Regressamos à rica filmografia do realizador de Mal Viver/Viver Mal (2023), díptico agora nas salas, para resgatarmos alguns planos que nos emocionaram ou que, de algum modo, sintetizam a possibilidade de um cinema desenvolvido nos interstícios do cinema português, de maneira perfeitamente autónoma. Os walshianos – em que se destaca o contributo da nova walshiana Beatriz Fernandes, a quem enviamos uma calorosa mensagem de boas-vindas – elogiam toda uma arquitectura visual e, significativamente, sonora, recordando três títulos do conjunto da sua obra, destacando-se um, que colhe duas preferências, acabando por tornar esta sopa bem densa e escura – ácida-picante?

Regressar a Filha da Mãe (1989) de João Canijo é uma deliciosa viagem no tempo para um reencontro com uma família (conceito caro ao cineasta) de atores que, por esses anos, davam os primeiros passos no cinema, incluindo Rita Blanco, Miguel Guilherme, João Cabral, Adriano Luz ou Alexandra Lencastre. Nessa mesma década, com Vila Faia (1982), iniciava-se a produção de telenovelas portuguesas, em que muitos destes atores viriam a trabalhar abundantemente e onde encontrariam o reconhecimento do grande público, mesmo perante o perigo da cristalização das carreiras. Alguns tiveram a sorte de se tornarem atores ou atrizes-fetiche de determinados cineastas, como é o caso de Rita Blanco em relação a João Canijo.
No primeiro plano de Filha da Mãe vemos umas pernas suspensas e ouvimos uma cantilena saída de um dos projetos musicais de Manuel João Vieira, ator secundário que encontraremos mais à frente. Mas é a face da consagrada Lídia Franco que veremos primeiro a sair pela porta mesmo abaixo, e depois, num movimento brusco com algo de testamental, surge o corpo inteiro de Rita Blanco, a dona das pernas suspensas, pendurado numa varanda, gesto que literalmente apresenta a filha da mãe. No filme de Canijo, esta geração de atores que desponta parece acossada, representando pequenos marginais trágico-cómicos, com uma frescura indomável, sem a possibilidade de ser domesticada por qualquer filtro. Porém, ao contrário do que acontece com Alexandra Lencastre, neste plano o corpo de Rita Blanco começa em suspensão, incompleto e sem qualquer sensualidade, à espera de ser habitado, eventualmente pela voz que canta em off.
João Canijo pisca o olho ao mercado brasileiro e ao público português das telenovelas, convocando o ator José Wilker, o popular Mundinho Falcão da telenovela Gabriela (1975), que acabará assassinado pela mãe em pacto com a filha, numa cena com uma artificialidade minimal mais própria de Manoel de Oliveira. A cena é claramente irónica, é certo, pois no seu filme anterior, Três Menos Eu (1987), Canijo também utilizara um cartaz de Francisca (1981) de Oliveira, sem qualquer vontade de reivindicação hereditária. A partir de 1978, com a austeridade de Amor de Perdição – Memórias de uma Família, Oliveira alimentara uma divisão no cinema português, separando os promotores do cinema “de autor” dos que preferem o cinema “comercial” ou de “grande público”. Não cremos que Canijo queira operar em apenas um dos lados dessa barricada ilusória. Em vez disso, enquanto cineasta em trânsito entre modos de produção (seguir-se-ia, em 1991, a série televisiva Alentejo sem Lei), modelos narrativos e paisagens estilísticas, Canijo parece querer dizer: apanha-me se puderes.
Carlos Alberto Carrilho

Foi em Sapatos Pretos (1998) que João Canijo nos colocou pela primeira vez em frente ao espelho, na adaptação de uma história real em que a violência troçava dos brandos costumes: um ourives assassinado pela mulher e por um camionista, que sonhava abrir uma pizzaria no México. Pelo meio, houve um importante filme de transição – Ganhar a Vida (2000) – mas o alvoroço aconteceu na projecção de Noite Escura, nas suas inovações formais e na amplitude da narrativa. Uma câmara móvel, a varrer e a ligar com desenvoltura e transparência os espaços domésticos e as salas onde os clientes aliciavam as alternadeiras e vice-versa, em imagens com cores saturadas e planos fechados sobre os personagens e os seus dilemas. Mas também uma sobreposição de diálogos, dispostos em vários planos, num fluxo de histórias, que haveria de ascender à suprema sofisticação em Sangue do meu Sangue (2011).
Aqui, então, em Noite Escura, começava a distinguir-se com clareza uma família de actores, principalmente de actrizes, um trabalho de construção do filme num ensemble, que aqui estabelece uma narrativa que se poderia desenhar numa linha: o erro de um pai, que se intitula rei da noite, um Agamemnon disposto a sacrificar a filha. A influência das tragédias clássicas pousa sobre uma família que gere um bar de alterne, uma família disforme e sem futuro, num quotidiano assente numa violência em que apenas o sangue pode lavar o sangue e em que a narrativa troça do destino das personagens. E se o plano escolhido é conforme a domesticidade e o crime desta Noite Escura, é justo confessar a primeira ideia para esta sopa: Rita Blanco debruçada sobre a braguilha de Fernando Luis; a acção era mais doméstica do que a que o espectador intuía, afinal a mulher apenas compunha a cosedura das calças dele, numa curta mas exemplar sequência em que Canijo poderia estar a troçar do chamado período de ouro das comédias portuguesas, objectos que representavam um país domesticado por um regime.
Vítor Ribeiro

É o momento mais tocante de Noite Escura e também é aquele em que as personagens mais fundo embarcam na mentira que construíram para si mesmas, usando uma narrativa fantasiosa como escudo mágico para circunstâncias realmente trágicas. O pai, interpretado por Fernando Luís, conta a sua história da carochinha à filha, encarnada por Cleia Almeida. Promete visitas a Espanha quando a filha já for uma pop star e ela responde com mais fantasia: um hotel de luxo para receber o querido pai, copos pagos nas melhores discotecas, fotógrafos à cata e vários homens caídos a seus pés, mas de coração despedaçado pois a vedeta só tem olhos e coração para o seu namoradinho de liceu. A maneira como Canijo filma estes rostos – encostado à carne, como num filme de Cassavetes – e os actores interpretam os seus papéis – fazendo a carne revirar-se num jogo de enganos – é da ordem do profundamente tocante. Porque nada está à superfície, tudo se trabalha por dentro, conjurando a mise en scène, produzindo a fachada, este mal viver encenado nas profundezas do Portugal esquecido. Fernando Luís – acho que é tanto ele como a personagem – chora, no silêncio, perante a fantasia da filha. O destino da personagem está traçado: ela será vendida à máfia russa como se fosse um pedaço de carne.
Luís Mendonça

Imergindo, como tão bem nos habituou, no território afetivo, cujas relações interpessoais, os vínculos emocionais e as intrínsecas disfuncionalidades e conflitos familiares são o centro das narrativas, João Canijo prolonga, em Sangue do Meu Sangue, o realismo presente na sua filmografia [recorde-se Ganhar a Vida (2001), Noite Escura (2004) e Mal Nascida (2007)]. Ivete, Joca, Márcia e Cláudia são as quatro personagens que compõem o plano. No primeiro plano, Ivete encara e alerta Joca, o seu sobrinho, para que este vire costas ao seu quotidiano da delinquência, das drogas e do tráfico, vivido no Bairro Padre Cruz, em Lisboa; No segundo plano, Márcia procura, persistentemente, demover Cláudia, a sua filha, de permanecer na relação amorosa que estabelece com um homem comprometido, mais velho, também seu professor universitário. O mesmo homem que se descobre ser pai de Cláudia, a figura paternal que marcou a sua vida pela ausência com que a atravessou. O plano escolhido espelha o modo como as duas narrativas são conjugadas e colocadas em paralelo, evidenciando-se, sobretudo, a sobreposição recorrente dos diálogos. O espetador acompanha, simultaneamente e autonomamente, as suas vozes e os seus gestos, sem que a presença de uma narrativa signifique a anulação da outra. Embora a natureza dos conflitos difira entre si, perdura a extração da unidade associada à estrutura familiar, ao coletivo que partilha as suas inquietações e intimidades, despidas de artifícios, e que, apesar de tudo, não desagrega ou fragmenta.
Beatriz Fernandes