Um homem sábio que cultiva o seu jardim e quase não fala, gaba-se de ter conseguido sustentar toda a doutrina da acção em dois capítulos, tendo cada um deles apenas uma palavra. Primeiro capítulo, continuar. Segundo capítulo, começar.
Alain, em Minerve ou de la sagesse
Se começar por relembrar a questão trazida para esta série de crónicas, na formulação tomada de empréstimo a Virginia Woolf ― «Se o cinema deixasse de ser um parasita, como faria para caminhar de cabeça erguida?» ― poder-se-á, sem mais, compreender a minha escolha da resposta de Chantal Akerman, uma «cineasta do nosso tempo», contida na sua afirmação, ao mesmo tempo desconcertante e concludente, em Lettre d’une cinéaste: Chantal Akerman (1984), em que diz: “Quando se faz cinema é preciso levantar-se. Então, eu levanto-me”.
Chantal Akerman, que nasceu em Bruxelas em 6 de Junho de 1950, assinalou a sua chegada ao cinema, ao mesmo tempo que em Paris a contestação estudantil “Maio de 68” desencadeava múltiplas convulsões cujas réplicas se fariam sentir nos demais países desenvolvidos, com um curto filme ― Saute ma ville (1968), que por pouco não acabou “congelado” no laboratório por falta de pagamento do serviço de revelação, no qual, em jeito de comédia burlesca, Chantal Akerman, que é a única intérprete do mesmo, provoca num inesperado desenlace uma explosão e, assim, terá encontrado o tom para o cinema que veio a fazer depois, se bem que privilegiando uma modalidade que em D’Est (1993), o caso aqui em apreço, é «Evocação da guerra. Implosão».
Para tudo é preciso um tom. Outros, porventura, diriam um dom. Contudo, sendo a minha referência por ora o prefácio da edição francesa do livro Um Tom para a Filosofia de Stanley Cavell, daria certamente extenso motivo de questionamento a expressão utilizada pelo autor ― “invitation à nous retourner” ― sobre o sentido do movimento que somos solicitados a realizar para o encontrar. Voltar aonde já se esteve? Voltar a si? Ou, simplesmente, voltar-se? Cavell exemplifica: “Sócrates chama a isso um convite a examinar a sua vida, Wittgenstein chama a isso repor as nossas investigações no seu eixo, o que acaba, de certa maneira, por ser um convite a voltar-se, como se cada um deles nos perguntasse, mais ou menos, porque dizemos o que dizemos” [1].
Em 1967/68 Chantal Akerman frequenta durante alguns meses a escola de cinema de Bruxelas que rapidamente abandona, contrapondo “a nossa escola era a Cinemateca”, se bem que é em Nova Iorque, onde chega em 1971, que a sua educação cinéfila ocorrerá, através do contacto com o cinema de Michael Snow e Stan Brakhage.
Numa conversa com Jean-Luc Godard, questionada a pronunciar-se sobre o que é que se quer fazer quando se tem um projecto de filme, Chantal Akerman começa, num exercício retrospectivo, por dar a primazia ao impulso afectivo de que tudo partiu, não deixando de admitir que não serão muitos os que poderão imaginar como é, quando se tem quinze anos, descobrir os filmes de um realizador sem nunca ter ouvido falar dele, mas tendo sido o que aconteceu consigo própria, está certa de poder deduzir que o “motivo para querer fazer filmes” foi ter visto um filme que o seu interlocutor tinha feito. Tendo, por acaso, entrado num pequeno cinema do centro de Bruxelas para ver um filme, deparou-se com Pierrot, le fou (1965). É nessa experiência que tudo começa, conforme explica: “foi a primeira vez que eu me emocionei profundamente num filme” e “tive a impressão que o filme falava da nossa época, daquilo que eu sentia”, daí tirando a conclusão de que “não há dúvida que eu quis fazer a mesma coisa com filmes que fossem os meus”. Contudo, tendo este filme desempenhado o “papel do cinema dominante”, ao procurar ver outros filmes na tentativa de reencontrar a mesma coisa, como isso nunca mais aconteceu, levou tempo a entender, como diz, que “estava sempre à procura de algo que já havia conhecido, só que as coisas não se repetem assim” [2].
Dominique Païni, num texto de homenagem, por ocasião da morte de Chantal Akerman, evocando a inacreditável contemporaneidade que seria possível discernir entre os grandes autores do mudo e os da Nouvelle Vague, questiona em que medida através do cinema moderno não poderia igualmente estabelecer-se um elo entre estes últimos e os que Philippe Garrel junta no seu documentário Ministères de l’art (1988) ― Jean Eustache, Chantal Akerman, André Téchiné, Jacques Doillon, Benoit Jacquot, Leos Carax ― constituindo estes, entre outros, uma pós Nouvelle Vague, se bem que, relativamente a esta, haveria que assinalar uma diferença fundamental: “esta geração, por vezes violentamente maltratada pela crítica e pela profissão oficial, inegavelmente mais frágil e lúcida por chegar depois, perpetuou um período de excepção do qual era ao mesmo tempo filha e sintoma de uma transferência, senão mesmo de uma conclusão. A palavra-chave destes cineastas poderia ter sido ― mais do que mise en scène que estava no âmago da força da Nouvelle Vague ― a palavra poesia, no sentido em que um Cocteau juntava esta palavra a tudo como um prefixo lírico. Poesia singular daqueles que operavam um regresso não reclamado, sem dúvida inconsciente, aos primórdios do cinema mudo. Como se fosse necessário que a extensão do moderno tivesse de recorrer a uma atitude órfica: olhar para trás para continuar [3].
Em 1967/68 Chantal Akerman inscreve-se e frequenta durante alguns meses o INSAS, a escola de cinema de Bruxelas que, desgostosa, rapidamente abandona, contrapondo, aliás, que “a nossa escola era a Cinemateca”, se bem que é em Nova Iorque, onde chega no Outono de 1971, que a sua educação cinéfila ocorrerá, particularmente, no Anthology Film Archives, através do contacto com o cinema de Michael Snow e Stan Brakhage e com a cultura artística de vanguarda, tudo isso tendo igualmente contribuído para esse ter sido, como confessará mais tarde, o período mais feliz da sua vida.
No passado haveria, no entanto, muito mais para que voltar-se. Desde logo a família, judeus polacos que tinham emigrado para a Bélgica, onde o pai e a mãe se tinham conhecido e casado no pós Segunda Guerra Mundial, sendo a mãe uma sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, assunto que, entre mãe e filha, nunca foi directamente falado. Um passado assombrado por recalcamentos e interditos, portanto. Chantal Akerman revela: “Os meus pais vêm da Polónia, vivem na Bélgica há 30 anos e sentem-se bem lá. Durante muito tempo, durante toda a minha infância, acreditei que a sua forma de viver, de comer, de falar, era a dos belgas. Foi só mais tarde que senti as diferenças” [4].
A posição de Chantal Akerman [sobre a função da palavra e da imagem no cinema] assenta numa dupla convicção. Por um lado, diz: “Acredito mais nos livros do que nas imagens. A imagem é um ídolo num mundo idólatra. Num livro não há idolatria…”. Por outro, afirma: “É muito mais fácil fazer imagens do que frases”.
Ao evocar as intenções que estiveram na origem do filme D’Est percebemos que são essas diferenças que motivam o percurso empreendido, referindo Chantal Akerman explicitamente “as razões afectivas para a viagem pela Europa de Leste” para falar “dos pais, do seu modo de vida, afinal ainda tão próximo dos de Leste”, bem como o que dissera para si mesma, em termos de balanço, uma vez o filme terminado: “aquelas imagens, eu já as conhecia, já estavam dentro de mim”. Algo que surge, talvez, ainda com mais insistência nas anotações referentes ao projecto gémeo (que acabou por não ser realizado) “Du Moyen-Orient” que pretendia ser “um filme um pouco errático”, se bem que ancorado na convicção de que “numa viagem, é sempre o pai ou a mãe que se reencontra”. Havendo, bem entendido, outras formas de o dizer, as páginas de Autoportrait en cinéaste sobre este projecto falhado são de uma grande sensibilidade estética e clarividência política, como deixa entender neste passo em que mistura vivências infantis com o presente: “em pequenina, escondida ao pé do meu avô, ouvi cantar em hebraico (…). Em Ménilmontant onde moro, ouço muitas vezes falar árabe, e não resisto em querer voltar-me ao ouvir algo que me é familiar”, dada a semelhança com o hebraico [5].
Após a queda do muro de Berlim, entre o fim do Verão e o início do Inverno, Chantal Akerman viaja da ex-RDA até Moscovo. Filma rostos, ruas, carros que passam, transeuntes e viajantes, paragens e estações, árvores, muito poucos interiores, pessoas à espera. À medida que o filme avança, não esquecendo o complexo jogo entre o ponto de vista situado, que empresta uma força particular à câmara que observa e a atitude ora indiferente ora curiosa dos observados, não podemos deixar de perguntar: Para onde vão? O que levam na bagagem? Estão à espera de quê? Eles nada dizem, aliás, as muito escassas falas que se ouvem no filme não têm qualquer tradução ou legendagem. Chantal Akerman, por sua vez, assevera: “Esses rostos D’Est eu conhecia-os e faziam-me pensar noutros rostos. As filas de quem espera, as estações, tudo isso tinha uma ressonância em mim, era como um eco desse imaginário, desse buraco na minha história” [6].
Pretendendo confirmar com a sua mãe Natália a justeza desta lembrança, apenas conseguiu que ela retorquisse “porque perguntas tu isso; sabes bem”. No entanto, apesar do peso do interdito relativo ao uso de imagens na cultura judaica, a recordação da mãe sobre os quadros pintados pela avó de Chantal é um pouco mais pródiga: “eram telas muito grandes, nas quais havia mulheres, rostos que me olhavam”.
No conversa com Jean-Luc Godard, acima referida, há um momento de clara divergência sobre a função da palavra e da imagem no cinema. A posição de Chantal Akerman assenta numa dupla convicção. Por um lado, diz: “Acredito mais nos livros do que nas imagens. A imagem é um ídolo num mundo idólatra. Num livro não há idolatria…”. Por outro, afirma: “É muito mais fácil fazer imagens do que frases”. Jean-Luc Godard mostra-se particularmente avesso à crença de que quando se aponta uma câmara, haverá sempre qualquer coisa que fica impresso na película, contrapondo: “Não há nada no filme, isso é um momento passageiro. Só existe algo se a imagem for projetada e se houver alguém para a ver”.
A afirmação de Godard, aparentemente elíptica, ponto de ancoragem para uma concepção da imagem que talvez pudesse vir a designar-se intermitência gestual, não seria difícil de conciliar com a tese de André Bazin sobre a noção de presença no cinema. A própria definição de imagem como “existência situada a meio caminho entre a coisa e a representação” de que Henri Bergson fala no prefácio de Matéria e Memória poderia igualmente convir. E encontrar-se-ia ainda em Gilles Deleuze, ao analisar as peças (para televisão) de Samuel Beckett, em que emerge a figura do esgotado (a que Deleuze confere uma dimensão conceptual), a demonstração de que para Beckett “é a televisão que permite ultrapassar a inferioridade das palavras”. Não esquecendo que a dificuldade maior está em fazer uma imagem que se sustenha, isto é, que se mantenha de pé por si própria: “De facto, não é fácil fazer uma imagem. Não basta pensar em qualquer coisa ou em alguém”, afirma Deleuze que, depois, acrescenta: “A imagem é um sopro, uma respiração, mas expirante, em vias de se extinguir. A imagem é o que se apaga, se consome, uma queda” e, por isso, quando se trata de “um poema visual” o que importa não é o entrecho de qualquer história, mas pôr de pé uma imagem, fazer uma imagem que se sustém por si [7].
Dessa conversa respigarei ainda a questão colocada por Godard relativa ao primeiro plano que cada um tinha rodado. Godard, diz, terá começado por filmar os próprios pés, ao passo que Akerman recorda que filmou a mãe a entrar num prédio enorme e a abrir a caixa de correio. Aliás, para além de outras aparições em filmes seus, em No Home Movie (2015), o derradeiro filme de Chantal Akerman, a protagonista é a mãe que, entretanto, morre antes da estreia do filme. Num testemunho sobre o mesmo, Chantal Akerman está ciente da dupla perda: “Ainda que tivesse uma casa em Paris e por vezes em Nova Iorque, sempre que dizia tenho de ir a casa, isso significava ir ter com a minha mãe”.
Nas últimas páginas do seu livro La mère rit, a propósito das conversas que se têm em funerais, em que se pergunta se os pais do morto ainda são vivos, conta uma ocorrência recente: “Naquele enterro, alguém me disse que era alguém da nossa geração que partia. Queria dizer que em breve seria a nossa vez, mas não disse. Alguém também me disse para continuar. Tu vais continuar, não é. Ele queria dizer a fazer filmes. Eu disse rapidamente sim, sim. E voltei-me. Porque é que eu tinha que continuar. Porque é que eu disse, sim, sim tão rapidamente. Porque.” [8].
O jornal Libération, em 13 de Setembro de 2022, anunciava a morte de Godard nestes termos: “A sua decisão. Jean-Luc Godard recorreu ao suicídio assistido: ele não estava doente, estava simplesmente esgotado”. Seria uma triste ironia conceder que teriam razão os que, por isso, dissessem que bastava tomar à letra o termo usado (épuisé) na comunicação à imprensa, já que há muito que o “poço” se esvaziara ou, então, que a “fonte” tinha secado, e nada havia para continuar, tanto mais que já antes, a 5 de Outubro de 2015, Chantal Akerman se suicidara no seu apartamento em Paris, ano e meio após a perda da mãe.
Junto contraprovas.
Chantal Akerman: “Importa-me o quotidiano, avanço em direcção à morte, como toda a gente.” [9]
Luiza Neto Jorge: “É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico calado, pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer assento. Descai com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se fixam sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação em volta de mim em volta de mim de ti.” [10]
[1] S. Cavell, Un ton pour la philosophie: moments d’une autobiographie, trad. S. Laugier e É. Domenach (Bayard, 2003), 8.
[2] Jean-Luc Godard e Chantal Akerman, «Jean Luc Godard et Chantal Akerman: Entretien sur un project», Ça Cinéma, n. o 19 (1980), https://zintv.org/outil/godard-akerman/.
[3] Dominique Païni, «Ma Génération», Cahiers du Cinéma, n. o 716 (novembro de 2015): 81.
[4] Chantal Akerman, Chantal Akerman: D’Est, au bord de la fiction (Editions du jeu de Paume, 1995).
[5] Chantal Akerman, Chantal Akerman: Autoportrait en cinéaste (Paris: Cahiers du Cinéma / Centre Pompidou, 2004), 142.
[6] Akerman, 42.
[7] Gilles Deleuze, «L’Épuisé», em Quad et autres pièces pour la télévision, suivi de L’Épuisé par Gilles Deleuze, por Samuel Beckett (Paris: Les Éditions de Minuit, 1992), 104, 96–97; Gilles Deleuze e Félix Guattari, «Percepto, afecto e conceito», em O Que é a Filosofia?, [1991] (Lisboa: Ed. Presença, 1992), 145.
[8] Chantal Akerman, Ma mère rit (Paris: Mercure de France, 2013), 106–7.
[9] «Entrevista a Pascal Seys», Musiq3, 2013; Apud Maria João Madeira, «Chantal Akerman – Biografia», em Chantal Akerman – As Folhas da Cinemateca, ed. Maria João Madeira (Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2019), 22.
[10] Luiza Neto Jorge, «Difícil Poema de Amor», em Os Sítios Sitiados (Lisboa: Plátano Editora, 1973), 118.