It is my earnest hope that film-dance will be rapidly developed and that, in the interest of such a development, a new era of collaboration between dancers and film-makers will open up – one in which both would pool their creative energies and talents towards an integrated art expression.
Maya Deren, “Choreography for the Camera”, 1945.
Em 1945, a cineasta americana de origem ucraniana Maya Deren filma um dançarino negro capaz de transpor, no impulso de um salto, todos os limites espácio-temporais. Apropriadamente intitulada A Study in Choreography for Camera, esta curta-metragem de menos de três minutos lança as bases da cine-dança que se desenvolve no contexto do New American Cinema, entre os anos 40 e 60, e que Deren define como “uma dança tão intimamente ligada à câmara e à montagem que ela não poderia ser executada como tal em outro lugar senão [num] filme”. No mesmo ano, duas outras artistas abordam o imaginário e a experiência da dança através das suas experimentações cinematográficas: em Visual Variations on Noguchi, Marie Menken faz a câmara “dançar” num espaço apenas habitado por esculturas abstratas, sem que nenhum corpo humano identificável figure no ecrã; em Introspection, Sara Kathryn Arledge explora as qualidades plásticas e cinéticas dos corpos dançantes através de distorções óticas e outros efeitos especiais. Na medida em que as suas realizações propõem, cada uma à sua maneira, alternativas radicais ao “estudo coreográfico para a câmara” inaugurado por Deren, Menken e Arledge merecem também elas ser consideradas como legítimas pioneiras da cine-dança.

A Study in Choreography for Camera (1945): o ato fundador da cine-dança
Fruto da sua colaboração com o bailarino afro-americano Talley Beatty, A Study in Choreography for Camera de Maya Deren mostra um breve solo de dança moderna executado através de vários espaços: uma floresta, uma sala, as galerias de um museu. Desde o começo do filme, silencioso e a preto e branco, temos a impressão de que os gestos de Beatty não obedecem às mesmas forças que as que regem as ações humanas no quotidiano, parecendo dotado de um dom de ubiquidade e de teleportação. Por exemplo, a frase coreográfica iniciada na floresta culmina num lento développé da perna do dançarino que, por meio de um corte discreto, o transporta para a sala de um apartamento onde o seu pé se vem pousar: um simples movimento de dança basta para forjar a conexão entre dois espaços distintos, sendo que a ruptura espácio-temporal quase passa despercebida graças ao raccord que acentua a fluidez do movimento. Perto do fim, Deren simula uma pirouette virtuosa, simultaneamente mecânica e onírica, fazendo variar a velocidade de captação (de 64 a 8 i/s) de forma a desfocar a imagem; impulsionado por essa rotação sobre-humana, Talley Beatty “levanta voo” e vem aterrar, majestoso, na floresta do início. Este último grand-jété é o movimento-assinatura do filme: Deren cria um salto de dança prodigioso, que não só viola a lei da gravidade e ultrapassa o limiar do humanamente possível, mas também é capaz de suspender a passagem do tempo e conectar espaços distantes.

Deren inaugura com A Study in Choreography for Camera um trabalho de estilização e sublimação do movimento através de técnicas e de processos criativos específicos da linguagem cinematográfica, colocando a ênfase não na sua finalidade ou significado, mas na própria essência do movimento, enquanto experiência sensível, simultaneamente visual e temporal. Todas as suas realizações fazem um “uso criativo da realidade” e exibem uma sensibilidade singular em relação aos movimentos dos corpos diante da câmara, patente na forma como explora a dimensão ritualística e poética dos gestos quotidianos e das interações sociais, conferindo-lhes um caráter coreográfico através de manipulações fílmicas impossíveis de executar em palco.
Muitas das estratégias de filmagem e de montagem inventadas ou exploradas por Deren (mobilidade da câmara, filmagem in situ, raccord de teleportação) serão aprofundadas pelos artistas que lhe sucedem: os cineastas experimentais Shirley Clarke, Ed Emshwiller, Norman McLaren e Hilary Harris, bem como os coreógrafos pós-modernos Yvonne Rainer e Merce Cunningham, fazem parte da primeira geração de autores de cine-danças que emerge entre 1950 e 1970. Mas, antes destes, duas outras artistas aventuram-se nesta prática interdisciplinar, realizando duas curtas-metragens que provam que a via aberta por Deren não é única; mais do que um modelo ou uma fórmula a ser retomada por outros, A Study in Choreography for Camera marca o nascimento de uma prática artística que rapidamente se revelará frutífera e proteiforme.
Introspection (1941-1946): uma cine-dança embrionária
No início dos anos 40, Sara Kathryn Arledge, artista americana da Costa Oeste fortemente influenciada pelo surrealismo, descobre no cinema uma ferramenta poderosa para desnaturalizar os corpos humanos através da manipulação do tempo e da estilização do movimento, ideia que a conduz à realização de um primeiro filme de dança abstrato, assente em efeitos visuais inovadores, obtidos com equipamentos e técnicas rudimentares. O caráter experimental de Introspection, bem como a sua ligação à arte coreográfica, são anunciadas nos créditos iniciais que especificam que se trata de uma “série de experiências” ou de “fragmentos do imaginário da dança”. Esta forma de se referir ao filme corrobora a ideia de que Introspection é uma cine-dança em estado embrionário, que contém em si as sementes de questões estéticas e técnicas que serão exploradas por futuros cineastas.
A rodagem de Introspection começa em 1941 (portanto, antes mesmo de Deren realizar A Study in Choreography for Camera) mas é concluída apenas em 1946, após o fim da Segunda Guerra Mundial, que terá obrigado a equipa de dançarinos, operadores de câmara e técnicos de luzes (todos homens) a interromper as filmagens. Sem quaisquer meios financeiros, a realizadora e os seus colaboradores têm que improvisar com os materiais ao seu dispor : assim, para criar a atmosfera fantasmagórica pretendida, jogam com a dupla exposição da película, aplicam filtros de gelatina nos projetores e nas lentes da câmara de modo a enfatizar a fluorescência das cores do guarda-roupa dos dançarinos, e utilizam até um tampão de roda como superfície reflexiva capaz de distorcer as imagens; sem esquecer os tecidos ocultantes que, cobrindo apenas certas zonas dos corpos, permitem modular as suas aparições e compor uma constelação de formas orgânicas que se contorcem e se entrelaçam no ecrã.
É certo que Arledge colabora com dançarinos profissionais que começa por filmar em poses que identificamos como coreográficas, mas as dimensões temporais e rítmicas da dança parecem pouco determinantes no seu trabalho (tanto que o acompanhamento musical, uma passagem de La jeune fille et la mort de Franz Schubert, só terá sido adicionado posteriormente), concentrando-se exclusivamente no trabalho escultural das silhuetas humanas. Por um lado, a cineasta não hesita em atacar a estrutura anatómica das figuras para acentuar o seu caráter embrionário e andrógino; por outro lado, as deformações por que passam os corpos dos bailarinos sublinham a materialidade das imagens cinematográficas, através de efeitos de ilusão ótica e de jogos de transparência-opacidade que nos lembram que a película e o ecrã são suportes materiais que podem captar movimentos evanescentes e engendrar corporeidades virtuais. Noutras palavras, em Introspection, o imaginário da dança, operando como uma força plástica (ou figural), é em última instância apenas uma etapa pela qual os corpos dos bailarinos passam no seu devir abstrato, ao ponto de se tornarem irreconhecíveis, quase transcendentes.

Mas será que o cinema precisa de filmar corpos humanos em movimento para oferecer aos espectadores uma experiência próxima da dança? As primeiras realizações de Marie Menken oferecem uma resposta singular a esta questão, trocando o paradigma do “uso criativo da realidade” por uma outra “lógica das sensações”.
Visual Variations on Noguchi (1945): um filme de dança sem dançarinos
Filmado em 1945, no atelier do escultor americano-japonês Isamu Noguchi, no meio das esculturas criadas para o ballet The Seasons de Merce Cunningham e John Cage, Visual Variations on Noguchi de Marie Menken, artista americana de origem lituana, é fortemente influenciado pela estética abstrata de Noguchi, assim como pela abertura ao acaso que já então caracteriza as criações da dupla Cunningham/Cage. Concebido como uma série de variações em torno de um tema, esta primeira realização de Menken assume os contornos de uma peça coreográfica, mais precisamente um solo dançado pela própria cineasta enquanto filma.
Desde o início de Visual Variations, impõe-se uma atmosfera sonora cacofónica, misturando vozes sussurradas que recitam excertos de poemas de James Joyce, sons metálicos distorcidos que parecem testemunhar de uma “vida secreta dos objetos”, e ruídos indistintos que evocam o trabalho numa fábrica ou o burburinho nos bastidores antes de um espetáculo. O ambiente ensurdecedor manter-se-á ao longo do filme, reforçado pela proximidade da câmara às esculturas, que impede o/a espectador/a de ter uma visão global do espaço envolvente. Na verdade, Menken aproveita a obstrução da visão para abrir brechas a outros níveis de perceção: embora ela nunca mostre as estátuas inteiras, os movimentos de câmara que improvisa criam as condições para uma sensibilidade mais acentuada na sua relação com os objetos. Assim, a sua maneira de filmar as esculturas de perto, à flor da pele, como se fossem corpos – prolongando-se nas linhas retas que evocam troncos, braços ou pernas, ou sublinhando os ângulos arredondados que fazem pensar em cotovelos ou em joelho – faz lembrar a sua primeira experiência enquanto operadora de câmara, na curta-metragem Geography of the Body (1943), realizada pelo seu marido, o poeta Willard Maas.
Face à imobilidade das esculturas, a principal fonte de sensações do movimento decorre dos gestos que Menken realiza, de câmara na mão, como certas panorâmicas ou zooms que se precipitam seguindo o ritmo e a trajetória sugeridos pelas formas abstratas. Segundo o grande especialista do cinema experimental americano P. Adams Sitney, Visual Variations on Noguchi marca o ato fundador da “câmara somática”, que pressupõe a identificação do enquadramento móvel das imagens com os movimentos realizados pela cineasta enquanto filma, sugerindo um pas de deux entre câmara e corpo do agente filmante. Ora, se Menken dança enquanto filma, ela não se limita a executar uma coreografia previamente estabelecida; pelo contrário, ela encontra-se numa dinâmica constante de contacto-improvisação, próxima da técnica praticada pelos dançarinos contemporâneos, reagindo aos estímulos do meio e provocando o contato físico, sem tentar disfarçar as marcas das suas hesitações e tropeços enquanto manipula a câmara. Deste modo, o filme oferece ao/à espectador/a uma relação inédita com as imagens em movimento, dando-lhe a impressão de assistir a uma espécie de dança tangível através da mobilidade dos planos, apesar de (ou graças à) ausência da figura humana no ecrã. O seu olhar, porém, não corresponde ao de um indivíduo sentado, imóvel e passivo, perante uma performance, mas sim à percepção dinâmica de um corpo que dança, ávido de sensações e livre de constrangimentos.

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Os primeiros passos de Deren, Arledge e Menken na prática da cine-dança foram, no fundo, uma maneira para as cineastas de inscrever num suporte material durável as suas visões singulares do movimento inspirado pela dança, arte por definição efémera. O facto de se tratarem de três mulheres não é irrelevante, tendo em conta que os panoramas coreográfico e sobretudo cinematográfico da época são ainda dominados por figuras masculinas. Aliás, não é impossível que o relativo desconhecimento e invisibilidade de que sofreram ao longo de décadas as obras de Menken e de Arledge seja um sintoma da falta de consideração generalizada pelas mulheres cineastas e teóricas do cinema. Como se na história da Sétima Arte só houvesse lugar para uma mulher de cada vez; e sabemos que, se na década de 1920 Germaine Dulac foi a principal porta-voz de um discurso que colocava o movimento no centro do pensamento sobre o cinema de vanguarda, entre as décadas de 1940 e 1960, esse lugar foi sempre reservado a Deren, figura maternal e matricial do cinema experimental americano na sua dimensão poética.
Ora, as primeiras obras de Menken e Arledge não constituem apenas uma alternativa à cine-dança tal como esta foi teorizada e explorada por Maya Deren desde 1945. Os seus modos de fazer cinema podem ser considerados como abordagens complementares da cine-dança: Deren opera manipulações espácio-temporais para criar coreografias impossíveis de realizar sem recorrer às técnicas do cinema; Arledge realça as qualidades plásticas dos corpos projetados num ecrã, ao ponto de os tornar entidades abstratas; Menken explora a materialidade dos objetos e a mobilidade do seu próprio olhar-corpo-câmara, fazendo das imagens em movimento uma forma de dança da visão. Explorando a tensão entre, por um lado, a representação da dança através de corpos humanos e de figuras coreográficas convencionais e, por outro, a experiência sensorial dos movimentos das imagens engendrados por meios exclusivamente fílmicos, estas cine-danças permitem-nos refletir sobre o grau de resistência dos corpos às manipulações espaço-temporais e plásticas específicas ao cinema, e encorajam-nos a considerar a experiência da dança sob a ótica de quem a executa, ao invés de quem simplesmente observa. Afinal, graças a Deren, Menken e Arledge, não foi apenas o cinema que se tornou mais “dançante”, mas também o próprio olhar do/a espectador/a perante as imagens em movimento.