A imagem das coisas externas acarreta uma ambiguidade segundo a qual tudo na natureza pode parecer unido, mas também separado. […]
Somente o ser humano diante da natureza possui a capacidade de unir e dividir, graças a esse modo de proceder segundo o qual cada coisa implica sempre uma outra.
Georg Simmel, em Ponte e Porta
Apreciado como um dos últimos e mais perseverantes artistas da tradição fotoquímica que filmava habitualmente em 16 mm p/b, Robert Fenz foi um dos cineastas mais singulares e comprometidos na experimentação cinematográfica de vanguarda, ancorado numa convicção segundo a qual «precisava de viajar pelo mundo com uma ideia ― fazer uma pesquisa sobre um assunto e chegar a um lugar em que estaria preparado para adaptar e mudar o filme completamente, na hora», fiel à lição aprendida na improvisação jazzística e, particularmente, a partir do trabalho do trompetista Wadada Leo Smith. O resultado mais conhecido dessa abordagem é Meditations on Revolution, uma série de cinco filmes realizados ao longo de sete anos (1997-2003), explorando o tema básico da revolução nas suas qualidades mais elementares: a revolução inscrita em espaços rurais e urbanos, fundeada em lugares vazios e rostos sorridentes, balanceada em ritmos de um mundo em constante mutação, dada em retratos poéticos filmados durante as suas múltiplas viagens por países como Cuba, México, Brasil e Índia.

Robert Fenz nasceu em 1969 em Ann Arbor, Michigan, e cresceu em San Francisco. Tendo-se tornado projeccionista profissional, foi para Nova Iorque, onde começou por trabalhar no Anthology Film Archives, um centro internacional de preservação, estudo e exibição de filmes e vídeos, conhecido pela sua vasta coleção de filmes experimentais e vanguardistas. O centro-museu que iniciara a sua actividade em 1970, constituindo a concretização do sonho de Jonas Mekas de, numa sala permanente e com periodicidade regular, poder exibir filmes independentes e de vanguarda, um objectivo partilhado por Stan Brakhage, Jerome Hill e Peter Kubelka, proporcionou a Robert Fenz um profícuo contacto com a cultura experimental.
Entre os finais do anos 80 e o início dos anos 90, Robert Fenz frequentou o Bard College onde teve como professor de realização cinematográfica Peter Hutton, um cineasta-marinheiro, amante da mudez fotográfica, que toda a vida porfiara na redução ao mínimo de traços do “retrato” de paisagem, que aprendera no mar «a ser e a esperar: a paciência de ver»[i]. Não terá escapado a Robert Fenz que, depois, foi seu assistente de câmara, a origem dessa «paciência de ver», ao observá-lo, como tantas vezes terá acontecido, vendo «com os seus próprios olhos ― através da câmara, a sua Bolex». Peter Hutton, no entanto, numa entrevista, não deixara de evocar as paisagens do álbum fotográfico do seu pai como o tipo perfeito de analogia para aquilo que fazia: «Eu gostava de me sentar e olhar para esse álbum durante horas e mais horas; viajar para a Índia, para a China e todos esses lugares exóticos. Era uma aventura deveras interessante e depois quando comecei a fazer filmes apercebi-me de que, de certa maneira, o que estava a recriar era esse álbum de fotos»[ii].
Haveria, além dessa, uma outra lição a reter. Peter Hutton, também ele, «no final dos anos 60, [fora] projeccionista no Canyon Cinema, pelo que estava completamente imerso na cultura do cinema experimental», mas relativamente à sua experiência passada preferia, munido de indisfarçável ironia, afirmar que se situava «na “recta-guarda”, no [s]eu desejo de fazer regressar o cinema à paisagem pré-narrativa, em que o fenómeno da imagem em movimento está sob foco», para fundamentar a razão do seu método, nos seguintes termos: «Porque vim do background das artes de estúdio, quis fazer filmes numa base diária, como quem vai ao estúdio todos os dias ou, no meu caso, para a rua. Apercebi-me de quão custoso era o processo, por isso fui imperativo comigo mesmo em tornar tudo simples»[iii].
No final dos anos 90, altura em que estudou no California Institute of the Arts, Robert Fenz encontrou em Cambridge (Massachusetts) Robert Gardner, fundador do Film Study Center da Universidade de Harvard, centro de que foi director entre 1957 e 1997, e onde foram produzidos e realizados por si uma série de documentários de carácter etnográfico e antropológico que se tornaram clássicos da antropologia visual, tais como, Dead Birds (1963), Rivers of Sand (1974) e Forest de Bliss (1986). Contratado para o centro, em 2003, Robert Fenz toma a seu cargo a tarefa de restaurar e transferir para 35 mm esses três filmes de Gardner rodados originalmente em 16 mm.
Do seu longo convívio com esses filmes, bem como com os materiais visuais e sonoros originais que não tinham sido usados na montagem, surge o projecto de, retomando de perto os passos pioneiros de Robert Gardner, voltar aos distantes locais da Etiópia, Nova Guiné e Índia, em que a clássica trilogia etnográfica tinha sido rodada, sem deixar de marcar a passagem do tempo e estabelecer uma distância crítica perante o classicismo documental, como o próprio Robert Fenz assinalou: «Correspondence (2011) não é um comentário direto sobre as obras de Gardner, é uma elegia a uma forma de criar imagens que está prestes a desaparecer»[iv].






Também relativamente a Robert Gardner, com quem começara por manter uma troca de correspondência escrita, Robert Fenz compreendera que o que tinha sido determinante na vontade daqueles que, através da realização de filmes etnográficos sentiram «a profunda afinidade que existe entre o meio cinematográfico e o desejo de compreender as pessoas» tinha em Robert Gardner uma motivação bem precisa: «A certa altura, tive um “choque de reconhecimento”, percebendo que podia ver com meus próprios olhos a mesma coisa que aqueles viajantes talentosos [Doughty entre os árabes, Melville entre os melanésios e Lévi-Strauss entre os bororos], e não somente através dos meus olhos, mas através da câmara»[v]. Não deixa de ser curioso encontrar como parte de uma configuração tripla da visão, replicando a “função” que Peter Hutton atribuiu ao álbum fotográfico do pai, os escritos dos viajantes excepcionalmente perspicazes que tanto fascinaram Robert Gardner, sendo que no patamar seguinte surgem os próprios olhos e, em posição de declarado destaque, a câmara.
Em Correspondence, em resposta às cores exóticas e à narração enfática de Gardner, Robert Fenz, ao voltar à Etiópia, à Nova Guiné e à Índia, recorre ao seu habitual 16 mm p/b, sem som, para uma meditação subtilmente poética e amavelmente distanciada, despida das ambições do projecto etnográfico clássico, realizando, como em outros filmes seus, um retrato pessoal e poético de lugares e pessoas encontradas nessas paragens. Apesar de poderem ser vistos como obras de não ficção, o que é pretendido não é a objetividade. As imagens, e não as palavras, estão no centro e são o principal meio através do qual as suas ideias se articulam. Acresce que o significado é determinado por três factores, «intenção, circunstância e acaso», ingredientes que o cineasta Robert Gardner, num livro de título análogo, publicado em 2011, descreve como centrais para a realização de um filme de não-ficção.
Dir-se-ia, no entanto, que ao propor-se refazer o percurso de Gardner, para Robert Fenz, as exigências de usar os materiais de maneira redutiva como Hutton preconizava acabaram por se impor, e o seu trabalho, dando visibilidade às «formas que as interações assumem dentro de constelações históricas e culturais específicas», por fazer jus ao aforisma de Robert Musil ― «interessa-me o que é espiritualmente típico, quer dizer, nem mais nem menos, que o aspecto espectral do acontecer»[vi]. Num comentário, Paolo Jedowski, para caracterizar o aspecto fundamental do pensamento de Georg Simmel no seu ensaio sobre as Metrópoles[vii], sublinha «o reconhecimento do facto de a vida ser quer um fluir incessante quer uma produção de formas em que o fluir se fixa». Ora se o «aspecto espectral» é o que se repete não obstante a variabilidade e a multiplicidade dos eventos concretos, a estrutura latente não é uma forma universal, mas antes o que há de «espiritualmente típico» no interior de uma dada constelação de elementos materiais e culturais.






Como no início se disse, Meditations on Revolution é uma série de cinco curtas-metragens, com durações diferentes, realizadas por Robert Fenz entre 1997 e 2003. Part I: Lonely Planet (1997, 13min), sobre a vida em Cuba; Part II: The Space in Between (1999, 8 min), visão de uma favela no Brasil; Part III: Soledad (2001, 14 min), entrelaçamento de fragmentos de tradição do México com quotidiano actual; Part IV: Greenville, MS (2001, 29 min), estudo do ritual de treino de um boxeur. Deter-no-emos sobre o último filme da série Meditations on Revolution, Part V: Foreign City (2003, 32 min), começando pela observação de Nicole Brenez, investigadora e crítica particularmente focada no cinema experimental e de vanguarda, segundo a qual sendo como «cineasta e cinéfilo, muito consciente da sua herança figurativa e, em particular, grande admirador de Jean Vigo e Johan Van der Keuken, Robert Fenz trabalha para descamar a descrição, de cada vez que retoma o frente a frente com o mundo. Para ele, isso implica meditar sobre sua posição histórica e psicológica no momento de criar uma imagem»[viii]. Assim, neste filme, Nova Iorque filmada ao entardecer e à noite, apresenta-se como uma «descrição descamada» de uma metrópole em imagens abstratas a preto e branco e sons reais, ou, mais precisamente, uma cidade estrangeira.
Num texto, publicado em 1908, com o título “O estrangeiro”, Georg Simmel, ao caracterizar a «forma sociológica do “estrangeiro”», identifica alguns traços surpreendentes ― afastando-se de outras abordagens em que «o estrangeiro não tem qualquer sentido positivo, e a relação com ele é uma não-relação». Entre esses traços está a mobilidade própria que «personifica aquela síntese de proximidade e distância, que constitui a posição formal do estrangeiro, pois a pessoa fundamentalmente móvel entra ocasionalmente em contacto com todos os elementos do grupo, mas não está organicamente ligada a qualquer deles por laços estabelecidos de parentesco, localidade, ocupação». Essa posição que lhe concede um assinalável grau de liberdade e uma capacidade de objectividade singular, habilita-o ainda a ocupar uma função paradoxal, pois estando de passagem poder «receber confidências que têm às vezes o carácter de confissão e que deveriam ser cuidadosamente guardadas de uma pessoa muito chegada»[ix].
A uma tal posição corresponderá o olhar de alguém que vivendo no mundo tem a capacidade de não lhe pertencer inteiramente e de olhar sempre como se fosse pela primeira vez ― um estrangeiro perpétuo, capaz de descobrir, entre imagens assombradas numa paisagem esvaziada, o velho artista e músico de jazz Marion Brown que, entrevistado a meio do filme, declara, num monólogo orgulhoso e cansado: «descobri há algum tempo que se pudermos ouvir, podemos ver. As coisas a que sou mais sensível são ouvir, ver e saborear. Encaro a cozinha da mesma maneira que a música. Emprego a tradição e a improvisação e posso fazer o que quer que seja». Mas esse olhar, momentaneamente, desviado do ponto de vista transversal que os transportes sobre carris impuseram na cidade, tornada local de imigração, deslocamento e mudanças, pode igualmente eleger uma árvore de brancas flores para nela se fixar.






Em Abril de 1978, num texto publicado com o título «De como o poeta acha não se haver desencontrado com a publicação deste livro»[x], Ruy Belo comenta o seu poema «Lugar onde» para, por um lado, declarar crer que «é um poema de intervenção e o continua a ser agora quando Abril passou e, no entanto, não sabemos ao certo em que mês estamos» e, por outro lado, evocando um reparo que lhe tinha sido feito por, diz ele, «eu me ter referido aos “dorsos alvos” dos comboios, mas isso vem da minha experiência suburbana de Sintra», recomendar uma referência por ele muito apreciada, mas de que muitos andariam desencontrados. Tratava-se do conto “O comboio, Maomé e eu”, incluído no livro Funeral sem banzé, da autoria de Rui Cacho, que tinha sido publicado em 1967, sem que a crítica se tivesse apercebido do «talento, muito talento» do seu autor. Que explicação poderiam as quatro páginas do conto encerrar acerca do motivo que levou o protagonista a agir «pela primeira vez assisadamente», fazendo do «dia em que perd[eu] aquele comboio» uma data muito importante e em que «a vida passou a oferecer outro encanto» que não fosse, concluo eu, a de uma revolução?
[i] Toni D’Angela, «Peter Hutton: música silenciosa, diários de bordo, ecos do mundo. Uma conversa», À Pala de Walsh, 1 de agosto de 2016, https://apaladewalsh.com/2016/08/peter-hutton-musica-silenciosa-diarios-de-bordo-ecos-do-mundo-uma-conversa/
[ii] Luís Mendonça, «Peter Hutton (1944-2016): queríamos ainda mais», À Pala de Walsh, 28 de junho de 2016, https://apaladewalsh.com/2016/06/peter-hutton-1944-2016-queriamos-ainda-mais/
[iii] D’Angela, «Peter Hutton: música silenciosa, diários de bordo, ecos do mundo. Uma conversa».
[iv] Nicole Brenez, «Contemporary experimental documentary and the premises of anthropology: the work of Robert Fenz», em Experimental Film and Antropology, ed. Arnd Schneider e Caterina Pasqualino (London and New York: Bloomsbury Publishing Plc, 2014), 65.
[v] Carlos Y. Flores e Antonio Zirión P., «Un chamán del cine etnográfico: Entrevista con Robert Gardner en México», Alteridades, n.o 19 (37) (2009): 160.
[vi] Apud Georg Simmel, Le metropoli e la vita dello spirito, ed. Paolo Jedlowski, [1903] (Roma: Armando Editore, 2011), 15.
[vii] Simmel, 15–17.
[viii] Brenez, «Contemporary experimental documentary and the premises of anthropology: the work of Robert Fenz», 65.
[ix] Georg Simmel, «O estrangeiro», em Sociologia, trad. Evaristo de Moraes Filho (S. Paulo: Editora Ática, 1983), 184.
[x] Ruy Belo, «Homem de Palavra(s) / De como o poeta acha não se haver desencontrado com a publicação deste livro», em Todos os Poemas, [18 Abril 1978] (Porto: Assírio & Alvim / Porto Editora, 2014), 247–48.