Voilà ce dont il s’agit: te montrer toi, vivante,
pensant à moi; et me voir en même temps,
moi, vivant, par cela même.
A relação entre os dois protagonistas de Pierrot le fou (Pedro, o Louco, 1965), de Jean-Luc Godard, é marcada, entre outras divergências importantes, pelas diferentes posições que cada um deles toma relativamente à realidade. Ferdinand (Jean-Paul Belmondo), a quem Marianne (Anna Karina) constantemente chama Pierrot, como se reconhecesse nele não um homem, mas uma personagem, vive através dos livros e das imagens. Já a rapariga, apesar de lamentar que, contrariamente às histórias que o companheiro lê, a vida não seja, “clara, lógica, organizada”, parece mais atraída por aquilo a que chama a “vida em si”, farta da obsessão dele com os livros. Se a Marianne interessa a vida activa, para Ferdinand é a existência experienciada através de outras histórias, da contemplação e da reflexão inscrita no seu diário o que mais importa, ou que pelo menos parece mais substancial: como ela lhe diz a certa altura, “tu falas comigo através de palavras e eu olho-te através de sentimentos”, num dos vários momentos em que reconhecem o desacerto entre os dois.
Ferdinand e Marianne adoptam, no fundo, e respectivamente, relações mais ou menos mediadas com a realidade. Isto parece plasmar-se, por exemplo, nas suas diferentes maneiras de estar no tempo, aspecto evidente quando discutem o quanto se amam, e se, de facto, se amam. Novamente, as diferenças são significativas. Marianne, por um lado, insiste em existir no que poderíamos descrever como o presente. Quando Ferdinand diz, a certa altura, que só daí por sessenta anos, já mortos e portanto desligados da vida, poderão saber se estiveram ou não, continuamente apaixonados um pelo outro, a rapariga responde prontamente que não, que sabe que o ama – agora (!), subentende-se. Insiste, além disso, numa cantiga, em que se deixem de lado votos e promessas e em que se aceite que o amor dos dois é um amor do agora, não do amanhã.
De onde vem a desconfiança de Marianne face ao futuro e ao que ele pode fazer e desfazer é questão que nunca se resolve: será, como canta, o ter uma tão curta linha da sorte que a deixa com medo do que está por vir? Veremos, veremos, diz ela mais do que uma vez, quase sempre com algo de simultaneamente traiçoeiro e melancólico no olhar, que dirige directamente aos espectadores, testemunhas da ambiguidade daqueles olhos, por estarem, eles sim, fora do tempo, capazes de contemplar, ao mesmo tempo, a verdade do presente e a sua negação futura. Marianne diz constantemente duvidar de que Ferdinand, de facto, a ame, como se projectasse nele a consciência da sua própria inconstância e deslealdade. Que Marianne chame a Ferdinand, Pierrot, sendo ela, por extensão, Columbina, não é apenas alusão à natureza dissidente do parceiro, mas serve também para o avisar de que o desfecho da história será por certo desfavorável para o lado dele.
Godard sugere que o assunto do filme só se torna claro quando este termina, só no fim podemos ter uma visão total, à semelhança do que Ferdinand sugere a Marianne sobre ser necessário chegar ao lado da morte para confirmar o amor.
A consciência de Marianne é variação da sua franca descrença na possibilidade de um poder conhecer o outro e, de algum modo, numa ideia de continuidade inalterada de um sujeito. Conhecendo-me, conhecendo-te, canta ela num verso. Que ambos os retratos estejam igualmente comprometidos é a nuvem que paira sobre os amantes. Diz-lhe Ferdinand que quer saber exactamente quem ela é; que, nem mesmo há cinco anos atrás, quando se cruzaram pela primeira vez, o soube. Marianne responde-lhe comparando os segundos que compõem a vida humana aos poucos segundos que passaram juntos. Perante isso, sugere, seria tolo esperar que soubessem alguma coisa relevante sobre cada um. Por debaixo de versos que parecem sugerir, “eu conheço-me, Pierrot, e conheço-te, Pierrot; conhecendo-nos, porque haveríamos de acreditar que isto vai durar?”, há um outro sentido que aflora, um sentido em que se questiona o que quer exactamente dizer conhecer.
Pierrot, le fou é também sobre isso, sobre formas possíveis de definir objectos. Nas palavras que abrem o filme, Ferdinand lê, em voz off, a partir de um livro de história da arte de Jacques Élie Faure, descrições de uma fase tardia do trabalho de Diego Velázquez, onde se destaca o facto de que, a partir dos cinquenta anos, o pintor espanhol deixou de concentrar a sua atenção em objectos específicos, para passar a ocupar-se com os clarões e o crepúsculo, e a estar interessado no espaço em redor dos objectos, o intervalo existente entre as coisas, o que as entremeia, as separa e simultaneamente as aproxima:
O espaço é senhor, é como uma onda aérea que desliza sobre as superfícies. É como um poema nascido das suas emanações visíveis, que as define e as molda, espalhando-as como a um perfume, um eco delas próprias, disperso pelos lugares em volta, como uma poeira imperceptível.
Esta ideia de que o espaço ecoa as formas, de que as faz reverberar, sugere a possibilidade de as coisas existirem para além de si, de existirem através de outros meios, e que, portanto, a melhor forma de as alcançar, de lhes tocar, não é necessariamente através de uma aproximação directa, mas de um caminho oblíquo. Um modelo parecido a esta espécie de teoria da representação é esboçado por Ferdinand quando discorre sobre a ideia para um romance: escrever não sobre a vida das pessoa, mas apenas sobre a vida, a vida em si mesma, aquilo que está entre as pessoas: o espaço, o som, a cor. O que será a vida em si mesma é pergunta à qual nem este, nem nenhum filme de Godard responde, ainda que Marianne proponha a sua própria solução: sair, ouvir música, usar um vestido novo. Aqui, como noutros filmes do realizador, aborda-se, como referi acima, a dificuldade em delimitar, definir determinado objecto ou conceito. Perante essa dificuldade, a melhor solução encontrada é dar conta de, apontar para, falar sobre aquilo que está entre um sujeito e uma sua acção, entre certo objecto e um outro que lhe está próximo, passando todas as coisas a existir em relação, e a definição de uma e de outra a construir-se no encontro, como na cena inicial do filme em que duas raparigas jogam ténis ao ar livre, a bola descrevendo um movimento pendular entre as duas, ou como num diálogo entre Marianne e Ferdinand:
M – O que é que estás a fazer?
F – A olhar para mim.
M – O que é que vês?
F – Um homem prestes a lançar-se sobre um precipício a 100km por hora.
M – Eu vejo uma mulher apaixonada pelo homem prestes a lançar-se sobre um precipício a 100km por hora.
F – Beijemo-nos, então.
Isto relaciona-se, entre outras coisas, com o uso que o filme faz de diversas imagens e textos, que contribuem muitas vezes, para caracterizar a personagem junto da qual surgem, antecipar peripécias, comentar algumas delas. Como na hipótese levantada no famoso solilóquio de café em Deux ou trois choses que je sais d’elle (Duas ou Três Coisas Sobre Ela, 1967), seriam os objectos a permitir religar sujeitos, passar de um a outro, como pontes entre pessoas e entre coisas. Penso a este propósito nos quadros, fotografias, posters, letreiros, postais, tiras de banda desenhada, capas de livro, recortes publicitários que vemos no filme, alguns integrados no cenário, como parte da diegese, outro exteriores a ela, introduzidos mais violentamente, mas nunca de modo inoportuno. Num texto de 1965 sobre Pierrot, le Fou, Louis Aragon destaca o processo de colagem como central ao cinema de Godard, sugerindo que as colagens não são ilustrações do filme, não repetem planos ou cenas, mas existem ao lado delas, são parte do próprio filme.
Numa entrevista também publicada aquando da estreia de Pierrot, o próprio Godard sugere que o assunto do filme só se torna claro quando este termina, só no fim podemos ter uma visão total, à semelhança do que Ferdinand sugere a Marianne sobre ser necessário chegar ao lado da morte para confirmar o amor, ou daquilo a que assistimos nos créditos iniciais, em que as letras do alfabeto vão surgindo agrupadas, do A ao U, até formarem uma apresentação completa do filme. De acordo com esta lógica, as coisas só fazem sentido como um todo e a leitura nunca pode ser parcial, mas tem de contemplar todas as partes: uma letra pode existir sem a outra, mas só a sua disposição conjunta permite que se iluminem mutuamente.
Referências
Aragon, Louis, “Qu’est-ce que l’art, Jean-Luc Godard?” (1965), in Les Lettres Françaises, n.°1096, 9-15 de Setembro de 1965.
Godard, Jean-Luc, “Parlons de Pierrot” (1965), in Cahiers du Cinéma, n.º 171, Outubro de 1965.
As aulas de António Reis na Escola de Cinema giravam em torno de uma lista de filmes que Reis e Margarida Cordeiro tinham como essenciais. Pierrot le fou, de Jean-Luc Godard, faz parte dessa lista.