, a da assombração, com a particularidade de combinar (como o fizeram também, doutros modos, Pedro Costa e Margarida Cardoso), os assombramentos fantasmáticos e cinematográficos. Isto porque, Conceição é, dos realizadores da sua geração (talvez apenas Gabriel Abrantes e Diogo Costa Amarante lhe façam alguma companhia – estando claramente mais próximo de João Pedro Rodrigues nesse aspeto), aquele que de forma mais desapegada joga com os códigos do cinema de género, recombinando-os, invertendo-os, pervertendo-os, ou encontrando neles uma matriz narrativa que lhe serve como veículo para elaborar divertidos jogos onde se vela e revela a sua cinefilia e o seu gosto pelo kitsch enquanto mecanismo operativo para interpelar o mundo.
De facto, mal o filme começa, descobrimos Leonor Silveira de freira, ao leme de um jipe que atravessa uma paisagem africana. Nesse instante, ou pensamos que se trata de uma sequela de A Carta (1999), de Manoel de Oliveira, que terminava com a atriz, de freira, a falar em ir para África fazer missionação, ou, dado o passado de Conceição, imaginamos logo uma sumarenta nunsploitation, na senda do que já se vira no seu filme anterior, Um Fio de Baba Escarlate (2020). Se essas primeiras fantasias de espectador imaginativo logo se frustram, o filme tratará de comprovar que estas suposições não eram totalmente descabidas. Nação Valente tem tanto de Oliveira – enquanto alegoria, enquanto grande projeto de revisitação histórica e na preocupação em torno da iconografia religiosa (o realizador regressa, nesse aspeto, a uma das suas primeiras curtas, Carne, de 2010) – como tem de cinema chunga (deliciando-se nos excessos do sexo, do sangue, dos gritos, dos efeitos, dos clichés e da autoparódia).
Nação Valente é, sem que isso se declare ostensivamente, um filme sobre um objeto: uma medalhinha com a imagem da Nossa Senhora da Conceição. Entre ofertas, roubos, achamentos e entregas, a medalha circula por por cinco personagens ao longo do filme.
Não querendo revelar demasiado da ação do filme (porque a sua força se baseia no prazer da descoberta), sugiro entendê-lo à luz daquilo que é, a meu ver, a forma de esclarecer a sua natureza (auto) reflexiva. Para isso, convoco Mark Rappaport e um dos seus vídeo-ensaios, The Circle Closes (2015), onde o realizador se centra em quatro filmes que giram em torno de um objeto que passa de mão em mão, de personagem em personagem, indiferente ao seu destino, mas mantendo a centralidade narrativa. Esses quatro filmes são Winchester ’73 (1950), Madame de… (1953), Viridiana (1961) e Au hasard Balthazar (Peregrinação Exemplar, 1966). Pois bem, Nação Valente é, sem que isso se declare ostensivamente, um filme sobre um objeto: uma medalhinha com a imagem da Nossa Senhora da Conceição. Entre ofertas, roubos, achamentos e entregas, a medalha circula por por cinco personagens ao longo do filme: três mulheres e dois homens, os “protagonistas”. A medalha ilumina as posições coloniais e o seu percurso descreve a natureza das relações entre cada uma dessas posições: a missionação durante o Estado Novo, o convívio entre colonos e população indígena, a violência “gástrica” da guerra, o milagre do martírio e a possibilidade de um futuro (que não esquece, mas caminha depressa, “que o passado vai a trás”).
É importante atentar (naquilo que poderá parecer um excesso de análise), que o realizador tenha escolhido Nossa Senhora da Conceição como a figura religiosa que passa de mão em mão ligando os vários elementos da história. Se esta é a santa padroeira de Portugal e de toda a lusofonia, revestindo-se assim a sua transmissibilidade de uma ideia de união linguística e como forma de amenizar o conflito a partir de uma iconografia comum, não é possível deixar de reparar que a santa partilha com o realizador o apelido. Até que ponto é possível entender o filme a partir de uma inversão do olhar do realizador, que se representa diegeticamente enquanto objeto que simultaneamente cose as personagens umas às outras (ele é, para todos os efeitos, o criador) e, por outro lado, se deixa levar por elas, indiferente ao seu próprio destino? Conhecendo-se a relação biográfica de Carlos Conceição com o passado colonial (nasceu em Angola, filho de três gerações de angolanos) e recordando-se que esta mesma temática já antes havia sido abordada na sua filmografia pela via da ficção científica – sempre através do alter ego que é o ator João Arrais, nos filmes Acorda, Leviatã (2015) e Serpentário (2019) –, é impossível não tresler esta medalha, que acaba nas mãos de Zé (João Arrais), como forma de herança, com cheiro a sangue e a merda, tão pessoal quanto nacional. Ou, como em O Ornitólogo (2016), uma qualquer forma de expiação.
Estabelecendo este fio de ouro que atravessa o filme qual linha condutora, logo se percebe que Nação Valente se constrói em espelho (ainda que não de forma simétrica), sendo a dobra entre um lado e outro, o raccord que o realizador estabelece entre as pernas nuas e embotadas de um militar que corre de dia, e outras, calçadas de camuflado, que correm de noite. De ambos os lados deste espelho dobrado encontra-se uma mulher salvífica (ora santa, ora puta – mas ambas enfiam o dedo nos homens, a primeira, num orifício de bala no peito de um combatente, a segunda, no cano de uma metralhadora, apropriadamente colocada entre as pernas de um soldado), encontra-se uma imagem santa (a da Virgem Maria e outra da Brigitte Bardot), encontra-se um morto mal enterrado que tratará de atormentar os vivos (dois homens negros, o primeiro, porque não se tocaram os tambores para que a terra o tragasse, como era costume, com medo de atrair as tropas portuguesas, o segundo, como represália, “ficas aqui aos abutres e às hienas”) e nos dois lados deste espelho há, por fim, uma relação sexual que termina num homicídio à queima-roupa. O que daqui se conclui, e que a cena final no quartel com aquele pano de veludo vermelho torna literal, é que – como diz Marx – a história repete-se, primeiro como tragédia, depois como farsa (até nesse ponto o filme aproxima-se da sequência de estúdio de Os Demónios de Alcácer Quibir). A questão é que a farsa, aqui, ainda mata, ainda fere e ainda perdura. Daí que custe sair dela, e que só a muito esforço, depois de várias tentativas e de muita violência – como em They Live (Eles Vivem, 1988) –, lá se abra uma brecha por onde se vê, por fim, a luz púrpura da alvorada. A luz de um sonho acordado (e amedrontado – porque nada do que ali se passou foi imaginário).
★★★★☆