O ano passado, a propósito da retrospetiva que o Curtas Vila do Conde e a Casa do Cinema Manoel de Oliveira dedicaram a François Reichenbach, fui parar a um número especial da revista O Tempo e o Modo, com um completíssimo dossiê publicado aquando da estreia de Belarmino (1964). Este ano o filme de estreia de Fernando Lopes é exibido no festival galego Play-Doc, que se realiza em Tuí (vila do outro lado do rio Minho, junto a Valença) de 26 de abril a 1 de maio, numa nova e belíssima cópia digital produzida pela Cinemateca Portuguesa, a propósito da integração deste título no Plano Nacional de Cinema – acompanhado por Máscaras (1976), de Noémia Delgado, igualmente apresentado numa nova cópia produzida em igual âmbito. Recupero agora uma breve passagem desse dossiê para propor uma reavaliação do filme à luz de um dos primeiro filmes de Reichenbach, Un cœur gros comme ça (1961).
No texto de abertura do referido dossiê, da autoria de António-Pedro Vasconcelos, pode ler-se: “Pela primeira vez na nossa terra, um filme ousa ser feito pelo simples prazer de ver um homem andar e falar durante uma hora e tal, mais concretamente Belarmino Fragoso.” Além do referido crítico (e futuro realizador), o dossiê contava com contributos de Gérard Castello Lopes, João Bénard da Costa, José Domingos Morais, Alberto Seixas Santos, Paulo Rocha, Carlos Villardebó e Nuno Bragança. É no artigo deste último que é possível encontrar uma brevíssima referência a Un cœur gros comme ça, a segunda longa metragem de Reichenbach (e o motivo que me levou a cruzar-me com esta publicação). Na verdade, a referência é apenas uma minúscula nota de rodapé, onde o filme de Reichenbach é dado como um exemplo de “obras estrangeiras da zona da vanguarda em que [Belarmino] se integra” e às quais o filme de Lopes é “superior”. Parece-me que esta “entrada lateral” na longa metragem de estreia de Fernando Lopes – através de uma cruzamento cinéfilo que resulta, acima de tudo, do acaso – pode ajudar a esclarecer alguns aspetos sobre o filme português.
Começando pela última parte, a questão da superioridade. A inferiorização de Un cœur gros comme ça no contexto da crítica portuguesa parece ser um eco dos próprios Cahiers du Cinéma (farol de todos aqueles que escreviam sobre cinema em Portugal nesses anos 1960), que desprezaram o filme de Reichenbach à data da sua estreia comercial – num momento em que essa revista era tomada pelo arrivismo do grupo Mac Mahon. Num número particularmente célebre (o 139, de janeiro de 1963), quase integralmente dedicado à obra de Howard Hawks, encontra-se uma pequeníssima nota não assinada onde se reduz o filme de Reichenbach à total nulidade em apenas três frases: “sem dúvida, o cinema-vérité havia de ser explorado, mais cedo ou mais tarde, por uma criança esperta em busca de algo bom. Pelo menos podíamos esperar que, dentro de tal empreendimento, a câmara nos entregasse algumas belezas involuntárias. Procuramos em vão, na produção de Reichenbach, algo que pudesse de alguma forma redimir a infantilidade das intenções e a feiura do resultado.” Já na tabela de estrelas, Jacques Rivette e André S. Labarthe dão ao filme bola preta (“inutile de se déranger”).
Regressando ao caso português, esse brevíssimo apontamento de Nuno Bragança denota algo que importa esclarecer: embora Un cœur não tivesse nunca chegado a estrear comercialmente em Portugal, certo é que a turma do Novo Cinema (em particular aquela que se reunia em torno da redação da revista O Tempo e o Modo) conhecia o filme e alguns – nomeadamente o referido escritor – tinham-no visto. A juntar a isso, há, da parte de Bragança – e certamente dos demais – a consciência de que Belarmino é produto de um movimento estético que atravessa o cinema europeu e norte-americano (no EUA, mas especialmente no Canadá) a partir do final dos anos 1950, com diferentes expressões em cada país e diferentes declinações formais e metodológicas: o cinema direto, o cinema-verdade e o free cinema. Aqui já estamos na segunda parte da afirmação de Bragança, onde se fala do cinema das “zonas de vanguarda”.
A este respeito, das diferenças entre estas várias modulações documentais, importa recuperar a destrinça que José Manuel Costa propõe, numa folha de sala que escreveu sobre o filme de Lopes: “a marca do que se veio a tornar como um certo realismo nascia [free cinema], em Londres, (como em Portugal, na televisão) no cruzamento de uma tradição jornalística com uma vontade de intervenção ficcional, nomeadamente por via da montagem e do texto, que não era a mesma coisa que, em França ou nos EUA, estava a a ser feito, ou começava a ser feito, por homens como Rouch, Leacock, Drew, Pennebaker e os irmãos Maysles: o dito cinema vérité ou, do outro lado do Atlântico, o direct cinema, baseado nos segundos, [onde] se privilegiava em absoluto o momento de captação (seguir personagens reais no seu quotidiano) face à posterior manipulação”. O jovem realizador português (então com apenas 28 anos) sempre preferiu a designação de free cinema, por ter sido no contato com essa movida, em Inglaterra, aquando da sua bolsa de estudos, que começou a despontar a vontade de fazer um filme como Belarmino. Mas, como denota José Manuel Costa, o filme de Lopes descobre-se – ou revela-se – no exercícios de significações e resignificações da montagem (em particular no jogo com o som, muitas vezes em off).
Mas as coincidências entre o filme de Fernando Lopes e o filme de Reichenbach vão bem além da mera contemporaneidade e consanguinidade estética – e de uma obscura referência numa revista antiga e amarelecida. Independentemente da total consciência do realizador português (que até pode nem nunca ter visto o filme de Reichenbach), Un cœur serviu de modelo (pelo menos a título conceptual) à atitude de Lopes: fazer um filme “pelo simples prazer de ver um homem a andar e a falar”, com a particularidade de que estes dois filmes versam sobre o mundo do boxe, escolhendo como protagonistas figuras secundárias, ingénuas e nada afoitas ao sucesso: de um lado o protagonista homónimo, Belarmino Fragoso, do outro, Abdoulaye Faye, o pugilista senegalês que protagoniza o filme do realizador franco-suíço.
Aliás, uma double bill com os dois filmes permitiria perceber até que ponto os filmes se aproximam e se afastam. Além da pobreza que os carateriza, do boxe que os ocupa e da relação que com a cidade, através da qual se destacam, Belarmino está em fim de carreira, ao passo que Abdoulaye está ainda a começar e onde o primeiro é um macho luso sempre a piscar o olhar às mulheres que por ele passam na rua, o segundo vive obcecado com a sua inaptidão para o engate – ainda que a relação de ambos com a fotografia seja matricial nos dois filmes (Belarmino é colorista de fotografias e todos os créditos de abertura – e várias outras cenas, nomeadamente a do combate final – se fazem a partir de freeze frames/fotografias, enquanto que o quarto de Abdoulaye está pejado de fotografias, ora do Senegal, ora de belas atrizes do cinema – o que aproxima os dois filmes da curta metragem de estreia de Stanley Kubrick, Day of the Fight, de 1951, numa improvável triple bill foto-boxeur). Mas talvez o vínculo mais profundo entre os dois filmes se encontre na ambiguidade com que ambos retratam “o real”, a partir do exercício da ficção.
Este preâmbulo serve para dar o ar dos tempos e para se compreender uma cisão interior ao movimentos dos ditos novos cinemas nesse início dos sessenta: o da política dos autores (pelo classicismo da narrativa aliado à libertação das formas e dos modos de produção) e do cinema direto (libertado das formas, dos modos de produção, mas também das estruturas narrativas – feito de encontros súbitos com o mundo). Em Portugal, o confronto entre essas duas fações nunca teve grande expressão, dada a reduzida produção e, em especial, dados os efeitos da Revolução de Abril na produção documental dos anos 1970 – ainda que ela seja visível dentro da própria obra de alguns realizadores, nomeadamente na de Fernando Lopes, quando se procura estabelecer linhas de continuidade e descontinuidade entre filmes contíguos, em particular entre Belarmino e a longa seguinte, Uma Abelha na Chuva (1971). Já Reichenbach nunca tomou partido nestes debates, tendo realizado ao sabor da sua vontade e dos seus interesses, aproveitando aquilo que lhe ia aparecendo. Ainda assim, Un cœur gros comme ça apresenta-se (mais do que é, de facto) como um distinto exemplar do cinema-verdade, ao abrir com um cartão onde se pode ler, “Rodámos este filme com uma câmara clandestina e com microfones escondidos. Os intérpretes cúmplices desta empresa não sabiam quando ou como estavam a ser filmados” – o que é uma forma de publicidade, mais do que uma real descrição do filme.
Também Belarmino foi recebido (e apresentou-se) a partir de uma grelha de interpretação que o reduziu às possibilidades do documentário e às preocupações do realismo – do cinema-verdade ou direto, o “simples prazer de ver um homem andar e falar durante uma hora e tal”. No entanto, visto à luz do século XXI, o filme de Lopes compõe-se através de cambiantes, matizes e zonas de incerteza, onde se cruzam ficção, documentário, reportagem, encenação, mentira e mito. Essa ambivalência das suas formas de abordagem do real é o que, aos dias de hoje, é mais capaz de assombrar. Uma delas é, como já se deu a entender, o olhar fotográfico, que consistentemente imobiliza o movimento – o que o aproxima de cineastas da Nouvelle Vague como Varda ou Marker –; outra é a a abordagem “televisiva” da entrevista (Lopes era, à época, realizador de televisão na RTP), pervertida a partir de soluções de montagem que inventam contracampos naquilo que são os convencionalismos talking heads (recorde-se a “discussão”, inventada na moviola, entre Belarmino e o seu manager, Albano Martins); outra, ainda, descobre-se nas sequências exteriores, claramente encenadas para a câmara, que se denunciam com os constantes olhares para a objetiva de Belarmino e de alguns transeuntes. Há, também, a violência do questionário de Baptista Bastos – “És um humano ou um animal? És um homem bom ou mau? A tua mulher gosta de ti? És indisciplinado?” – cuja voz inquisitiva chama a atenção para o fora de campo, isto é, para a equipa de cinema e para a presença da câmara, sublinhada depois por um plano – muito rápido, mas pregnante – em que se dá a ver toda a estrutura de produção (o backstage desta desolada mitografia de Belarmino).
De volta ao filme de Reichenbach, talvez nenhuma outra cena seja tão disruptiva dessa pretensão de verdade do que a visita de Abdoulaye ao museu de história natural. Trata-se de um espaço dedicado à observação e à representação da vida (qual a diferença entre uma vitrine e uma janela?), onde esse desejo de mimetismo apenas reforça a presença da morte (dos animais empalhados, ou das ossadas reagrupadas). Só que, para o espectador cinéfilo, essa cena não poderá deixar de recordar La Jetée (O Pontão, 1962), e a cena que é “fotografada” exatamente nesse mesmo décor (e, por vezes, através dos mesmos enquadramentos). Sabendo da proximidade e colaboração entre Reichenbach e Chris Marker – corealizariam La Sixième face du pentagone (1968), L’Amérique insolite (1960) adapta um texto de Marker e La Douceur du village (1964) foi montado por Marker; a que se junta a conhecida propensão de Marker para a rapinagem – há tentação de especular sobre a influência de Un cœur sobre La Jetée. E dada a proximidade nas datas de estreia dos dois filmes (21 de novembro de 1961 e 16 de fevereiro de 1962, para um e outro), não custa imaginar Marker na rodagem de Un cœur, apropriando-se – como lhe era costume – das imagens e das situações do filme de Reichenbach.
No caso de Belarmino é possível igualmente apontar uma cena que funciona como uma piscadela de olho cinéfila dupla: a passagem do pugilista pelo átrio do Cinema Éden, onde observa com particular atenção o cartaz de La Mort en ce jardin (Labirinto Infernal, 1959), de Luis Buñuel. A primeira piscadela é feita ao famoso momento de À bout de souffle (O Acossado, 1961), de Jean-Luc Godard, em que Belmondo se passeia por um cartaz onde se lê Plus dure será la chute – título francês de The Harder They Fall (A Queda de um Corpo, 1956), de Mark Robson, o último filme de Humphrey Bogart, que morreria em 1957 – para logo imitar (para a câmara) a pose de Humphrey Bogart no referido cartaz. Há, da parte de Fernando Lopes, uma óbvia consciência da dimensão cinéfila e autorreferencial do cinema da Nouvelle Vague e da importância do cinema de género na formulação de situações tipo que são reinterpretadas à luz de uma vivência urbana e quotidiana – e do modo como o cinema era, então (e ainda hoje), capaz de moldar estilos e modos de apresentação, em particular a partir da dimensão mediática da star.
Até certo ponto é possível descobrir em Belarmino algo de um Bogart decadente e fora do seu tempo – Belarmino podia ter sido muitas coisas (especialmente campeão de boxe), mas acabou por não ser nenhuma, nem sequer um Bogart de fancaria. A juntar a isso (a segunda piscadela), talvez por coincidência (talvez não!), o cartaz do filme que está em exibição no Éden é um muito particular título de Buñuel, um dos seus filmes de transição México-França. Nesse filme conta-se a história de um país nunca nomeado na América Latina governado por um líder autocrático onde há uma revolta dos mineiros que resulta numa repressão militar que conduz uma série de marginais à selva, onde tratarão de se destruir na volúpia do desejo e da ganância – salvando-se apenas um aventureiro oportunista e uma jovem rapariga muda. É impossível não descobrir nisto uma metáfora sobre Portugal de 1964, e de encontrar paralelos entre a personagem de Belarmino Fragoso e a de Michel Piccoli – naquela que seria a primeira de muitas colaborações do ator com Buñuel (último filme de Bogart, primeiro de Piccoli com Buñuel…) –, o tal aventureiro oportunista. Como quem diz, neste país só se safam os que ficam mudos e calados ou os chico-espertos (no referido filme de Noémia Delgado, Máscaras, numa das loas, filmada no inverno de 1974, fala-se um regedor local que é um “vira-casacas” e que depois da revolução logo se fez passar por fervoroso socialista).
Daí que seja tão significativo que o primeiro (depois dos créditos, no ginásio) e último planos de Belarmino se façam através de grades. Bénard da Costa escreveu que os filmes do Novo Cinema português davam a ver uma “Lisboa claustrofóbica” e o walshiano Luís Mendonça, no dossiê pedagógico do Plano Nacional de Cinema concretiza-o no plano final, afirmando que a “liberdade cercada pela opressão fascista, que cerceava pela calada, é ilustrada no derradeiro fotograma de Belarmino (…). A câmara de Lopes permite-nos ver essas grades, cuja aparição no filme desenha – nova forma de clausura – um círculo perfeito [com a imagens da abertura]”. À luz de Reichenbach é possível quebrar essa ciclo repressivo através de uma forma de cinefilia associativa e lúdica, sempre disposta a traçar linhas invisíveis no ar que entremeia os filmes. Essa é a beleza de um bom festival de cinema – sendo o Play-Doc um deles –, propor, subrepticiamente, conexões improváveis pelo imaginário de um espectador curioso.