A violência de Chibusa yo eien nare (Para Sempre Mulher, 1955) encontra-se na claridade da sua mise en scène, no modo como tudo é ostensivamente simbólico, como tudo aqui é diegético e como cada gesto, cada pausa, cada objeto é significante. O que magoa, neste terceiro filme de Kunuyo Tanaka como realizadora, é o domínio elegante (e não necessariamente discreto) da narração, onde tudo regressa, tudo ecoa, tudo se repercute no filme (e em nós), mais cedo ou mais tarde.
Vejam-se as luvas brancas que Fumiko (Yumeji Tsukioka) atira ao marido e que logo “regressam” pretas, no momento seguinte do divórcio (e repare-se onde coloca Fumiko a declaração de divórcio, dentro do kimono, junto ao peito esquerdo). Note-se, ainda na mesma cena, os dois momentos em que a protagonista observa o filho pela janela (Tanaka trabalha magistralmente a profundidade de campo e os sobreenquadramentos com portas, janelas, grades, portinholas, umas dentro das outras), primeiro com deleite, enquanto ele brinca com um boneco de neve, depois, quando dele se separa. Atente-se nos dois planos contrapicados que Tanaka lança sobre Fumiko do fundo das escadas, o primeiro aquando da morte de Taku Hori (marido da amiga de infância, Kinuko, pelo qual Fumiko tem um amor não correspondido), o segundo a propósito da publicação dos seus poemas (resultado do esforço de Taku), ensombrando assim a felicidade daquela notícia. Ou os dois percursos que se fazem pelo corredor que dá acesso à morgue, a grade do quarto, a grade da cama e a grade da morgue. A recorrência dos medicamentos, que o marido toma em excesso, que Taku toma sem reprimenda e pelos quais ela implorará, nas noites mais sofridas. Ou os silêncios – totais; a banda sonora emudece completamente – sempre que há uma morte, para que no final se oiça, por duas vezes (!), “Deixem-me ir em silêncio”.
E o que dizer dos banhos? O primeiro de Taku Hori; o segundo da própria Fumiko, como manifestação do desejo enquanto forma de ocupação e transferência – no único momento em que se lança um olhar para a câmara –; e o último, quando Fumiko pede para que lhe lavem o cabelo nos seus últimos instantes de vida. Uma água que lava e que mata: Taku morrerá depois desse encontro, num plano final em que olha Fumiko ao longe sob um guarda-chuva, é o banho de Fumiko que agravará definitivamente a sua pneumonia, acelerando o seu fim, e é com os cabelos molhados numa bacia que Fumiko dará o seu último suspiro. E já depois de morta, deixam-lhe na mão um telegrama do jornalista (Ryôji Hayama), ecoando o seu primeiro encontro, que acontecera exatamente porque ele não recebera o telegrama em que ela o rechaçava.
Repare-se, ainda, no pequeno espelho de mão que Fumiko carrega ao longo do filme. Esta é, de todas as recorrências, aquela que melhor dá a ver o arco de transfiguração de Fumiko – há outra, como me fez notar Miguel Patrício, programador deste ciclo, que são os três desmaios de Fumiko, cuja significação remete para os desmaios de O’Haru em Saikaku ichidai onna (A Vida de O’Haru, 1952), de Kenji Mizoguchi, protagonizado pela própria Tanaka três anos antes; a antecipação da perda do marido, da perda do filho e da perda da própria vida. Na sua primeira aparição, o pequeno espelho reflete as mãos da protagonista que apalpam a própria mama em busca de algum nódulo que justifique as dores que esta lhe tem dado. É o primeiro momento em que se torna claro que, daí em diante, será o cancro a tomar as rédeas da vida dela – mas, perceberemos, será na verdade o contrário (não é certamente coincidência que o filme comece com a filha de Fumiko a dar ordem a um cocheiro para que ande mais depressa – que comanda? quem segura as rédeas?). É, portanto, um primeiro momento de autoanálise: Fumiko examina-se, vê-se no próprio espelho, descobre o seu corpo – ainda que, como se dirá adiante, seja tarde demais. Na segunda aparição do espelho, quem surge refletida é já Kinuko (Yôko Sugi), a amiga dos tempos de escola, que a vai visitar ao hospital depois da mastectomia. Quem segura o espelho é, e sempre será, Fumiko, mas a partir deste segundo momento, o espelho passou a ser uma forma de mediação do seu entorno.
É significativo que depois de um primeiro momento de autoavaliação, todas as reaparições desse espelho se dirijam para o exterior, como uma forma de interpor, perante o mundo e Fumiko, uma distância (ou sinal de que a doença a libertou dos constrangimentos, mais ou menos sociais, mais ou menos biológicos, do próprio corpo). Mas não é certamente por acaso que depois de Fumiko usar o espelho para se ver, use o espelho para ver Kinuko, não fosse a amiga o modelo de mulher que ele sempre desejou ser. É quando a vê, através do espelho, que esse fantasma da mulher perfeita se esfuma, finalmente, e ela sorri, alegre.
E é esta mulher, que deixa de ser esposa, que deixa de ser mãe, que deixa de ter desejo e que deixa de ter “corpo de mulher”, que se liberta por fim disso que é “ser mulher” para finalmente se concretizar.
De facto, Tanaka trabalha as noções de transferência e ocupação entre Fumiko e Kinuko logo a partir da introdução da amiga no filme, quando no primeiro encontro de poesia, a primeira se ausenta mais cedo, dando lugar à segunda (e Tanaka repete, exatamente, o mesmo enquadramento, onde no lugar de uma se encontra a outra), como se Fumiko desejasse tomar o lugar da amiga (ocupando assim o papel de esposa de Taku). Nessa primeira visita que Kinuko faz à amiga, leva-lhe uma caixa de música que era de Taku. Será através dessa caixa que procederá ao reacender da paixão de Fumiko, desta feita pelo jornalista (extraordinário o plano em que um comboio viaja, violento, ao som de uma canção de embalar). A terceira e quarta aparições do espelho dão a ver o jornalista, que se torna a única razão de viver de Fumiko, primeiro por desfaçatez (“não morrerei nunca, nem escreverei mais poesia” enquanto houver abutres em busca do meu último suspiro), depois, por despeito (escreve um “último” poema que é um fardo para o jornalista) e, por fim, por paixão (“escreverei muito e bons poemas até que regresses”).
Talvez essa seja a matriz do melodrama, o retorno como forma de desamparo cósmico, mas aqui isso revela-se enquanto paradoxo: o retorno é a razão de ser do fim de Fumiko, ela só se concretiza, só se torna una com a sua obra, no leito de morte, despojada de todas as obrigações, entregue à doença que, em limite, a liberta para a arte e a abre, por uma vez, ao amor sem amarras (aí se compreende o poema final, a morte como oferta). Esse caminho para a liberdade é, também, uma forma de afirmação individual e artística, que (paradoxalmente e sem qualquer ironia) se materializa na sua própria extinção. Num filme onde tudo regressa, Fumiko caminha para um ponto sem retorno, a morte. De facto, o que dói neste filme é perceber-se que a vida tratou de lhe levar tudo: primeiro o marido (que ele nem queria, mas com o qual estava disposta a ser “a melhor esposa possível”), depois o filho (que vai viver com o marido na sequência do divórcio) e, por fim, a doença levou-lhe o amante e o peito.
E é esta mulher, que deixa de ser esposa, que deixa de ser mãe, que deixa de ter desejo (quando lhe morre Taku) e que deixa de ter “corpo de mulher”, que se liberta por fim disso que é “ser mulher” para finalmente se concretizar – e nunca a vemos tão sorridente como depois da operação em que lhe mutilam o peito, na cama do hospital, no recobro. Será ela quem afirma que, “ao menos assim é certo que não me caso de novo” – leia-se, não me obrigam a casar de novo. A doença é o seu escape (ao papel social da mulher, numa sociedade conservadora, e, paradoxalmente, à vida – é aí que se encontra a génese deste e de todos os melodramas). Há, até certo ponto, um efeito de emulação da doença, numa espécie de atração necrófila pela morte, quando Fumiko revela (no tal segundo banho), que “sempre quis tomar banho no mesmo sítio onde [Taku] se banhou, acho que foi por essa razão que fiquei doente”. A doença é o ponto final da sua jornada pelo desprendimento e aí chegada, ao fim da linha, ela encontra, por fim, a felicidade: passeia à beira-rio, joga a bola à filha como, anteriormente, não o pudera fazer, apaixona-se e escreve poesia, muita poesia.
Destruída e despeitada, ela floresce, como “um anjo na plenitude do martírio” ou, para reincidir em Agustina, como “uma flor depois da tempestade. É quando são mais belas, depois de terem sofrido”. Fumiko sofreu, e sabe ela – e sabemos nós – que é belíssima, também por isso. Ouvimo-la dizer que “o momento mais jubiloso da minha vida enquanto mulher, é também o mais lastimável”, e Tanaka filma-a a partir de um plano impossível, vindo de baixo do chão, para logo depois lhe dar o contracampo, como um plano “olho de deus” – repito, a violência de Para Sempre Mulher encontra-se na claridade da sua mise en scène.
Num filme onde tudo é circular, o final, no lago Tóya, recupera a sequência dos créditos de abertura – percebemo-lo apenas no fim. Cumpre-se a vontade dela (em mais uma forma de transferência necrófila do seu desejo para a relação de Kinuko e Taku, já que aquele havia sido o local onde os dois haviam passado a sua lua de mel), só que em vez de poemas lançados às águas, são flores (não serão o mesmo?). E é impossível não descobrir na forma dos montes que circundam o lago, dois enormes e magnânimos seios. Como se, por fim, Fumiko se unisse, inteira, à paisagem do seu anseio.