Há um belo e importante texto de Justine Smith para a Animus Magazine, recente revista britânica online e resultado do desejo da crítica Elena Lazic em se desprender das amarras contemporâneas da escrita de cinema e voltar a pensar nele enquanto uma arte (como a própria escreve: “Animus significa espírito e ímpeto, mas também conflito”), que uso desde a sua publicação enquanto cartaz na parede do quarto – sempre que os olhos vagueiam ou as palavras se arrastam, sei que devo olhar para ele. Nele, a crítica e programadora pensa no cinema experimental que viu quando foi convidada a vir ao IndieLisboa e conclui que é o único formato que “não existe sem comunidade. É a única subsecção do cinema mais interessada em pessoas do que em clientes.” É um texto que abre verdadeiramente os olhos e se volta para as pessoas por trás dos filmes e o amor por elas, as que “fazem, programam e vêem cinema”. Um ano passado desde a presença de Justine em Lisboa e a publicação do texto, a segunda longa-metragem do britânico Mark Jenkin e marco de como o cinema experimental britânico nunca esteve tão saudável, Enys Men (2022) é encontrado na secção Silvestre do festival de cinema depois da sua estreia comercial pelas salas de cinema americanas (país que mais corpo do cinema estripa). Quando o penso pela primeira vez, a ligação é imediata. Aqui está a “reimaginação da distribuição e celebração de novas vozes até ao encontro de um novo público” de que Smith fala. Um público que anseia estar presente para o que não tem necessariamente de ser compreendido, apenas sentido.
Filme indefinível e por aqui fico tendo em conta a forma como Jenkin cria cinema que respira de tal forma dentro de si mesmo que se torna perigoso procurar palavras para o localizar em géneros ou subgéneros ou quaisquer outros rótulos de identificação, correndo o risco e neste caso a garantia de o fechar (assim é o cinema mais esqueletoso). Burlesco é então como, em entrevista atrás de entrevista, Jenkin explica que findo o filme, a equipa de marketing teve, claro, dificuldade em arranjar uma forma de o resumir numa pequena frase. Precisavam dela. A viagem começou com “A lost Cornish folk horror” e a última gota no copo foi “Cornish film”, ou seja, “um filme da Cornualha”. Tal como Bait (2019), que o antecede e surge de uma óbvia preocupação social, também encontramos Enys Men na história local da Cornualha mas com particular evidência agora na sensibilidade rochosa e escarpada e oh tão pitoresca da região-bota na costa de Inglaterra. Os seus rasgos são bem mais inflamatórios (ainda que refinados). Mais românticos também. Em Bait tinha sido criado um modelo para um cinema que era polifónico, e que provoca a comichão da linguagem por automatizar e que os nossos cordões visuais precisam de aprender a ler. Planos esquartejados com uma faca afiada, já para não dizer muita montagem Kuleshoviana à mistura. Mas com Enys Men o tipo de crise equipara-se a um desastre ainda mais feroz, um jorrar de loucura (ou será claridade?) que começa nas extremidades e expande-se por todo o corpo, cozendo-o. Não há saltos ou agressões no seu desenrolar. Só muitas ondas. Primeiro a pele vermelha de tão enfurecida, depois os olhos abertos selvagens que lacrimejam, gritos que saem das cordas vocais inaudíveis e no meio de toda aquela respiração sôfrega e enquadramentos assustadoramente próximos, um abraço apertado à mentira.
Jenkin evolui para o filme-odisseia que acolhe e rejeita, ao mesmo tempo, quem nele se quiser resguardar.
E é aqui mesmo que queria chegar. Mark Jenkin filma mentiras, e fá-lo melhor que ninguém porque nós somos sempre apanhados nelas. Tão ocupados estamos, com os nossos olhos formatados para seguir o pesadelo até à verdade, que nos esquecemos sempre que a verdade ou o que pode ser uma luz qualquer no meio de tantas questões por responder não é nada mais do que o que se vai acumulando e permanece escondido nas várias imagens poéticas e inteiriças e nas associações oferecidas a estas quando colocadas umas ao lado das outras. A construção do filme oblíquo mente-nos com a maior das facilidades. Ainda assim, se Bait era um grande primeiro filme, digno de ser considerado um dos melhores da década, sobre a pequena comunidade piscatória da Cornualha e o retrato da deslocação das pessoas locais e do seu sustento perante o terror da gentrificação e do turismo, Enys Men também é um filme de guerra mas agiganta-se ao seu lado, sob o signo de ocorrências passadas na década de 1970 numa ilha remota, e filmadas para quem as vê a decorrer, seja então ou seja agora, muito em jeito de meditação sobre a vida e a morte, o tempo e a memória. Voltando a fazer uso de uma Bolex à manivela e em 16mm, o objectivo parece ter sido replicar o filme-arquivo mas com as cores saturadas e contrastantes (o casaco impermeável vermelho e os olhos azuis, especialmente) que levam qualquer um de volta ao trabalho do inigualável Nicolas Roeg (diria até neste caso que se trata de uma clara homenagem ao realizador) e ao cinema musculoso e áspero que se viu ser feito na década de 1970. Muito rapidamente, Enys Men embeleza o que em Bait era cru e orgânico, objecto de artesão, revelado com grãos de café em baldes num laboratório qualquer, e brilha e seduz e desliza enquanto tremula por dentro. Jenkin evolui para o filme-odisseia que acolhe e rejeita, ao mesmo tempo, quem nele se quiser resguardar.
Tendo vindo a traçar uma trajectória do que poderia ser e é agora, graças a Jenkin, o próximo passo da imagem em movimento no grande ecrã, Enys Men é narrativamente um guia para a sobrevivência de uma mulher (Mary Woodvine), “A Voluntária” (assim nos diz os créditos), que vive sozinha num belo chalé de pedra na ilha e está presa num loop diário de acções e actividades que falam tanto do seu trabalho botânico ali como das suas preocupações, especialmente no que toca aos recursos de que necessita (curioso como é raro a vermos comer; mas bem, num filme britânico, o chá da manhã é capaz de ser tudo o que é preciso). Num diário, esta marca a passagem do tempo com um picar de ponto da temperatura do dia e possíveis observações de uma flor rara que esta visita todos os dias no topo de um penhasco. “Sem alterações” escreve. E dias passam. Até que algo acontece que altera o status quo da flor, e que trespassa para o corpo da mulher, e o presente mistura-se com o passado.
Sob o processo de cravar, cortar, lixar um pedaço gordo de madeira e de dele extrair uma cadeira, A Voluntária, rodeada por rocha e mar, vê-se contaminada por uma febre que a relembra quem é e a retira e depois condiciona àquele mesmo ciclo hipnótico. (…) O tempo está no corpo, afinal. No corpo dela, do filme, da Cornualha, do nosso. E este nunca se esquece daquilo que por ele passou.
As questões óbvias surgem de imediato. O que é real e o que é fantasia, ora para a mulher, ora para nós, ora para ambos. Como discernir a realidade? Tempo. Como discernir o tempo e as batidas da sua passagem quando não temos nada por onde nos guiarmos a não ser um diário escrito por ela que data o ano de 1973 e a vida de umas flores? Há demasiado que nos leva a convencer logo de início que talvez tudo isto não esteja a acontecer no momento em que se desenrola, o que diminui consideravelmente o nível de ansiedade. Esteticamente o filme é um distúrbio metabólico. É uma cápsula do tempo. É uma premonição. Um aviso directamente para o futuro, até nós. Uma alegoria ambiental, talvez. Afinal esta lê o marcante texto de Edward Goldsmith, Blueprint for Survival, que publicado em 1972 provocou furor em plantar não só o conceito mas a possível realização de uma sociedade sustentável. Mas lá estou eu a tentar encontrar o filme nos seus significados. Pode ser muita coisa, especialmente segundo os fantasmas dos contos de folclore e a mitologia celta. Mas logo à partida sem conhecimento desses condutores de simbologia, só podemos recair sobre os habituais planos próximos, os zooms videográficos que desenham o apurar dos nossos sentidos, o esporádico slow motion que perpetua ainda mais a angústia e a montagem cumulativa, visível e por vezes intratável que se faz redonda através da repetição dos mesmos lugares e objectos e suas ligeiras mudanças, vezes e vezes sem conta. Um pouco como um puzzle que está sempre a ser desconstruído e refeito (curiosa a ideia de que se outro alguém o refizesse com as mesmas imagens o filme provavelmente acabaria no mesmo lugar).
Nesse sentido, em Enys Men, estamos presentes para o verdadeiro acontecer do filme, num gesto de um acender de um fósforo, e como seus habitantes, nunca enquanto investigadores da imagem, nunca enquanto críticos, nunca à distância, a tirar notas, a apontar momentos, a quebrar o olhar. Eis o mergulho no cinema experimental, afinal. É o desejo ardente pela experimentação, por injectar espontaneidade de volta no cinema, e por estar presente para receber tudo isso enquanto espectador. Já para não dizer que a presença das estrondosas paisagens, naturais e sobrenaturais, ali no ecrã, são altivas e escondem nelas retalhos que nos surgem como uma ilusão de óptica ou pura magia até. Estava ali uma pessoa há 2 minutos atrás? O que é que dizia aquela placa exactamente? Ah mas e o pássaro que cortou o céu…Assim nos pisca o filme o olho e dele uma história simples sobre o sofrimento de uma mulher é elevada a níveis montanhescos. Escrevi no meu caderno durante o visionamento: “é como se Jenkin tivesse conseguido agarrar o purgatório e estivesse até à eternidade a perscrutar tudo o que nele há de arrepiante.”
Enys Men é um primoroso manuscrito sobre a criação, aberto à descoberta do que a mudança é realmente e o que esta pode e deve provocar.
Dentro dessa atracção pelo sinistro e a partir de alusões a histórias lhe contadas na infância, nomeadamente a da lenda das raparigas que acabaram petrificadas por dançarem a um domingo, o ilustre monumento de pedra que se parece de facto com o que poderia ter tido em termos forma humana é oferecido, na linha monolitiana de Kubrick ao lugar onde tudo se encontra, onde o tempo não se curva, impossível de malear e dobrar, comandado por outrém. O lugar que despoleta a memória daquela mulher que enclausurada e completamente perdida na ilha, permanece estática num alvoroço de repetição que não cessa, repetição que cria ela mesmo um motor de velocidade. Repetição que é ritual e auto-negação, com receio de que a verdade venha ao de cima outra vez. E neste caminhar do mundo no seu tempo, li no filme o meu tempo emocional e experiencial e por lá naveguei. Sob o processo de cravar, cortar, lixar um pedaço gordo de madeira e de dele extrair uma cadeira, A Voluntária, rodeada por rocha e mar, vê-se contaminada por uma febre que a relembra quem é e a retira e depois condiciona àquele mesmo ciclo hipnótico. Que melhor objecto poderemos alguma vez encontrar para eternizar tudo o que já por si só é sinuoso do que um poema-prosa abstracto e íntimo como este, no seu próprio tempo, que chega até nós depois de revelado, cortado e colado manualmente por pessoas? O tempo está no corpo, afinal. No corpo dela, do filme, da Cornualha, do nosso. E este nunca se esquece daquilo que por ele passou.
Enys Men é um primoroso manuscrito sobre a criação, aberto à descoberta do que a mudança é realmente e o que esta pode e deve provocar.