Richard Franklin era um grande admirador de Alfred Hitchcock. Viu Psycho (Psico, 1960) aos 12 anos de idade, algo que recorda como marcante para a decisão de se dedicar ao cinema, e mais tarde, viria a ser convidado pelo mestre do suspense para trabalhar na rodagem de Topaz (Topázio,1969). Quando ainda estava a trabalhar em Patrick (1978), o seu filme anterior, o australiano passou ao argumentista Everett De Roche uma cópia do argumento de Rear Window (Janela Indiscreta, 1954) que, ao lê-lo, sugeriu que as longas estradas australianas poderiam ser um cenário interessante para um thriller semelhante. Assim nasceu a ideia para este Roadgames (O Asfalto do Medo, 1981).
Se se costuma dizer que nos road movies as viagens são as confirmações exteriores da travessia interior das suas personagens, aqui tudo parece avançar sem sair do mesmo sítio.
As semelhanças saltam à vista. Como L.B. Jefferies (James Stewart), o nosso protagonista, Pat Quid (Stacy Keach), um camionista que transporta carne de porco, pensa saber quem é o assassino que anda a matar mulheres que pedem boleia na estrada. No início do filme, nós vemos uma dessas mulheres ser morta por um homem de luvas usando um fio de guitarra (a cena podia pertencer a um giallo). E, rapidamente, Quid faz a ligação do assassino a uma carrinha verde (que este vê chegar ao motel onde a morte se dará), carripana que perseguirá até à exaustão por essas estradas australianas. Digo perseguirá, mas não é toda a verdade. Ao contrário de um filme como Duel (Duelo, 1971) de Steven Spielberg onde nos fica a ideia de perseguição (com papéis invertidos, aí o camionista é o mau), Roadgames é, como o nome indica, uma espécie de jogos de estrada em que o eventual assassino ora surge ora desaparece, fazendo dessa casualidade uma dúvida sobre as certezas do nosso herói.
Mas se dizia que as semelhanças saltam à vista é porque Franklin-De Roche transformaram a perna partida (a imobilidade) da personagem de James Stewart num espaço volante mas estanque da personagem de Stacy Keach – a parte da frente de um camião. Se se costuma dizer que nos road movies as viagens são as confirmações exteriores da travessia interior das suas personagens, aqui tudo parece avançar sem sair do mesmo sítio. Num dos planos iniciais, aliás, Quid fala com alguém sobre ir dormir uma última noite no motel e sobre o jantar. E a câmara depois revela que não está ninguém no lugar do pendura. Por breves instantes pensamos que ele afinal fala sozinho, mas eis senão quando um cão (aliás, um dingo) entra no enquadramento. Durante grande parte do filme Boswell, o canídeo selvagem, será a Grace Kelly de Quid, ao qual se juntará mais tarde Jamie Lee Curtis que aquele tratará por Hitch. Hitch de hitchhiker e, claro, de Hitchcock.
Desta forma, neste ozploitation road movie a parte da frente do dito camião transforma-se num palco, onde representa um homem incerto das suas certezas, presos nas suas divagações, entre os poemas e os jogos para passar o tempo. Essa qualidade literária está presente não apenas na poesia (de Robert Frost ou Emile Bronté) na boca de um autodidacta que diz não ser um camionista (apesar de conduzir um camião), mas também nos detalhes de escrita ao longo do filme (“I’m carrying meat, mate” / “piggies to Perth” e outros trocadilhos). A escrita confere uma espessura ao protagonista que nos faz afastar do imaginário de filmes como The Hitcher (1986) com Rutger Hauer e entrar no romantismo fatalista de Badlands (Os Noivos Sangrentos 1973), por exemplo.
Numa das cenas, Quid entra num roadhouse e usa um telefone público para comunicar com a polícia e dizer-lhes que talvez tenha informações sobre o assassino à solta. Enquanto ouvimos a conversa, Richard Franklin decide lançar a sua câmara num travelling de 360º sobre o espaço. Nessa “pequena viagem” vemos as pinturas na parede (com soldados do exército a disparar sobre os povos indígenas ou escravos acorrentados), flippers alusivos à Playboy, jukeboxes, esqueletos de animais e alguns exemplares da “fauna local” – homens a jogar snooker a dinheiro, um par de cowboys garridos junto às suas armas, um mecânico andrajoso a abastecer-se de soda e chocolate, um motard todo vestido de encarnado, um casal de meia idade numa mesa a terminar o lanche… É um vislumbre de toda uma galeria de personagens bizarras que atravessará o filme – talvez a mais estranha seja a que no genérico surge como Captain Careful, um homem que prefere que o barco que levava atrelado seja destruído a deixar-se ultrapassar pelo camião do nosso protagonista. Não deixa assim de se colocar como verosímil a hipótese de tal bizarria ser, como a certeza de Quid, um produto de uma certa alucinação causada pela solidão e pelo cansaço. Que carne carrega afinal o nosso herói, além da sua? Poderá mesmo dar-se o caso de ser ele o carrasco que insiste em levar-nos numa espiral de paranóia?
Jamie Lee Curtis, que havia feito não há muito tempo Halloween (1978) ou The Fog (O Nevoeiro,1981), chega a Roadgames como “caução” de filme de terror e suspense. Mas Roadgames procura matizar todas estas abordagens: a perseguição, o estatuto real ou ficcional do criminoso, o olhar irónico sobre as personagens do interior australiano, ou o ambiente de ligação humana e amorosa de Quid com Hitch. Tantas as possibilidades para este filme de viagem que, para nosso prazer e cansaço interior, se ramifica por atalhos e caminhos secundários.