En deux ou trois ans je vais devenir une fille évidée d’elle-même, bouffée de romanesque dans un monde rétréci aux regards des autres.
Annie Ernaux, La femme gelée (1981).
Em 1968, Chantal Akerman, com apenas 18 anos, realiza e protagoniza a sua primeira curta-metragem, Saute ma ville. A ville do título é Bruxelas, cidade natal da cineasta, aqui reduzida à sua unidade elementar, um minúsculo apartamento que a jovem Akerman “vira de pantanas” com uma série de rituais burlescos e explosivos que se fazem eco do Maio de 68 vivido em França. Mais tarde, Bruxelas servirá de pano de fundo ao quotidiano alienante de Jeanne Dielman (1975), de palco da dança dos desejos que movem cidadãos anónimos, em Toute une nuit (1982), ou de montra dos amores e desamores cantarolados num centro comercial decrépito, em Golden Eighties (1986). Mesmo durante o seu período nova-iorquino, na década de 70, a cineasta continuará a receber notícias dessa cidade que a sua mãe, uma judia de origem polaca e sobrevivente de Auschwitz, escolheu como casa até ao fim dos seus dias (News from Home, 1977; No Home Movie, 2015).
Em 1993, Akerman, então com 43 anos, está de regresso à Bruxelas da sua juventude (depois de filmar a Europa de Leste após a queda do muro de Berlim, em D’Est) para realizar um dos telefilmes da mítica série Arte, Tous les garçons et les filles de leur âge. Baseado numa ideia original da produtora Chantal Poupaud, o projeto, transmitido na televisão francesa no último trimestre de 1994, reúne nove realizadores (entre os quais André Téchiné, Claire Denis, Olivier Assayas, Patricia Mazuy e Cédric Khan) em torno da temática da adolescência. Cada episódio, filmado em 16 mm e perfazendo cerca de uma hora, debruça-se sobre um momento particular das últimas décadas, apresenta uma seleção musical característica da época e inclui pelo menos uma cena numa festa. A Akerman coube o final dos anos 60, precisamente a altura em que a cineasta se despedia da sua adolescência, “saía do armário” e fazia a sua entrada radical na câmara escura do cinema (penso particularmente em La Chambre, 1972). Contudo, e muito embora aborde emoções e experiências próximas das então vividas por Akerman, Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60 à Bruxelles (Retrato de uma jovem do final dos anos 1960 em Bruxelas, 1993) não pretende ser uma obra autobiográfica. Nas palavras da cineasta, trata-se de um filme sobre “uma rapariga de 15 anos projetada no mercado do amor” e sobre “a vontade que ela tem que tudo expluda em seu redor”. Saute ma ville, disse ela.
Se o filme acaba por se aparentar a um autorretrato, é-o não só pela forma como o female gaze akermaniano se projeta no olhar da protagonista sobre o mundo que a rodeia, como também pelo modo como as movimentações das personagens refletem a dança interior da própria cineasta.
“Não sentes que algo está prestes a acontecer?”, pergunta a dada altura um jovem à rapariga que acabou de conhecer e que, nessa tarde de abril de 1968 (a data é claramente indicada no cartão de título), o acompanhará em deambulações pelas ruas de Bruxelas. Ela é Michèle (Circé Lethem), uma estudante de 15 anos fugida de casa e determinada a não voltar a pôr os pés no liceu; ele é Paul (Julien Rassam), um francês de 20 anos que desertou do exército. Duas almas solitárias que procuram o calor de um corpo qualquer no escuro de uma sala de cinema, e se encontram mutuamente; dois desertores que, unidos pelo acaso até ao amanhecer, declaram guerra contra as respetivas famílias, as instituições burguesas e todas as expectativas de progresso e de prosperidade que pesam sobre a sua geração.
Quão enganado estava o poeta quando escreveu que “Ninguém é sério aos 17 anos” (ou aos 15, ou aos 20)! E quão enganados estávamos nós quando, com 15 ou 20 anos, pensávamos que as decisões que então tomávamos eram definitivas e irremediáveis. Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60 à Bruxelles encarna as contradições de uma juventude já em marcha, mas ainda hesitante quanto ao rumo a tomar, oscilando entre a fruição do momento presente e a luta por um futuro melhor, uma juventude “quase” livre, “quase” militante – à semelhança de Michèle que, quando Paul lhe pergunta se já teve relações sexuais, responde com um “quase” envergonhado. Assim, no final de um dia de flâneries pela capital, passado a discutir sobre tudo e sobre nada, marcando as paragens obrigatórias de um périplo adolescente na época – cinema, café, livraria, disquaire –, Michèle acabará por ir para a cama com o jovem, menos por se sentir realmente atraída por ele do que para tentar “esconjurar” outros desejos mais prementes que não ousa ainda verbalizar – mas que a câmara de Akerman torna sensíveis pela forma como filma os olhares cintilantes que Michèle lança à sua melhor amiga.
Câmara quase sempre na mão, a cineasta acompanha a dupla de personagens pelas ruas movimentadas, como Jean-Luc Godard em À bout de souffle (O Acossado, 1960). Com efeito, a influência da Nouvelle Vague faz-se sentir desde a primeira cena, quando Michèle, qual Antoine Doinel em Les quatre cents coups (Os Quatrocentos Golpes, 1959), falsifica a assinatura do pai numa justificação de falta à escola, inventado em voz alta várias desculpas para a sua ausência, que vão de uma doença na família até à sua própria morte; para já não falar de um certo prazer da palavra que flui mais rápido que o pensamento, lembrando a loquacidade agridoce à la Éric Rohmer, que na mesma altura filma os seus Contes des quatre saisons (Contos das quatro estações, 1990-1998).
À primeira vista mais acessível e mais ligeira do que as suas realizações precedentes, Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60 à Bruxelles pode parecer uma obra menor, nos antípodas do cinema radical e conceptual que geralmente associamos ao início da carreira de Chantal Akerman nos anos 60-70. Ainda assim, os mais familiarizados com a diversidade da sua filmografia ao longo das décadas verão nele um magnífico espécime do universo formal e temático da cineasta. Captando a realidade e o “espírito do tempo” sem disfarçar os anacronismos que se imiscuem nos enquadramentos (nomeadamente a presença de automóveis, objetos e modas que remetem para os anos 90), a realização de Akerman faz-se invisível e submete-se aos prazeres do acaso e da improvisação. E se o filme acaba por se aparentar a um autorretrato, é-o não só pela forma como o female gaze akermaniano se projeta no olhar da protagonista sobre o mundo que a rodeia, como também pelo modo como as movimentações (e motivações) das personagens, coreografadas em exímios planos sequência, refletem a dança interior da própria cineasta, entre pulsões de vida e pulsões de morte. Por fim, é de salientar que o retrato desta juventude pré soixante-huitarde se faz acompanhar por uma banda sonora irresistível onde coexistem Suzanne, de Leonard Cohen, La Bamba, na versão de Trini Lopez, e It’s a Man’s Man’s Man’s World, de James Brown. Esta última canção conclui a tão esperada sequência na festa a que Michèle e a melhor amiga vão no final do dia: neste mundo que ainda pertence aos homens, a câmara de Akerman demora-se sobre o olhar de Michèle que, rodeada de casais enlaçados a dançarem um slow, renuncia uma vez mais à expressão dos seus desejos inconfessáveis.
Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60 à Bruxelles passa na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema no dia 3 de Junho, às 15h30, em double bill com Xavier [1, 2, 3, 4], de Manuel Mozos.