O apelo do horror é algo para lá do político. Poderá conter um olhar e uma apreciação política, mas o seu cinema recorre directamente à víscera, antes de chegar ao cérebro. E não temos política na víscera. Pode eventualmente filtrar-se do estômago para o cérebro, e dai podemos começar a falar de política. As pessoas tentam sempre responder ao grande número de filmes de terror com alguma questão politica, mais ou menos presente, com a incerteza dos tempos, a crise do petróleo ou a bomba atómica. Mas nenhum destes assuntos é assim tão relevante. É sempre para lá disso, quando se lida com algo mais primordial, como a desagregação do corpo e a morte.
David Cronenberg
Produzido pela Cinepix, Rabid (Coma Profundo, 1977) emparelha com Shivers (Os Parasitas da Morte, 1975), tal como sucedera com a dupla de filmes anteriores: Stereo (1969) e Crimes of the Future (1970). Poderemos ler a expansão da praga pela cidade como uma sequela propiciada pela saída dos zombies sexuais do Starliner, com que Cronenberg terminara Shivers, como uma narrativa disponível para uma continuação. A intencionalidade em assumir uma obra contínua é concretizada na primeira sequência na clínica. Joe Silver, que interpretara Rollo Linsky (um dos cientistas de Shivers), é aqui Murray Cypher, um dos sócios da clínica Keloid. Cypher formula, então, a ambição daquela instituição: a criação de um franchising de clínicas de cirurgia estética; sendo que relembramos que Crimes of the Future lidava com uma praga consequente à introdução de cosméticos experimentais, que conduziu à quase extinção da população de mulheres férteis.

É a colisão entre um veiculo pesado e a motorizada onde seguia Rose (Marilyn Chambers) e o namorado que proporcionará o encontro do corpo da protagonista com a clínica e os cientistas. Além de decisivo no desencadear do processo científico, a colisão automóvel tornar-se-á um elemento fertilizador, com as estradas como principal fluxo da contaminação. A caminho da cidade de Montreal, esse espaço fecundo surgirá em várias sequências, que olhadas agora, depois de Crash (1995), já evidenciavam um cuidado nas coreografias das colisões, algumas em cadeia, e apontavam à concisão e ao realismo, como o modo que o cineasta entendia mais poderoso de enquadrar esses eventos. Aliás, a mise en scène de Cronenberg, além de mais segura do que em Shivers, começava a ser pontuada por alguns dos seus enquadramentos reconhecíveis, como as panorâmicas de veículos em movimento num ligeiro contrapicado, ou pequenos planos-sequência elegantes de lenta aproximação, como quem afina uma lente que se quer apropriar cientificamente do objecto de estudo.
Na operação a Rose, os médicos liderados por Keloid, usam uma técnica arriscada de excertos de pele: os tecidos, removidos da paciente, sofrerão um tratamento para se tornarem “neutros”; um excerto retirado das costas deixa de ser pele das costas para ser apenas pele, a cor e a textura passarão a ser do lugar da parte do corpo onde serão implantados. A intervenção propõe, então, um cruzamento do orgânico com a tecnologia. Keloid enquanto executa a intervenção, explica a técnica e os procedimentos, como se fosse uma aula de ciência, algo recorrente em Cronenberg, não interessando tanto a plausibilidade, mas o tom em que são apresentados. O objectivo inovador é que esse tecido neutro tenha a capacidade de se adaptar a qualquer parte do corpo, como o tecido de um embrião humano. Cronenberg diz-nos que “desde o primeiro tratamento (esboço das cenas)” que Rabid “apontava para a história de uma mulher que é uma espécie de vampira dos tempos modernos, uma vampira biológica, ou seja, com nada de sobrenatural”. Cronenberg assume que pretendia “trazer o terror para o século XX”. Quando realizou Shivers, já existia Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968), que ajudara a introduzir novas “texturas na superfície do terror”, mas em grande medida o género “era ainda gótico e distante”, reflectia o passado. O filme quer abraçar a tecnologia à ciência, para transformar o humano. Após a operação, Keloid diz ao companheiro de Rose que está a monitorizar electronicamente a regeneração do tecido, como um pacto com as máquinas, que se conclui quando Chambers acorda do seu coma com um grito, como saída de um pesadelo, num corpo que vibra possuído pela ciência.

A primeira escolha de Cronenberg para protagonista foi Sissy Spacek, que ele apreciara muito em Badlands (Os Noivos Sangrentos, 1973) de Terrence Malick. Mas, os produtores disseram-lhe que “ela era pouco popular”, além de “ter sardas e um sotaque do Texas”. Ainda na produção de Rabid estreou Carrie (1976) de Brian de Palma: a popularidade da actriz ficou resolvida e o poster está em Rabid, quando Chambers se passeia a espalhar a doença pela cidade. Marilyn Chambers, que era uma das rainhas do cinema pornográfico, foi proposta pelo produtor Ivan Reiman, numa solução que em muito agradava à Cinepix, pois vi-a na escolha uma forma de exponenciar o seu público, conquistado nas produções soft-porn anteriores. Cronenberg diz que o “cartão de visita de Chambers”, que queria saltar do porno para o cinema convencional, era o da “cheerleader” que despacha sexualmente “oito homens em simultâneo”. Apesar do trabalho dela e da escolha se revelar fulcral para a importância do filme, Chambers acabou por “recuar para o porno”.
Um doente da clínica será a primeira vitima de Chambers. Ela começa por lhe morder o pescoço, para depois o abraçar, como o abraço de uma aranha, e o picar com algo – ele pergunta por entre o pânico se ela tem uma faca. A injecção será um falo, saído do corpo da mulher, uma espécie de seringa orgânica, que desponta no sovaco, com que penetra o seu parceiro. A rainha do porno subverte, então, o estatuto de “girl next door” e confronta o espectador e as suas convenções. O corpo de Chambers, que o público vira ser penetrada sucessivas vezes, é colocado no centro de uma transformação que permite que ela seja a penetradora, a invasora do corpo masculino. Se a popularização do cinema pornográfico encontrava na época leituras que conduziam a direcções opostas, entre a exploração do corpo feminino e o poder emancipador dessa exposição, Rabid esclarece estas relações do poder, que é entregue à protagonista, que se revelará uma rainha deste novo reino, uma super-criatura, como veremos. O espectador continua a ser provocado durante a cena e a câmara de Cronenberg aproxima-se dos corpos e dos rostos que gemem, não sabemos se de dor, se de prazer, numa cópula peculiar. O sangue escorre pelo braço, junto ao cotovelo de Chambers, que exibe um esgar de satisfação, saciada do apetite pelo sangue, pelo seu transbordo. No fim, ela acaricia-lhe o cabelo, como quando um casal chega ao orgasmo, ou um predador contém a sua presa, antes de a devorar.

Rabid teve boas receitas na bilheteira, mas enfrentou, como confirma o cineasta, “algumas agitações feministas, que o acusavam de enquadrar a sexualidade feminina como predadora”, sendo que os mesmos movimentos culparam Shivers de “mostrar as mulheres com uma sexualidade passiva”. No início de um percurso em que terá de lidar frequentemente com movimentos censórios, Cronenberg diz ter percebido que “não era possível vencer estas disputas”: “ou todas as mulheres do filme correspondem ao caderno de encargos do feminismo ou não há escapatória”. Atendendo a que os filmes de terror lidam com “assuntos primários” – a sexualidade e a morte – , “caem automaticamente na arena feminista”. No entanto, ressalva que naturalmente o filme tem contornos “pontualmente sórdidos”, mas que se distribuem por homens, mulheres, homossexuais e até crianças. Também confirma que um dos recursos do género de terror que ele incorporou é a repulsa. Assume que certas sequências que lhe apontam “pretendem ser repulsivas, mas há também uma beleza nelas, uma verdadeira beleza, embora por vezes seja difícil comunicar isso”.
A princípio a propagação da praga faz-se através do sexo conduzido por Chambers, numa clara afinidade com Shivers, embora aqui com a particularidade dos encontros sexuais evoluírem bruscamente de uma pequena sedução para uma penetração súbita. Mas, ainda num dos espaços predilectos da obra de Cronenberg, a instituição médica, veremos Cronenberg a boicotar o género de terror e as suas regras (na paródia associada ao uso de pequenos elementos musicais, por exemplo), enquanto defrauda a exploitation que se antecipava na presença do corpo de Marilyn Chambers. Na sequência do jacúzi, a câmara de Cronenberg insinua o corpo de Chambers, mas o jogo erótico com a outra mulher é muito rápido e um abraço pela cintura conduz a um clímax repentino, numa evidente contenção do erotismo hospitalar, que passa, então, a ser mais anunciado que concretizado. A praga, que muitos viram como uma premonição da SIDA, como sucederá com The Fly (A Mosca, 1986), revela outro tipo de interesses para o cineasta, mais preocupado com o terror da víscera e o derrube da norma com que se exibe a sexualidade: o apetite pelo sangue que resultou de um erro da ciência libertado em laboratório, conduz a uma espécie de peste negra, disseminada por uma das protagonistas da sujidade do porno, como uma doença venérea que se espalha através da prostituição e de comportamentos que a sociedade entende como promíscuos. Numa oposição a esta visão asséptica, Cronenberg proporciona a Chambers aptidões que estão excluídas da restante população. Os ataques produzidos pelos contaminados deixam de ter o contexto sexual associado, para garantir a rápida disseminação da doença. A única que dispõe da abordagem sexual é o seu portador primordial: Marilyn Chambers.

Segundo Chris Rodley, a tendência de Cronenberg “cortar até ao osso” no processo de montagem “produziu alguma confusão nos espectadores de Rabid”, que se questionavam como é que a protagonista “desenvolveu aquele pénis sugador na axila”. Um pequeno diálogo entre o cirurgião plástico Dan Keloid e a paciente fora removido porque o cineasta sentiu que se quebrava a tensão da cena. Ali, Keloid explicava que o que se pretendia com aquele novo tecido era “fazer crescer um novo intestino que ela precisava para sobreviver depois do acidente de motorizada”. Mas, o próprio tecido “decidira crescer com outro propósito”, como um cancro criativo. Apesar do sucesso de Rabid e de o filme o ter estabelecido como um dos realizadores mais populares dentro do género do terror, Cronenberg insistia que “não era o género de terror que ele buscava”, apenas aproveitou a “bênção” dessa conjugação de mercados, que incluía também o thriller e a ficção científica. Progressivamente, os seus filmes futuros passarão a estar apenas remotamente conectados com o género de terror, e Cronenberg assumirá a ambição de que os seus filmes deveriam formar o “seu próprio género ou subgénero”. Mas o cineasta defende a herança de uma boa parte do cinema de terror, distanciando-se da generalização que atribui a este género apenas emoções “juvenis e idiotas”. Os filmes de terror podem ser “uma arte, que nos confronta com as aspectos da nossa vida”. Ao contrário da categorização (de género) “necessária para vender filmes”, as produções dele “não precisam de categorização para funcionarem”. Considera que o grande mérito da sua obra é a “endurance”, em mais uma afinidade com o trabalho de Burroughs, apenas reconhecido em Naked Lunch (1959), sendo que grande parte do seu trabalho anterior era classificado de “sensacionalista, nojento e perverso”. Também os seus filmes não precisaram da “crítica e dos seus favores”, a sua obra perdurou em grande medida porque os “aficionados do cinema de terror estavam disponíveis para os ver” e perceberam que estavam a assistir a “algo de único”. O reconhecimento da crítica foi uma “questão de tempo”, de releitura feita em cima da consistência do percurso.


O cientista Linsky expunha que um dos objectivos do projecto científico de Shivers era o reencontro com o nosso organismo e a devolução do instinto animal. Numa cena peculiar e sem reincidência, Chambers procura abrigo do frio num estábulo. Parecendo evidenciar que já pertence a uma extirpe supra-humana e pan-sexual, a protagonista junta-se a uma vaca, para pouco depois a câmara nos mostrar um piscar de olho do animal, na reacção àquele abraço invulgar. Pouco depois, Chambers voltará à clinica, para ser observada por Keloid, o médico que conduzira a experiência científica. Keloid examina a zona no braço, debaixo do sovaco de Chambers. É como uma fenda, uma vagina ou um ânus, que ele aborda com os dedos. Mas há algo que se move no interior do organismo, como um falo invertido. Ela diz que se sente forte, muito forte e rejeita o soro, pois dá-lhe náuseas. A mulher investe num ataque súbito, o falo cor de sangue mostra-se e penetra o médico com uma pequena seringa na extremidade, enquanto Chambers lhe crava os dentes no pescoço. Depois, um close-up do rosto em êxtase da predadora, seguido de uma candura. Antes do ataque, enquanto lacrimejava, Chambers ladeada pelo médico dizia sentir-se um monstro. Nesse paralelo com a ambição de renovar um instinto primordial, Cronenberg assume a herança de uma literatura fundada na ciência e a protagonista é apresentada como a criatura de Keloid, que desempenha uma espécie de Dr. Frankenstein, figura tutelar que voltará à obra do cineasta canadiano. Como confirma Chris Rodley, Cronenberg associou-se a essa ideia de “identificação do espectador com o Monstro”, como forma de acentuar a função “disruptiva” e a “tendência subversiva” do género de terror. Essas réplicas de Frankenstein encarnaram “os nossos mais inesperados e reprimidos desejos”, transfigurados no “feio através do aprisionamento do inconsciente”. Assumindo, então, a herança do terror gótico de Mary Shelley, esses personagens funcionavam como um núcleo atractor da compaixão, o que resultava num “pesar ambivalente” na aceitação do “público da sua necessária destruição, para que uma ordem repressiva pudesse ser restabelecida”. Enquanto a epidemia se propaga, as reacções dos cientistas, em especial de Keloid, assumem o erro: a experiência não evoluiu de acordo com a motivação e a expectativa da ciência. Mas, são narrativas que concordam que não existe avanço sem experimentação e, por isso, estes erros e as suas consequências são danos colaterais; é necessário continuar a fazer evoluir e a metamorfosear os nossos corpos, a olhar a doença como algo benigno, transformador, ao invés de um processo que produz o definhamento e a morte. Uma metáfora, então, para a doença, como algo que liberta o homem, o seu corpo e as suas entranhas dos constrangimentos do passado.
Enquanto desfia o eixo da narrativa, Cronenberg pontua o filme com pequenas cenas, tão passageiras, quanto significativas. Uma jovem mulher volta a dar entrada na clínica de Keloid: o pai acha que o novo nariz não está assim tão diferente do anterior e por isso quer que ela volte a ser operada; ela terá dito ao pai que ficou parecido com o dele, mas ele insiste que é por isso mesmo que ela deve alterá-lo. Enquanto relata isto à enfermeira, a câmara de Cronenberg mostra-nos o livro nas mãos da mulher – “The Life and Death of Sigmund Freud”, para depois ela rematar: assusta-me o que quererá dizer. A paródia que encharcava Shivers é, então, substituída por curtas sequências como esta, embora neste caso a intencionalidade da cena permita assumir Cronenberg como um herdeiro de Freud e da psicanálise como um momento decisivo para questionar a relação do nosso mundo interior com a nossa realidade e contexto, também considerando as teorias de Freud tão importantes para a arte como foram para a ciência médica, como se constata pela ascendência sobre o movimento surrealista.

Enquanto observamos a rainha do porno a sair para a noite para espalhar a praga, o delegado de saúde procura enquadrá-la: o período de incubação da doença é curto (6 a 8 horas), como se o portador saísse de um sono ou de um sonho de que não se recorda; tremuras, espuma pela boca, agressividade, violência e vontade de morder, depois o coma e a morte. Chambers observa então uma montra de uma sala de cinema, que exibe cartazes de uma sessão dupla de filmes pornográficos: Party Swappers / Models for Pleasure. Com o espectador a cogitar se seriam filmes protagonizados por Marilyn Chambers, de dentro da sala ouvimos: “os meus sonhos são a realidade e a realidade é como um sonho”; como se o surrealismo e a psicanálise tivessem tomado o universo da pornografia. Abordada por um estranho, ao invés de uma postura passiva, é Chambers quem encoraja a investida e circunscreve o Cinema como um espaço contaminado, a sala de cinema como lugar de contaminação e de emancipação do corpo feminino. A fenda de Chambers abrir-se-á para um falo com uma agulha na ponta, como um instrumento híbrido com uma extremidade cirúrgica, misto de órgão e tecnologia. Com a picada no homem, chega-nos um diálogo do filme: “Educam-nos com hipocrisia. Longe da verdade. Afinal de contas somos o que somos. Não devemos esconder isso”.
Pacificada, Chambers deambula pela noite, exibindo-se como um belo agente de contaminação, em oposição aos zombies irados, de que se faz a população contaminada. Enquanto os outros contaminados tenderão a espalhar a doença através de mordidelas, sem distinguir a presa, Chambers é uma personagem exclusiva, a única que escolhe os parceiros e ataca em âmbito sexual, recorrendo a uma espécie de de inocência primordial que usa na atracção e no jogo erótico com as presas, como uma Eva que derrama o pecado original. Chambers, no reencontro com o namorado, diz que não tem culpa e poupa-o. O filme diverte-se a exibir a rainha do porno como uma super-criatura que olha altiva para a hipocrisia de uma sociedade que a reduz a uma representante da nossa faceta obscura e sórdida, associada ao consumo do porno, o que consolida Rabid como um objecto moral. A transformação física e psicológica de Chambers, que será um dos temas transversais à obra de Cronenberg, encontrará um curioso eco no filme Species (Espécie mortal, 1995). Depois de receberem do espaço extraterrestre uma sequência de DNA, um grupo de cientistas cria um ser alienígena, que aparenta ser uma criança, mas que se desenvolve rapidamente. Quando os cientistas recebem uma ordem para matar a criança, ela foge do laboratório, transforma-se numa bela mulher, interpretada por Natasha Henstridge, que deseja acasalar rapidamente, e por isso ataca sexualmente as suas presas, para proliferar a sua espécie.

Cronenberg diz que se recorda com insistência de uma citação do latim, de algo próximo de “o medo da morte perturba-me”. Embora a morte seja a base do género de terror, para ele “a morte é uma coisa muito específica, muito física e por isso se tornou cartesiano”. Descartes viveu fascinado “pelo cisma entre a mente e o corpo”, nas relações entre os dois. A designação “horror biológico” com que o seu trabalho é muitas vezes definido, concretiza de facto “a consciência do corpo” que encontramos nos seus filmes. Essa “existência física de um organismo vivo” distancia a sua obra de outros filmes de terror ou de ficção científica, que se dividem pela tecnologia e o sobrenatural e são, assim, “desencarnados”. O cineasta nunca foi religioso “no sentido de sentir a existência de Deus”, de que haveria uma “estrutura externa, universal e cósmica, que se tinha imposto aos seres humanos”. Sentiu que somos nós quem “criamos o nosso próprio universo”, portanto o que está “errado também vem de nós”. Apesar de não termos o controlo de todas as regras e do acidente ser uma variável com peso decisivo, “a sua visão do mundo é centrada no humano, em oposição à que é centrada fora do humano”. Por isso, se estamos “a lidar com o terror”, deve ser algo interior ao humano, “algo que vem de dentro do nosso organismo”. Jaws (Tubarão, 1975), de Spielberg, “parece assustar muita gente”. No entanto, a ideia de que “carregamos as sementes da nossa própria destruição”, e que é algo que pode “entrar em erupção a qualquer momento, é muito mais assustador”: “não há nenhuma defesa contra isso”, “nenhuma escapatória”.
A epidemia está, então, a desenvolver-se dentro dos indivíduos, nas suas entranhas e como resposta Rabid mostra uma sociedade totalitária. As entidades tentam conter a praga com uma lei marcial e assumem como estratégia matar a tiro os contaminados, procurando vacinar os restantes, identificados com um cartão e revistados à entrada dos locais públicos. A cidade espalha snipers que eliminam os contaminados à distância, um regime despótico, mas que, no entanto, nada pode na expansão da doença, de uma epidemia orgânica, que circula dentro do organismo humano. Depois da rua e dos cinemas, o centro comercial será o último lugar que o filme privilegia como palco da doença. Cronenberg mais uma vez propõe uma visão alternativa à de George Romero e do seu Dawn of the Dead (Zombie – A Maldição dos Mortos-Vivos, 1978), ao colocar a acção numa das catedrais de consumo, subvertendo a época de natal e os valores mais elevados da humanidade, com uma caça ao homem em que nem o pai natal é poupado. Cronenberg assinala que lhe apontam que a “sua visão de agitação social” apenas conduz a “contágio e morte” sem “oferecerem alternativas políticas”. Essa crítica, continua o cineasta, assume preferir “as revoluções de George Romero” e o seu “comentário político a uma sociedade de consumo tumultuosa”. Esse “vislumbre de esperança política”, traduzido no subtexto das obras de Romero, em que “a sociedade é forçada a encontrar alternativas para se reestruturar e organizar depois do apocalipse zombie”, era encarada por essa crítica como um olhar mais “subversivo às estruturas existentes” e ainda assim com uma saída, proposta por um dos cineastas “progressistas” dentro do género de terror. Pelo contrário, Cronenberg, paradoxalmente, era conotado como um representante das “tendências reacionárias”.

A tentativa de definir politicamente Cronenberg deriva de ele não acreditar simplesmente no derrube per si das estruturas sociais, pois é preciso assumir que “muitas vezes nada de positivo chega para substituir o que foi destruído”. O cineasta intitula de “tolas” as pessoas que invocam a revolução sem antecipar qualquer preocupação com o que dai advém, até porque os manuais de História materializam que com a “revolução vem a doença e a angústia, a dor e a morte”. Robin Wood foi um dos críticos de cinema que classificou o trabalho de Cronenberg de reacionário, devido à “afeição pelo status quo da classe média” e “pela aparente dificuldade em abdicar disso”. Nestas abordagens e noutras é desconcertante esta parte da crítica reduzir a complexidade filosófica do trabalho do cineasta e não lhe identificar uma “ambivalência” com que o próprio Cronenberg contava. Ele confirma não estar “preparado para abdicar da classe média americana”, por encontrar aí “coisas valiosas”. Nesse sentido, não se considera um “revolucionário”, pois acredita que “nem tudo deve ser desmantelado, destruído e virado do avesso”, para se “recomeçar com um rabisco”. Portanto, se isso o torna “um reaccionário, assume a culpa”. O cineasta invoca Marshall McLuhan e as suas obras determinantes em volta dos media, dos media como extensões do homem e do media como mensagem, para argumentar que “não acredita que alguém nos controla”, mas que é forçoso “entendermos os media”, para evitar uma “antropomorfização” desse instrumento e corrermos o risco de sermos subjugados. Os media “não têm um cérebro”, são “apenas tecnologia”, mas com a intensidade do seu uso poderemos aproximar-nos de uma progressiva “presença e proximidade do caos”, de uma desordem que ele diz estar muito consciente. No entanto, reafirma que “estamos condenados a ser livres” e por isso é que devemos ser “inventivos” e até “extremos”, devemos tomar essa “estrada perigosa”, explorar os perigos, de forma a procurar o “controlo do mundo”, da “realidade”, através da transformação, que deve partir das entranhas e não apenas cifrada por um discurso político.
Num crescendo de metáforas para repressões antigas, da tentativa reiterada das sociedades e das instituições controlarem as nossas motivações e a nossa natureza, Cronenberg guarda para o epílogo de Rabid talvez a imagem mais poderosa: o corpo inanimado da rainha do porno, de Marilyn Chambers, lançado no lixo.