Perhaps I shouldn’t speak. I might astound you. Perhaps you believe us incapable of such moments. Yes, I’m sure you do. Have you ever read our poetry, Miss Davis? Do you understand our music? Have you ever seen our paintings of women walking among fruit trees? Where the fruit trees look like women and the women look like fruit trees? There has never been a people more purely artist, and therefore, more purely lover, than the Chinese.
Há filmes que nascem com a vocação para incomodar um pouco toda a gente. Assim aconteceu com Le corbeau (O Corvo, 1943), de Henri-Georges Clouzot, que conseguiu ser simultaneamente atacado pelo regime de Vichy, pela resistência francesa e pela Igreja Católica. Mesmo depois da Libertação, a sua exibição continuava a ser proibida, Clouzot ficaria 3 anos sem fazer filmes e até o actor Pierre Fresnay acabaria detido. Na verdade, se um filme for verdadeiramente bom, irá sempre incomodar ou, pelo menos, perturbar alguém.
The Bitter Tea of General Yen (A Grande Muralha, 1933) não é isento de problemas, numa amálgama confusa de questões que bem se ilustra nos infortúnios que assombram o filme, entre as queimaduras sofridas nos olhos por Nils Asther, depois de lhe terem aparado as pestanas para lhe conferir um ar mais “oriental”, até à perna partida de Walter Connolly, num acidente ocorrido logo no início das filmagens, à má recepção junto da crítica e do público, à proibição de exibição no mercado inglês ou a grande desilusão de Frank Capra que achava ser este o filme “artístico” com que ia finalmente conquistar a Academia. Mas, olhando bem para The Bitter Tea of General Yen, rapidamente se compreenderá que aqui se trata justamente de transcender tudo isso, de obedecer a algo mais misterioso e poderoso do que estas desconformidades. Os problemas do filme resolvem-se no filme.
Se a sequência porventura mais famosa de The Bitter Tea of General Yen é a do sonho de Megan Davis (Barbara Stanwyck), em bom rigor todo o filme parece ser feito dessa matéria onírica, passando por silêncios, sugestões e gestos mínimos que pertencem ao domínio do sonho. Repare-se, aliás, como boa parte do tempo Megan está de olhos fechados, dormindo, próxima de uma cama ou numa cama, entre pijamas de seda, kimonos e lençóis, sob uma névoa permanente. Terá Megan alguma vez estado realmente acordada? Sim, esteve, naquela mesma sequência do sonho, quando toda ela desperta para o desejo sexual, para aquilo que acontece ao nível do inconsciente, parte da “conversão da missionária” a que se compromete o General Yen (Nils Asther). Essa revelação velada é feita pela remoção (literal) de uma máscara, o General Yen que avança para Megan, que a toma indefesa, para ser afastado por um salvador em roupas ocidentais, que a toma indefesa também ele, mas apenas porque ela quer ser tomada por ele e pelo desejo, assim sucumbindo ao homem da máscara que é, afinal, o próprio General Yen. O salvador Yen envolve Megan num beijo de 360 graus na perspectiva oposta do beijo de Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), a câmara repousada inteiramente no rosto de Megan, como tantas vezes acontece durante o filme, ela fitando-nos (fitando-se?) directamente, enchendo o plano.
A verdadeira missão de Megan é descobrir o mistério que é a China descobrindo o mistério que é o General Yen. E, nessa descoberta, na transposição dessa grande muralha, descobrir-se a si própria.
A sedução desenrola-se sempre entre o sonho e o tempo acordado, desde logo na cena que decorre na carruagem do comboio, mais do que numa mera troca de olhares, num “caught in the act” de vários olhares – Mah-Li (Toshia Mori) e o General que trocam um olhar cúmplice, Megan que surpreende o olhar do General que lhe rasga a intimidade, instintivamente puxando mais a coberta para ocultar o corpo (as transparências do vestido, em lugar de velar os ombros passam a funcionar mais como sugestão do que não é mostrado), e Mah-Li que surpreende igualmente esse olhar, imediatamente percebendo os intentos de Yen face a Megan. A imagem seguinte é a do comboio em marcha a todo o vapor, e quem tenha visto suficientes vezes North by Northwest (Intriga Internacional, 1959) saberá bem o que isso quer dizer.
O despertar para os sentidos que Megan experiencia é mais do que um inebriamento de Oolong, Pu-erh ou Lapsang. É o toucador que Mah-Li abre na sua frente, preenchido de preciosidades, frascos de perfume e boiões de pó-de-arroz, são os eflúvios que daí dimanam. O exotismo/erotismo do filme de Capra joga no mesmo campo do Black Narcissus (Quando os Sinos Dobram, 1947), de Michael Powell e Emeric Pressburger, com a sugestão quase palpável de perfumes, sons, a opulência dos tecidos, o toque do jade, as cores (ainda que aqui por trás de uma neblina de preto e branco). Menos Narcisse Noir de Caron e mais Shanghai de Lenthéric (o perfume pelo qual Anna May Wong deu a cara, ela que teria sido a primeira escolha para desempenhar o papel de Mah-Li).
“I am converting a missionary”. A posição de Megan Davis na filmografia de Frank Capra não deixa de ser curiosa, fazendo as vezes do ingénuo bem-intencionado que acaba por ser abruptamente sujeito a uma educação cínico-sentimental, a personagem masculina que conhecemos com o rosto de James Stewart ou Gary Cooper. As personagens femininas de filmes como Platinum Blonde (Loira Platinada, 1931), Mr. Deeds Goes to Town (Doido com Juízo, 1936), Mr. Smith Goes to Washington (Peço a Palavra, 1939), ou Meet John Doe (Um João Ninguém, 1941), já viram o suficiente do mundo para se terem tornado desencantadas, têm o sentido prático da rapariga sem nome de Veronica Lake em Sullivan’s Travels (A Quimera do Riso, 1941), cansada de todos os Messrs. Smearcase que Hollywood colocou no seu caminho, pronta para declarar derrota e voltar à terra Natal. O pragmático desencantado de The Bitter Tea of General Yen é, afinal, Jones (Walter Connolly), apenas interessado nos proventos que o caos da guerra civil possa proporcionar-lhe, mas ainda assim reservando o seu momento final de admiração pelo homem que Yen foi, pelo seu carácter de jogador para quem era impossível perder, mas que perdeu tudo, ou talvez não… Talvez seja agora uma das cerejeiras que tanto amava ou o vento que sopra no cabelo de Megan.
A Megan que regressar de Xangai não será certamente a mesma mulher, sendo que a sua transformação não acontece apenas ao nível do seu despertar sexual, mas também de uma aprendizagem dura e rápida dos “ways of the world”. E se Capra punha indubitavelmente todas as fichas nos seus Mr. Deeds e Mr. Smith, o que se passa em The Bitter Tea of General Yen é muito diferente, nele se encontrando uma perspectiva distinta do “bom americano” que sempre triunfará no fim, transformando o mundo à sua imagem. Megan acredita ser capaz de ter este poder transformador, mas afinal será ela que acaba transformada. Ela deixa-se iludir pelos momentos de vulnerabilidade de Mah-Li (as jóias que ela confia a Megan para que as envie aos seus pais), mas Mah-Li não resiste à tentação de voltar a ser criança, de gozar a parca liberdade que lhe é permitida, traindo e mentindo, provocando a absoluta ruína do General Yen. Capra acaba por dinamitar a personagem de que é autor, o “bom americano” dos seus filmes de glória, já que aqui o missionário é ridicularizado porque acredita no triunfo da bondade. A ridicularização do missionário tem lugar desde logo, de modo explícito, no salvo-conduto que o General Yen assina para Strike (Gavin Gordon), onde se lê que ele é um tolo por preferir a guerra civil aos braços da noiva (um contraponto curioso, tendo em conta a associação que o General Yen faz entre amor e guerra, como veremos mais adiante), mas a crítica maior é reservada para Megan, pelo seu preconceito rapidamente exposto, levando o General a afirmar que ela é uma verdadeira missionária.
No enredo deste filme-narcótico, Megan vai sendo seduzida (mais lentamente a um nível consciente) por tudo aquilo que é o oposto da sua previsível vida de missionária – o ambiente voluptuoso, o toque das delicadas peças de jade, o vestido de lantejoulas que ela veste para seduzir o General, para logo de seguida o remover, num momento de arrependimento, ela própria seduzida contra a sua vontade. O General Yen declara que a conquista de uma mulher não é muito diferente da conquista de uma província, sendo possível adivinhar que ele empresta a mesma dose de inteligência, paciência e sentido de jogo a uma e a outra guerra. O que nos leva também a ponderar que tipo de general será Yen, com o seu apetite por cerejeiras ao luar, mas simultaneamente não deixando de ser impiedoso (ainda que o acto que à partida parece maximamente cruel – o homicídio sistemático dos camponeses que horroriza Megan – seja calmamente justificado como um acto de comiseração, procurando poupar-lhes um fim mais lancinante). No fundo, há um chamamento que ele faz a Megan para o seu território, um apelo ao encontro, união e sublimação de dois mundos diferentes.
A verdadeira missão de Megan é descobrir o mistério que é a China descobrindo o mistério que é o General Yen. E, nessa descoberta, na transposição dessa grande muralha, descobrir-se a si própria. É este o arrojo de Frank Capra em The Bitter Tea of General Yen (e, em certa medida, contrariado pela sua obra ulterior), o de admitir que a personagem americana, seja ela na sua versão Megan, seja ela na sua versão Jones, se veja forçada a pôr em causa a sua verdade, a sua “superioridade” face ao estranho, se deixe tocar (e transformar) por um mundo que não é o seu.