(...) we are made of star stuff. Why aren’t we talking more about that? Maggie Nelson, The Argonauts
Quando falamos do corpo humano e da fábrica que tem em mãos, os afazeres diários e silenciosos que os instrumentos e as suas respectivas engrenagens nos possibilitam um bombear e um viver, falamos sempre daquilo que não conseguimos ver, aquilo que não nos mostra. Mais vezes que não, aquilo até que nos esconde. O corpo pode ser nosso, porque o albergamos e dele temos de cuidar. E era bom que a simples consciência da sua fragilidade e súbita auto-destruição ajudasse a que este deixasse de o ser. Talvez seja por isso que trago Notre Corps (2023) comigo na algibeira desde o Festival de Berlim e, mais recentemente De Humani Corporis Fabrica (2022), caras-chave da secção Silvestre da 20ª edição do IndieLisboa – Festival Internacional de Cinema e dois filmes que são actos distintos sobre a efemeridade do corpo humano que se cruzam e complementam exactamente por essa razão. Evocar Maggie Nelson no seio deles com esta passagem com que começo parece estranho e até contraditório, mas não consigo parar de fazer a associação. Somos feitos daquilo que não compreendemos. Da poesia do ser, uma origem qualquer; star stuff. E falamos muito sobre isto quando falamos sobre os momentos mais marcadamente ascendentes e descendentes durante o crescimento e o envelhecimento, mas esquecemo-nos que também entre essas duas fases vulneráveis, a matéria de que as estrelas são feitas é a matéria que nos faz estar sempre onde estamos quando estamos. Neste caso, em hospitais, algures entre o nascimento e a morte, o corpo oferecido aos confins do gore do real.

As peças-temática são elevadas ao seu extremo dentro da vanguarda da exploração formal do documentário, e integradas numa dimensão tão cinemática que afugenta e tortura, porque se engolfa no que consideramos ser esteticamente sinistro por esticar tanto o que sabemos (embora raramente testemunhemos) ser real.
De Humani Corporis Fabrica faz desse culto do espectacular a sua paisagem, pela mão dos antropologistas e criadores do estrondoso Sensory Ethnography Lab (SEL), um hub criativo da Universidade de Harvard [lembram-se do El Mar La Mar (2017)? – ainda penso nele sempre que me perguntam por um filme que faz tudo parar de rodar], de Verena Paravel e Lucien Castaing-Taylor, o duo que trouxe até nós os mundos da selvajaria da pesca no Atlântico ou do canibalismo. Partindo do nome dado ao conjunto de livros de anatomia escritos por Andreas Vesalius, publicados no séc. XVI, também De Humani Corporis Fabrica faz parte de uma filmografia que não depende nem se apoia em subtexto explicativo, seja através de voz-off ou do próprio desfolhar do filme em si. As peças-temática são elevadas ao seu extremo dentro da vanguarda da exploração formal do documentário, e integradas numa dimensão tão cinemática que afugenta e tortura, porque se engolfa no que consideramos ser esteticamente sinistro por esticar tanto o que sabemos (embora raramente testemunhemos) ser real.
Mas De Humani Corporis Fabrica é particularmente desconexo, partido aos bocados, sem ligação óbvia, sem explicação do que é mostrado. Pode até ser equiparado a fazer mergulho livre sem o treino específico ou a conduzir um carro pela primeira vez. Somos arrastados pelas câmaras, construídas para o propósito e pequenas o suficiente para penetrar a pele do intestino delgado, e por aí continuar, túneis fora e depois cavernas das nossas entranhas enquanto estas pulsam e procuram um alívio, qualquer que seja, ora no inundar do líquido roxo e brilhante pelas cavidades mais saturadas ou no respirar dos cortes de pele após as suturas acabadas e ligadas. Há claramente uma lógica, desorganizada (mas está lá), dos procedimentos – de o que parece ser um transplante de córnea a uma cesariana a uma operação à próstata. Aguentamos tudo aquilo, aliás existe até o ímpeto de absorver as texturas como se de um filme de Stan Brakhage se tratasse – estamos afinal a ver tudo isto com os nossos olhos – mas não sabemos necessariamente como. Eis a resistência daquele que semi-cerra os olhos, respira violentamente pela boca enquanto aperta o estômago, mas não consegue parar de olhar.

Também encontramos Notre Corps do berço ao leito da morte. Ou neste caso, o ponto de partida dá-se com um caso de aborto de uma jovem adolescente e o momento da despedida surpreende-nos com uma conversa entre médica e paciente oncológica e como ambas se abraçam e falam sobre admitir a derrota e encarar a morte quando tudo o resto falhou. O nome de Claire Simon não devia ser estranho para espectadores depois de décadas e décadas de uma expansiva carreira auto-didacta, do documentário à ficção. Mas confesso que nunca tinha ouvido o seu nome a ser murmurado e sussurrado tantas vezes em tantos contextos diferentes. Se havia um filme a ver na Berlinale deste ano, e especialmente na secção Fórum do festival, a sua coroa cintilante, era este.
Em quase três horas, Simon arquitecta um objecto irreverente, que se afasta do sentimentalismo, mas pinga abundantemente de solidariedade na forma como se encosta a um abecedário de gestos empáticos enquanto segue o corpo humano feminino, as suas lutas mais ardentes, a injustiça dos diagnósticos atrasados e a falta de pesquisa no campo do que é ‘feminino’, porque foi tido enquanto imutável e impenetrável no ramo científico durante demasiado tempo. Fala-se da dor paralisante da endometriose e da falta de soluções para a sua reparação, os vários aspectos da transição transgénero e da violência obstétrica e ginecológica difícil de aniquilar. Vemos um jovem rapaz trans no processo de parar a sua menstruação, uma jovem rapariga a tomar o comprimido que a fará abortar e uma senhora numa intervenção que remove alguns ovócitos para serem congelados. Vemos um parto natural e uma cesariana, as várias fases por trás da inseminação artificial e da luta de casais que não conseguem engravidar, a remoção de órgãos por decisão própria, entre muitos outros casos. Nunca seguimos o mesmo casal ou o mesmo paciente, tirando numa ou noutra situação. Não é dessas ligações pessoais que Claire vai formulando o seu retrato. O filme é a súmula de um pedido colectivo feminino aos médicos do mundo por respeito e empatia, observação e pesquisa. Uma rapariga grávida e com cancro diz a Claire a determinada altura, olhando-a através da lente da câmara, que sim, doía-lhe muito a mama, mas os resultados dos testes vinham sempre negativos e ela achava que as mulheres, só pela natureza de o serem, sofriam. Ser mulher era sofrer essa dor e aprender a contê-la. Notre Corps parte e nunca se afasta de abordar a violência desta interiorização.
A cineasta amplia o que se encontra por trás dos procedimentos, por trás do que é cortante (atentar no paternalismo de alguns profissionais de saúde), e expõe num holofote as contrações entre o corpo e o EU para assim demonstrar a derradeira prova do notre universal a caminhar a humanidade.
Ambos odisseias filmadas em hospitais franceses, por consultórios e diversas salas de operação, são trabalhos profundamente colaborativos entre os pacientes e a equipa médica. No caso de Notre Corps, a própria realizadora revela-se a determinada altura uma paciente oncológica – essa sequência em específico assalta-nos como quando uma porta colide com um batente. E enquanto os dois crescem na e da acumulação e condição aditiva que lhes alimenta ainda mais os porquês da sua urgência, Notre Corps tem o privilégio de conquistar vários pioneses testemunhais no mapa da dor devido em parte ao seu formato longitudinal, o que o deixa abordar o que De Humani Corporis Fabrica não expande ou conclui seja o que for enquanto se foca maioritariamente na corporeidade fisiológica. Simon decide observar primeiro e só depois se expõe, tanta é a devoção e o pedido de ajuda por cuidado (tomado por garantido em tantas outras áreas clínicas). Esta quer com isto compreender o que está por trás do tecido necrótico que De Humani Corporis Fabrica transforma em cinema óptico nervoso e abrasador. Em conjunto, encontro os dois na sua procura incessante por controlo. Controlo sobre a qualidade da vida humana quando se dá de caras com o sistema nacional de saúde, os seus profissionais e todas as restantes implicações sociais. Noutras palavras, como prevenir o sofrimento antes e quando o tempo dele chega.


Se De Humani Corporis Fabrica fala em movimentos precisos que abordam a qualidade mais alienígena do corpo humano enquanto tecido, Notre Corps faz o mesmo mas em acenos observacionais, tons de voz; a carne da linguagem a olho-nu.
Por tudo isto, revelam-se exercícios de luz (e aqui volto a Brackage e à matriz do cinema experimental, o thaumazein do mundo, o seu assombro primordial), onde o método que cada filme usa para contar o que existe dentro dele espelha o que existe dentro dele. De Humani Corporis Fabrica é impessoal, porque precisa de o ser para dar o máximo de visibilidade ao aspecto anatómico, animal, tridimensional, objectivo e factual do que faz com e do corpo. Tanto somos iluminados sobre a textura fibrosa e acizentada do órgão cancerígeno retirado de um corpo como queremos fugir do corpo mole e incapaz durante a demência, talvez o caminho mais desafiante que o documentário percorre. Do cinema vamos para o manifesto com Notre Corps, que realiza um disciplinado segundo acto. Bebés nascem dentro dos dois filmes, mas só acompanhamos o retirar do corpo, fase a fase, momento a momento, no documentário de Simon. A cineasta amplia o que se encontra por trás dos procedimentos, por trás do que é cortante (atentar no paternalismo de alguns profissionais de saúde), e expõe num holofote as contrações entre o corpo e o EU para assim demonstrar a derradeira prova do notre universal a caminhar a humanidade. Porque independentemente da tecnologia que vemos a ser usada um pouco pelos dois filmes, o corpo permanece terreno desconhecido. E criar um espaço de confiança com o paciente continua a ser a coisa mais importante de todas.
Numa entrevista à revista de cinema americana Film Comment, é dito a Simon que é tão belo dar nomes às coisas que existem dentro de nós e para as quais não temos linguagem, ao que esta responde que “as palavras que podem explicar são tão poderosas”. O que as câmaras nesta perfeita double bill captam, agrupam e libertam de volta para nós conta não só o exterior ou o interior, como toca nas superfícies do dia-a-dia da sobrevivência. Se De Humani Corporis Fabrica procede em movimentos precisos que abordam a qualidade mais alienígena do corpo humano enquanto tecido, Notre Corps faz o mesmo mas em acenos observacionais, tons de voz; a carne da linguagem a olho-nu. No final da viagem feita, a pergunta surge outra vez. De que é que somos feitos? Pesa demasiado o reconhecimento da continuidade da dor, das suas marcas de ocupação, e de como tudo continua a permanecer tão inexplicável e fora do nosso alcance para haver uma resposta imediata. Mas ambos reparam o que conseguem, nem que seja nas suas travessias de (querer) ver tudo com os próprios olhos.