Por trás de cada entrevista há uma conversa e por trás de cada conversa há um histórico de marcações desta, e-mails trocados com assessores que planeiam diariamente o tetris de disponibilidade, fusos horários, tempo de duração. Chegar a Lukas Dhont, um ano depois do seu segundo filme ser galardoado com o Grand Prix no Festival de Cannes, foi, para todos os envolvidos, uma travessia. Mas feliz é a ocorrência. Tendo estreado pelo mundo fora – dos EUA ao Japão – é difícil chegar até ao jovem realizador que fez dois filmes sobre o crescer e como esse processo se contrai e retrai dentro de nós.
Mais do que nunca, ele é um porta-voz para a desconstrução dos rótulos que circundam o natural, real e activo e, trabalhando as turbulências internas e externas na gramática da intimidade, sintoniza o horror do corpo. Eis o terreno do que é carnudo, ainda rosa e vulnerável aos paradigmas sociais e da estandardização dos géneros associada a expectativas a que a anatomia dos corpos convida, já para não falar de um possível apagar das almas que se batalham com a “reordenação de corpos e vozes, uma redistribuição de espaços e gestos”, palavras de Paul B. Preciado no seu magnífico livro Dysphoria Mundi (2022). Primeiro veio Girl (Girl – O Sonho de Lara, 2018) sobre a bailarina transgénero Lara (Victor Polster) enquanto espera pela cirurgia que completará a sua viagem identitária. Quatro anos depois, Close (2022) pensa na amizade entre dois jovens rapazes, Léo (Eden Dambrine) e Rémi (Gustav De Waele), e o que acontece a esta ligação tão profunda quando esta se cruza com a sociedade. É este o cinema que trabalha os signos do lado de dentro da respiração durante a procura pelo tecido do ser.
Do outro lado do telemóvel, Lukas teria chegado a uma estação de comboios, e depois entrado num comboio, mostrado o seu bilhete ao revisor, e nunca parado de acomodar as minhas questões da forma generosa, quasi-romântica, dos criadores agradados por terem tocado no outro e, mesmo sem lhe ler ou saber a face, nutrir um desejo efervescente nessa entrega e partilha. Em longas, mas claras, respostas exploratórias, a eloquência emocional, teórica e cinéfila de Lukas Dhont ressoa. O cair das chamadas por esporádica falta de rede e o sangrar de conversas em flamengo que aconteciam ali perto, a lugares de distância dentro da mesma carruagem (descobertas quando passei o ficheiro por um software de transcrição que as desvendou na língua inglesa, como uma luz a iluminar o que foi escrito a caneta transparente) serviram de vírgula para o que vem a seguir e a seguir e a seguir: uma seta que se encaminha para o auscultar do cair das definições, nesta que é a labuta do feminismo interseccional em garantir que esse gesto assuma uma permanência.

Antes de mais, gostava de começar por perguntar em que formato ou sob que contornos é que Close te surgiu pela primeira vez? Foi uma cor, uma sequência? Uma ideia que tiveste? Uma intenção?
Essa é uma boa questão, porque eu diria que é sempre difícil de definir. Claro, há a minha memória do que aconteceu, mas por vezes a minha memória tornou-se ficção, certo? A tua pergunta depende um pouco da política da memória. O que gosto de lembrar enquanto a primeira coisa? A resposta que vou dar pode estar certa, pode estar errada, mas pelo menos é a resposta que criei para mim mesmo. Penso que a primeira coisa que me acordou para o filme foi o facto de que queria fazer algo sobre masculinidade. Para mim, Girl tinha-se centrado no feminino. E eu queria fazer uma peça complementar, um pouco como pimenta e sal. E sabia que precisava de ser sobre masculinidade. Tinha visto este campo de flores a ser ceifado, este tipo de brutalidade a interromper algo incrivelmente frágil. E foi essa a imagem-chave, a ideia do ceifar a ternura. Foi por aí que tudo começou.
Antes de querer ser realizador, queria ser bailarino. Daí que procure usar a câmara como um bailarino e focá-la em tudo aquilo que é linguagem corporal, a linguagem do rosto sustém para mim aquele desejo da dança.
Depois disso, regressei ao lugar onde cresci no campo flamengo. E voltei à minha escola primária. Na altura, não compreendi completamente porquê. Acho que foi sobretudo porque tinha viajado pelo mundo fora durante muito tempo e precisava de regressar ao lugar que se fazia sentir tão conhecido para mim e que era também um motor por trás do porquê de eu fazer o que faço agora, ou o porquê de querer falar sobre as coisas que eram difíceis para mim. E porque são difíceis, quero falar sobre elas. Penso que quando regressei ao recreio, regressei àquele momento no tempo quando comecei a criar esta dinâmica de afastar as pessoas ou manter as pessoas à distância, porque temia que a intimidade seria interpretada imediatamente enquanto algo significativo, para mim. Lembrava-me bem dessa dinâmica e o que significava estar naquele recreio. Depois disso, a grande primeira ideia foi a de criar tudo isto sobre dois rapazes, um que afasta o outro e com isso ceifa algo; destrói algo que ele não quer, de todo, que seja destruído. Esse foi o núcleo, o início.

Recentemente, estava a rever Ratcatcher (1999), primeiro filme de Lynne Ramsay…
Amo esse filme.
E encontrei Close nesse cinema da empatia que expõe este tipo de arena onde existimos. Aliás, ambos têm muito em comum. Ambos os rapazes deparam-se com a morte e estão, de uma certa forma, a definhar por dentro porque carregam consigo estes segredos que não conseguem libertar porque não aguentam dizê-los em voz alta, nem a si, nem aos outros. Ambos são donos destas caras que são essencialmente o terreno cinemático dos filmes. Tinhas de alguma forma a intenção de filmar o que uma cara nos consegue dizer?
Sim! Entendo o que dizes. Eu vi Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman, quando estava na escola de cinema. E é curioso porque foi um filme que rejeitei no início. Não vi nada nele. Aborrecia-me e eu rejeitei-o. Entretanto, comecei a sentir que os dias e as semanas e os meses que se seguiram começaram a desemaranhá-lo para mim no sentido em que eu vi esta imagem que tinha visto na realidade, esta mulher na cozinha ou esta mulher a realizar uma tarefa como a minha avó ou a minha mãe. E, no entanto, nunca tinha pensado nelas dessa forma. Nunca me tinha ocorrido que elas eram pessoas a quem tinha sido atribuído um lugar ou um papel ou uma performance. Isso é especialmente intrigante porque quando penso em Girl e quando penso em Close e sobre escrever os dois filmes, sinto que quero falar sobre estas personagens que são pressionadas num espaço que se torna performativo e que tentam, especialmente em Close, criar ou encontrar um lugar seguro. A questão central dos filmes acaba por ser sobre a impossibilidade de realizar essa acção. Por isso, quando escrevo, penso sempre a personagem no espaço e tento encontrar significado na cor, no lugar, em tudo que está presente na atmosfera ao invés de nas palavras faladas.
Ainda que talvez nem sempre tenha querido salientar isso, acredito que o filme é político no sentido em que está a tentar desvendar o estreito espaço que foi criado para os homens se comportarem, onde são apresentados, e com o qual têm que se identificar.
Para além disso, ambas as personagens, tanto em Girl como em Close, são personagens que implodem, personagens que sentem esta pressão dos códigos, das normas, dos rótulos. No momento em que aquela pressão se torna avassaladora, há todas estas coisas dentro delas, prestes a implodir. É exactamente por isso que amo filmar caras porque elas são a forma de mostrar isso. Já para não dizer que antes de querer ser realizador, queria ser bailarino. Daí que procure usar a câmara como um bailarino e focá-la em tudo aquilo que é linguagem corporal, a linguagem do rosto sustém para mim aquele desejo da dança.

É engraçado que fales do teu desejo pela dança e dessa vontade de acompanhar os corpos no filme. Tinha anotado uma questão que interpelava exactamente como os jovens actores no filme se movem enquanto representam como se ora respirassem, ora dançassem. Especialmente quando trabalhas no exterior. Corrige-me se estou errada, mas sinto que Girl era sobre o interior do corpo, o espelho e o quarto. E que Close é sobre o corpo em contacto com o exterior. Adoro como filmas os dois rapazes em andamento e em grande escala pelos campos de tulipas com a câmara sempre a tentar alcançá-los, porque tudo dentro deles é difícil de controlar e agarrar. Tal qual o sentimento de crescer. Falavas há pouco da fragilidade dessas flores…tinhas, desde logo, o interesse de realizar de um filme político?
Curioso que me digas isso. Penso que mudei um pouco enquanto realizei estes dois filmes. No início, estas histórias eram simplesmente muito íntimas e pessoais. Porém, tenho começado a olhar para elas, mais e mais, enquanto filmes políticos em comparação com o que acontecia antes ou até com aquilo que escrevi. Consigo ver agora que a dinâmica e a política estavam lá, porque aliás uma das primeiras cenas que passei para o papel foi a sequência inicial destes rapazes no escuro, dentro deste abrigo subterrâneo, este lugar que sempre foi habitado por homens e sempre os representou, ou melhor, representou a sua virilidade. Guerra, inimigos, soldados. É esse o cânone, é essa a linguagem, é esse o vocabulário que os jovens rapazes usam. Ver estes rapazes a correr para fora dessa escuridão e ir ao encontro do campo de flores, a esta outra possibilidade, só isso expressa toda a atitude política do filme. Ainda que talvez nem sempre tenha querido salientar isso, acredito que o filme é político no sentido em que está a tentar desvendar o estreito espaço que foi criado para os homens se comportarem, onde são apresentados, e com o qual têm que se identificar. É sobre como crescemos nesta sociedade onde tudo é árduo e brutal e o “poderoso” sufoca o delicado e o frágil e tem perturbado tantas das nossas vidas.
Tenho a certeza que depois de tantas entrevistas feitas pelo mundo fora alguém já te tenha mencionado bell hooks e o livro dela sobre masculinidade [The Will to Change: Men, Masculinity and Love, 2004]. Há uma citação em particular que trago comigo desde muito nova e que foi agora especialmente despoletada pelas tuas palavras. “Na cultura patriarcal, os homens não podem simplesmente ser quem são e prestar glória ao seu único enigma.” Estarão então os jovens rapazes a auto-trair-se, incapazes de se encontrarem? É por isso que Léo se torna interessado em hóquei? Porque precisa de uma armadura qualquer?
Este filme é especialmente sobre aquela idade quando queremos pertencer a muitos em vez de fazer parte de nós mesmos. Quando pisamos o recreio da escola, aprendemos que em todos os nossos corpos são impostas expectativas, limites, papéis. Acho que Léo é um desses personagens que quer desaparecer dentro desse grupo de rapazes em vez de tentar testar os limites. Sei que ele é alguém que mergulha numa espécie de performance, uma performance de uma armadura, uma performance de masculinidade, ou pelo menos de virilidade, algo que é demasiadas vezes confundido com masculinidade.
Quando falamos de outras gerações como, por exemplo, a geração do meu pai e depois quando ouço o meu pai falar sobre o pai dele, torna-se incrivelmente inteligível que é tão vital e importante redefinir o que significa ser um homem. Durante muito tempo só tem existido este espaço muito estreito para navegar no Eu e no Outro. Sinto que é frequentemente representado, e a violência está sempre tão presente quando filmamos homens, e não só, na relação com o Outro, mas mais do que tudo com o Eu. É engraçado, porque estou a começar um novo projecto e por causa dele vi muito recentemente La Grand illusion (A Grande Ilusão) de Jean Renoir e foi especialmente marcante porque este é um filme de 1937 e os homens naquele filme são tão ternos e doces e cuidam mesmo uns dos outros. São supostamente inimigos e estão ao mesmo tempo sempre a perguntar-se sobre o que o outro está a fazer. São mostrados numa espécie de companheirismo, uma união da qual somos tantas vezes privados. Por isso não é como se estas possibilidades ou estas imagens não estivessem lá. Elas sempre existiram. Nós é que não estivemos a focarmo-nos nelas tanto quanto devíamos. E nesse sentido relaciono-me muito com o trabalho de Renoir, que é profundamente humanista, pois no seu cerne está este conceito que ser terno e atencioso é possível quando se é homem, mulher ou quando não nos identificamos nem com um nem com outro género. Essencialmente, é sobre encontrar esse espaço onde isso não importa.

Obrigada por essas belíssimas palavras! Ainda hoje vou revê-lo.
É um filme tão deslumbrante. Há um homem que lava os pés de outro homem e lhe faz cócegas. Muito masculino, muito carinhoso. Há um soldado alemão constantemente a avisar um soldado francês, que está a tentar escapar, de que o vai matar. Mas ele di-lo umas sete vezes: ‘cuidado, vou-te matar’. É um jogo que brinca com o tipo de comportamento masculino que esperamos ver ou o que esperamos que seja mostrado. E é exactamente por isso que me diz tanto.
Essas texturas, a suavidade e a afabilidade, existem no tecido de Close como existem na cauda de movimento de Terrence Malick, por exemplo. Será um acaso ou Malick, e aquele seu comboio da realidade que nos embala, é também uma influência?
Temos tendência a subestimar o mundo emocional da infância. As crianças são representadas com frequência como activas e felizes e muito menos inteligentes emocionalmente do que são na realidade.
É verdade. Eu adoro o cinema de Terrence Malick! Lembro-me bem de ver The Tree of Life (A Árvore da Vida, 2011) no cinema. Por acaso tenho uma experiência muito pessoal com esse filme, porque na altura em que se estreou tinha 19 anos e vendia bilhetes num cinema. Foram muitos os que compraram bilhete e pouco tempo depois saíram da sala a exigir um reembolso porque sentiram que tinham sido aldrabados. ‘Nós queríamos ver um filme com o Brad Pitt e isto é um documentário sobre natureza.’, disseram. Quando o fui ver, lembro-me de ficar de tal forma submerso neste universo que era tanto macroscópico como microscópico, entrelaçado numa poética coreográfica. Lembro-me de me sentir livre em termos de possibilidade, estilo, poesia, coreografia, musicalidade; recordo-me bem quão vivo estava o filme! Senti-me vivo quando o vi. Não posso dizer o mesmo dos filmes que o seguiram. Tudo se tornou muito mecânico, preso dentro do mesmo mecanismo. Mas em The Tree of Life, a forma como aqueles rapazes se movimentam naquele espaço, a liberdade que têm…nós seguimo-los enquanto correm por este jardim, por este bairro nos subúrbios, e ali está a captura do momento. Tudo é pungente.

E como é que se consegue tal respiração? Close respira tão bem e é esse inspirar e expirar que eleva ainda mais a realidade. Ser uma criança e viver nesse silêncio. Consegues capturar isso tão bem. Essas ondas tonais, especialmente porque Close não é nem ficção nem documentário e consegue por essa razão fugir ao melodrama por completo. Estará tudo isto relacionado com o teu trabalho com os jovens actores?
No meu trabalho com actores, apercebi-me que é a combinação de controlo, com base no facto de que, claro, as coisas estão dispostas de uma determinada forma por uma razão e se bem que tentamos guiar e tentamos que flua ou tentamos dar forma, com o contributo deles. Um encontra-se sempre ao lado do outro. No momento em que algo começa a sair do enquadramento, e claro que nós tentamos mantê-lo dentro do enquadramento, é o momento em que tudo começa a viver por si só; é nessa direcção que caminho. Andei numa escola de cinema que conjugava documentário e ficção, por isso sempre estive atraído pela combinação.
O trabalho realizado com os jovens actores resulta de um processo longo de preparação. Ensaiámos durante seis meses. Eles só leram o argumento uma vez e nos momentos mais iniciais do nosso trabalho juntos. É a partir desta abordagem que tudo brota. Nunca mais voltamos ao argumento, aliás. Sei que o leram. Sei que eles sabem sobre o que é. Falamos sobre isso. Ao longo desses seis meses, coloco-lhes muitas questões e nunca lhes dou as minhas respostas. Tento sempre que seja sobre o ponto de interrogação do que sobre algo que existe definido, sólido e final. Passa a haver então uma liberdade de interpretação, e existe uma liberdade na qual eles se podem mexer. Por isso, quando estou no plateau, e quando colocamos algo que precisa de acontecer daquela forma…algumas cenas são incrivelmente coreografadas e são maioritariamente construídas em torno do movimento e das falas, seguir aquele movimento muito específico. Mas, depois, há outros momentos onde existe esta liberdade para os actores realmente serem generosos com o tempo que têm para, dessa forma, conseguirem criar o seu compasso e ritmos, a sua própria dinâmica. Deixo-os fazer esse trabalho sozinhos. Raramente lhes vou dizer: ‘agora preciso deste pulsar, agora preciso desta posição’. Tudo se resume a conceder-lhes essa abertura.
E por falar em liberdade e abertura, tenho que te perguntar, no que toca à infância, sentes que alguma vez conseguimos escapar a ela e ao que nela aconteceu, ou esses eventos permanecem sempre connosco, quer queiramos quer não?
Enquanto adulto, tenho total consciência de quão definitivo aqueles tenros anos são para nós. Quando somos jovens, passamos por coisas e por sentimentos, experienciamos o mundo, e é-nos dito para andar em frente; para avançarmos e continuarmos sem olharmos para trás. Só quando atingimos a idade adulta é que surge a consciência de quão modeladores foram aqueles anos, e quanta forma deram à pessoa que agora existe definida por eles. É muito interessante, porque me colocam muitas vezes essa pergunta, mas especialmente quando de mãos dadas com o trauma. ‘Achas que é possível superar o trauma da infância?’ E eu sei que as opiniões no que a isto diz respeito são muito diversas. Eu sou daqueles que acredita que conseguimos, talvez porque quero acreditar que é possível. Mesmo que sejam anos marcados e fortemente assinalados por sombras e escuridão, há encanto neles! Temos tendência a subestimar o mundo emocional da infância. As crianças são representadas com frequência como activas e felizes e muito menos inteligentes emocionalmente do que são na realidade. Por exemplo, quando trabalhei com o Eden e o Gustav, foi crucial nunca me colocar nesta posição de superioridade, de que eu sei mais. Tento sempre ser muito horizontal na relação com eles, no sentido em que considero os seus pontos de vista e as suas ideias que são, na maior parte das vezes, mais inteligentes e mais importantes do que as minhas. Quando ouvimos as crianças, realmente ouvimos o que têm a dizer sobre coisas que, enquanto adultos, perdemos, porque nos tornamos performers, porque aprendemos que certas coisas são esperadas e aceites de nós. Enquanto crianças somos intuitivos, sentimos coisas e dizemo-las. É muito importante nunca perdermos o rasto desse acontecer.


E agora, antes de irmos, a pergunta que se forma em mim sempre que revejo os teus filmes: poderá o cinema funcionar enquanto ponte para a mudança? Poderemos provocá-la com, e através, dele?
É uma boa questão, porque pessoalmente a função inicial que o cinema teve em mim foi a de escape. Era um lugar dentro do qual eu podia desaparecer. Vi muitos filmes, espectáculos, muitas grandes produções que tinham como objectivo entreter e funcionaram enquanto refúgio para mim, porque neles conseguia fugir à minha realidade para dentro de uma caixa escura e finalmente escapulir-me aos seus confrontos. Nesse aspecto, o cinema foi um agente de transformação. Depois disso, e na minha adolescência, vi filmes onde me revi. Vi filmes que abordavam temáticas dolorosas. Vi filmes que queriam desafiar a minha maneira de pensar e ver e foram esses filmes que me mudaram. Foi nessa altura que decidi que queria escrever sobre personagens que têm a capacidade de alterar a minha perspectiva. Mas eu acho que qualquer forma ou formato de cinema tem em si o poder da mudança. Até um filme como o Jurassic Park (Parque Jurássico, 1993), por exemplo, a pode provocar tendo em conta de que é um espaço para alguém que quer fugir para dentro dele por alguns instantes, e aí encontrar essa possibilidade ou aquele acto de desaparecimento, como por magia. Claro que depende daquilo que consideramos mudança ou como é que algo consegue ter um verdadeiro impacto numa vida. Para mim, isso é mesmo o mais importante. O cinema tem sempre um impacto. Ao fim e ao cabo, seja porque é um condutor de alegria, ou de escape ou até de confronto, é sempre um lugar onde nos encontramos a nós mesmos ou onde encontramos o outro. E todo esse leque de possibilidade representa o porquê do meu amor pelo cinema. Faz tantas coisas, às vezes ao mesmo tempo, às vezes separadamente. Amo essa esfera de acção, o fermentar da transformação.
Um agradecimento especial ao realizador Pedro Gonçalves Ribeiro, à Alexandra Fonseca e ao Francisco Adão (Leopardo Filmes). Sem eles, a entrevista não teria acontecido.