No Brasil, um acontecimento futebolístico recente nos ensinou um bocado de coisas. Cuca, técnico contratado para treinar um dos times mais populares do país, o Corinthians, foi um dos condenados pelo estupro de uma menina de 13 anos, na Suíça, em 1987. O caso voltou à tona em 2021, quando ele foi contratado novamente pelo Atlético de Minas, mas agora despertou maior revolta de parte da sociedade brasileira, também porque um dos lemas que o Corinthians endossou foi “Respeitem as minas”, um slogan contrário ao machismo no futebol, que repercute de fato em todos os setores de um país em que muitas mulheres são assediadas, violentadas e assassinadas. A pressão foi tanta que o técnico teve de pedir demissão, após ter recebido apoio de todos os jogadores e da diretoria do time. Após a demissão, jornalistas de agora resgataram reações de jornalistas de 1987: um show de horrores. Como éramos toscos, nojentos, ignorantes naquela época. Dá para dizer, então, que o mundo melhorou, e muito, certo? Nesse aspecto, evidente que sim.
Mas é possível mesmo dizer que melhorou ou piorou? Penso que não. Por que tudo depende de onde se olha e para onde se olha. Nesse aspecto em especial, crescemos muito. Quem tem bom senso não propaga mais piadas racistas, homofóbicas ou misóginas, como nós, brancos heterossexuais de classe média, fazíamos há poucas décadas. Aprendemos com o politicamente correto e não foi um sacrifício grande a adaptação a um ambiente de maior respeito ao outro.
Falemos de cinema, que é o tema principal deste espaço. O cinema, a meu ver, piorou. Claro, é uma impressão minha, embora a simples colocação já sirva para que possam me acusar de passadista, nostálgico ou sei lá mais o quê. Pois bem, a crítica também piorou, e obviamente eu tenho minha parcela de culpa, já que sou um crítico atuante, em jornal de grande circulação e na internet. Os “presentistas” pretendem tornar inválida qualquer crítica ao mundo de hoje. E que mundo teríamos sem a crítica? Se piorou mesmo ou não, devemos valorizá-la sempre. Só critica quem ama e crítica alguma é destrutiva quando é feita honestamente.
No aspecto da apreciação das obras, quando se inicia uma campanha de apagamento do passado, o que atinge boa parte da produção artística do século 20, esbarramos no autoritarismo daqueles que se consideram sempre detentores da razão. Outro dia li que as comédias de Blake Edwards são tão racistas e misóginas que é impossível vê-las hoje em dia. Revi várias delas para um curso. Mesmo percebendo o politicamente incorreto no comando, só é possível falar que são racistas destacando-as do contexto da época e colocando-as no contexto atual. Hoje, sim, elas parecem racistas. Na época, ninguém pensava nisso. O que está longe de significar desprezo pela luta contra o racismo. Aprendemos também vendo o que fazíamos de errado, como aprendemos cinema vendo a maestria da direção de Edwards em scope. O anacronismo é uma praga que mais prejudica do que ajuda as lutas progressistas.
A miopia dos justos não impede que assediadores tenham bons empregos e cafajestes e violentadores continuem se dando bem no mundinho corporativo da esquerda (a cinematográfica, evidentemente, mas não só). Porém, essa mesma miopia impede que filmes de John Ford sejam vistos com isenção e a plena consciência de que são obras realizadas em um contexto diferente do que temos hoje. (Para mais sobre o absurdo que é chamar Ford de racista, ler o grande Tag Gallagher, cujo livro sobre o diretor dos diretores está disponível na internet).
Quem nasceu no século 21 se acha superior a nós, do século 20, que contávamos piadas racistas, ríamos delas, mas evoluímos o suficiente para entender que não cabem mais no mundo de hoje. Talvez eles tenham razão em se achar superiores, mas os impulsos da juventude raramente conseguem frear os exageros que acompanham as lutas justas. A construção de um mundo melhor, o que não deixa de ser utópico, passa pelo diálogo entre as diferentes gerações. Pena que diálogo é um valor cada vez mais ausente em nossa sociedade. Daí a utopia.
Ainda a história do “jabá”
Havia esquecido de um lamentável episódio que tem a ver com minha crónica passada, sobre críticos de cinema receberem para falar bem dos filmes. Em minha finada Revista Paisà, que era impressa e circulava em algumas capitais do Brasil, conseguimos uma permuta com uma distribuidora de DVDs que durou algumas edições. Eles mandavam a arte do anúncio sempre nos últimos dias, já na fase final de diagramação da revista. Portanto, não tínhamos como saber que filme sairia estampado na quarta capa da revista. Em todas as edições anteriores, o filme escolhido por eles ou era tão insignificante aos nossos olhos que nenhum crítico quis ver, ou era fraco e recebia crítica negativa. Até que resolveram colocar Zwartboek (Livro Negro, 2006), o adorável longa de Paul Verhoeven, no anúncio. Minha crítica já estava diagramada e tudo. Cotação máxima: cinco estrelas. Evidentemente, os haters que se propagaram como mato nos últimos anos já existiam em 2007, quando a edição fora publicada. Um deles acusou a revista de se vender para a distribuidora, afirmando que estávamos recebendo dinheiro para elogiar o filme. O cretino deve ter comemorado quando a revista deixou de circular, alguns meses depois.