O realizador Ari Aster já deu entrevistas (como no podcast The Big Picture, onde discute a questão) onde fala sobre a sua relação sobre o género em que os seus filmes se inserem. Hereditary (Hereditário, 2018) pode ser considerado um filme de terror, Midsommar (Midsommar – O Ritual, 2019) pode ser encarado enquanto comédia negra e Beau Is Afraid (Beau Tem Medo, 2023) é… algo diferente. Algures entre a comédia, o horror, o surrealismo e uma sensação difícil de abanar que só se expressa como “incapacidade de compreender o que acabei de ver”.
Beau Is Afraid começou por ser uma curta-metragem (recentemente desaparecida da Internet; estreada em 2011) que precedeu o trabalho em longas que Aster desenvolveu depois, mas que se tornou num proof of concept para este filme. É um filme ao mesmo tempo audacioso (especialmente pela propensão para um absurdismo inquietante e pelo domínio do métier do cinema que Aster definitivamente possui), mas incrivelmente difícil, não de interpretar, mas de seguir os seus fios narrativos, que se perdem constantemente no meio de tudo o que Aster atira ao espectador.
Mas comecemos pelo princípio: o epónimo Beau é Joaquin Phoenix, sempre dado a projectos idiossincráticos. Aqui, é um homem de meia idade, atormentado pela sua ansiedade e pela relação com a mãe, cujas tendências manipuladoras se sentem desde a primeira cena, numa conversa com um terapeuta que roça o humor mais cringe possível e termina numa receita para comprimidos que prometem ajudar todas as vertentes da sua saúde mental. Como tudo em Beau Is Afraid, a cena em si, as personagens e a intensidade da câmara e da montagem contribuem para um constante estado de elevado dramatismo, como se todos os detalhes da vida normal fossem colocados na configuração mais excessiva. Para tomar os comprimidos, necessita que estes sejam acompanhados sempre com água e só isso se torna um périplo de proporções dantescas — o filme está sempre neste registo: primeiro, porque essa parece ser a sensibilidade cómica de Aster e, depois, porque estamos definitivamente no ponto de vista de alguém que sofre de ansiedades extremas e isso é concretizado numa visão do mundo bem mais intensa. Phoenix está sempre a trabalhar num tom semelhante de humilhação confusa, ou medo confuso, ou simplesmente confuso. E os seus melhores momentos são aqueles em que consegue sair desse registo monocórdico.
A sua estranheza pode tornar-se alienante, e embora a sua duração (179 minutos) não é necessariamente cansativa, todo o projecto parece querer ser rebelde só para o ser.
Beau lança-se numa aventura totalmente estrambólica, cujos detalhes são melhor vistos do que explicados, mas o âmago da história é o seguinte: depois de Beau, no seio das suas dificuldades, falhar uma ida ao aeroporto para apanhar o avião que o levará a visitar a sua mãe, descobre que esta morreu de uma maneira, digam-no comigo, especialmente dramática. O filho, movido a amor e culpa em medidas iguais, faz os possíveis para chegar ao funeral e todas as personagens que encontra no seu caminho servem para lhe dar um pedaço de sabedoria, um pedaço de comicidade e um pedaço de horror. Pelo meio, há uma epopeia imaginada, uma real e uma lembrada: voltamos sempre à infância de Beau, aos implícitos segredos da sua família e ao amor tóxico que emana da sua mãe — a figura do pai é tanto totalmente ausente como totalmente presente na sua aura de mistério. E, num filme que funciona como sublinhada metáfora de uma relação entre mãe e filho no confinamento de estereótipos judaicos, especificamente o da mãe sufocante e metediça, existem os inevitáveis problemas edipianos. Talvez seja mesmo aqui que o filme brilha, e brilha muitas vezes, no acto de tornar reais todos os medos absurdos que se possa ter, de levar às últimas consequências algo que é mundano e parte de uma experiência pessoal reconhecível. Apenas transformando tudo em qualquer coisa que é sublime e grotesca e pedindo para irmos nessa viagem. Uma viagem que é fundamentalmente desarticulada, em que o único fio lógico é este Complexo de Édipo que sustém todo o filme.
Há, ainda, um eventual chegar ao local do crime, uma casa luxuosa onde Beau vai sofrer as maiores transformações e revelações. Um denouement que conta com um momento genuinamente divinal, cortesia de uma Parker Posey que deixa saudades assim que sai de cena (mas que excelente sair de cena!) e um confronto com a figura de Patti LuPone, num toque de casting o mais óbvio possível e, por isso, mesmo, um pouco desinspirado. LuPone é sempre excelente e Phoenix sabe entrar numa boa dinâmica com a lendária actriz da Broadway, mas é o princípio dos momentos mais desapontantes do filme. Se este pretende terminar com um estrondo, acaba por se resumir a um gemido.
Há sequências de animação, sequências com CGI, sequências mágicas, sequências assustadoras, e uma constante veia de incredulidade perante as escolhas de Aster e o desenrolar dos eventos. Beau Is Afraid acaba por nunca ser maior do que as suas partes, por muito audacioso que seja na sua construção. A sua estranheza pode tornar-se alienante, e embora a sua duração (179 minutos) não é necessariamente cansativa, todo o projecto parece querer ser rebelde só para o ser.
Num mundo em que o cinema mainstream se consegue reduzir a fórmulas muito previsíveis e pouco audazes, Ari Aster continua, sem dúvida, a ser um realizador a ter debaixo de olho. Não é por acaso que Martin Scorsese lhe dá elogios e é sempre desejável haver autores que conseguem alocar o seu talento e peso no sentido de fazer obras suis generis. Contudo, terminamos a perguntar-nos se Ari Aster estará bem.
★★★☆☆