Women and fiction remain, so far as I am concerned, unsolved problems.
Virginia Woolf, A Room of One’s Own (1929).
Não serei certamente a primeira a dizê-lo: Trenque Lauquen (2022) de Laura Citarella é, até ver, um dos mais importantes filmes do ano. Em Portugal, poucos terão sido aqueles que tiveram a boa intuição ou a sorte de assistir à única projeção, no festival IndieLisboa, deste estranho filme argentino assinado por uma cineasta desconhecida, com um título dificilmente pronunciável e uma duração pouco encorajadora de 270 minutos. Apesar de ter recebido o Prémio Silvestre para Melhor Longa-Metragem, a longa de Citarella não integrou o programa especial dos filmes premiados do Indie no Cinema Ideal – mas espero que não tardemos a ter a oportunidade de o ver noutras salas do país.
Esta obra de quatro horas, divididas em doze capítulos (e, em alguns países, exibida em duas partes), chega-nos da Argentina pelas mãos do coletivo El Pampero Cine, fundado em 2002 pelos cineastas Mariano Llinás [realizador de La flor (2018), esse outro imenso film fleuve de treze horas], Alejo Moguillansky [La Vendedora De Fósforos (2017)], Agustín Mendilaharzu e a própria Laura Citarella. Escrito e filmado ao longo de seis anos, a importância de Trenque Lauquen no panorama do cinema mundial começa precisamente pelo ecossistema de produção na sua origem: os projetos do El Pampero Cine são a prova de que uma outra forma de fazer cinema é possível, independente de subsídios estatais e de financiamentos institucionais, à margem dos longos (e viciados) circuitos de produção e de distribuição cinematográfica; uma utopia de cinema “à escala humana”, assente numa economia de produção auto-suficiente, quase artesanal, e numa lógica de criação cooperativa e solidária, sendo que os cineastas do coletivo não só trabalham frequentemente com o mesmo núcleo de atores, atrizes e técnicos, como colaboram nos projetos uns dos outros, enquanto argumentistas ou montadores.
o filme de Citarella é importante não só pela liberdade com que baralha e distribui as cartas da ficção pelas personagens, como também pela agilidade e simplicidade com que se esquiva à obrigação de qualquer forma de desfecho (…)
Para além de constituir um oásis de cooperação e de liberdade criativa no seio de uma indústria cinematográfica cuja ideologia promove o individualismo, o liberalismo económico e a regulação normativa dos gostos, El Pampero Cine distingue-se igualmente enquanto laboratório narrativo e formal aberto a experimentações em todos os géneros e formatos. Um insaciável desejo de ficção, herdado de três grandes escritores sul-americanos (Jorge Luis Borges, Bioy Casares, Roberto Bolãno), permeia as produções do coletivo, e Trenque Lauquen não é exceção: trata-se, nas palavras de Marcos Uzal, de um desses “filmes milagrosos que nos lembram como o cinema tem a capacidade única de se posicionar no mundo como num parque infantil e de se servir da ficção para moldar a realidade ad infinitum, como em Feuillade ou Rivette” (Cahiers du cinéma, n° 798).
Quatro horas acabam por ser pouco quando se trata de acolher num só filme um universo fervilhante de estórias interligadas, à imagem de um jardim de caminhos que se bifurcam, ou de uma vaga de círculos concêntricos provocados pela queda de uma pedra nas águas de um lago – afinal, em língua mapuche (idioma dos povos ameríndios de certas regiões da Argentina e do Chile), “Trenque Lauquen” significa justamente “lago redondo”; e é também o nome de uma povoação situada na província de Buenos Aires, de onde a família da cineasta é originária e onde esta passava férias na sua infância e adolescência. É nesta cidade e nos seus arredores que se desenrola a intriga ou, mais precisamente, as intrigas do filme – estas serão múltiplas, tentaculares, rizomáticas… e invariavelmente inacabadas. Assim, desde os minutos iniciais, Citarella parece estender aos espectadores o primeiro de uma malha intricada de “fios de Ariadne” que os conduzirão ao centro do labirinto de Trenque Lauquen. Início esse em tudo banal: dois homens investigam o desaparecimento de uma mulher.
Quantas obras primas do cinema mundial começam por uma tal avventura? Em pelo menos duas delas, particularmente emblemáticas, a desaparecida tem o nome de Laura: penso nas heroínas do film noir homónimo d’Otto Preminger (1944) e da saga Twin Peaks (1990-1991, 2017) de David Lynch. A estas, junta-se a protagonista de Trenque Lauquen, também ele co-escrito por duas Lauras argentinas, Citarella e a atriz Laura Paredes, luminosa no papel de uma jovem investigadora em botânica, contratada para repertoriar as variantes de uma espécie de plantas da região, e colaboradora freelancer da rádio local, onde assegura uma crónica sobre as mulheres que marcaram a História.
Os dois homens na peugada de Laura são o seu futuro noivo, Rafael (Rafael Spregelburd), um universitário instalado na capital, e Ezechiel (Ezequiel Pierri), também conhecido como Chicho, um funcionário da câmara municipal, secretamente apaixonado por Laura. Juntos formam uma dupla caricata de detetives amadores, cada um guardando para si as suas hipóteses e suspeitas quanto às razões do desaparecimento da jovem. Assim, a primeira parte de Trenque Lauquen tenta narrar e ilustrar as hipóteses formuladas pelos dois homens, ao mesmo tempo que estabelece a cartografia da cidade, enquanto a segunda se ocupa de constatar a insuficiência dessas mesmas teorias face à emergência de outros mistérios, tão ou mais insondáveis, que por sua vez abrem novos horizontes, tanto ficcionais como geográficos. Cada mistério concentra-se na aventura de uma mulher de outra época e culmina com um novo desaparecimento inexplicável, acabando por se revelar um beco sem saída; de forma semelhante, cada capítulo, narrado sob a perspetiva de uma das personagens, acaba por ser desmentido ou ultrapassado pelos que se seguem. Só Laura funciona como uma espécie de elemento magnético capaz de fazer convergir na sua pessoa todas as estórias e fantasmas de Trenque Lauquen, entre os quais: uma história de amor adúltero e transatlântico de longa data, reconstituída através de uma série de cartas eróticas escondidas entre as páginas de vários livros da biblioteca municipal; o encontro com uma misteriosa mulher grávida em busca de uma flor supostamente com poderes mágicos; o surgimento, à beira do lago, de um estranho ser (enfant sauvage? animal? extraterrestre?) e a sua cobertura mediática pela imprensa local.
Nesse lago de águas paradas que é Trenque Lauquen, a narração navega à deriva entre vários géneros (road movie, thriller, romance pastoral, ficção-científica, fantástico), humores (ligeireza ou nostalgia, realismo documental ou realismo mágico) e temporalidades incertas (presente e passado(s), próximo ou longínquo). É inútil tentar reconstituir uma cronologia plausível a partir dos eventos mostrados no filme, da mesma forma que é impossível saber se as imagens que nos são dadas a ver correspondem à realidade dos acontecimentos ou se são o fruto da imaginação daquele ou daquela que ouve a estória ou que a relata – em tête-à-tête num café, através de cartas lidas em voz off, ou ao microfone no estúdio de rádio. Deste modo, o filme de Citarella é importante não só pela liberdade com que baralha e distribui as cartas da ficção pelas personagens, como também pela agilidade e simplicidade com que se esquiva à obrigação de qualquer forma de desfecho, como seria de esperar num objeto fílmico mainstream.
“As mulheres e a ficção permanecem, no que me diz respeito, problemas não resolvidos”: estas palavras de Virginia Woolf permitem-me introduzir a terceira razão pela qual Trenque Lauquen é uma obra importante. Em entrevista para o NotebookMUBI, Citarella evoca precisamente o ensaio de Virginia Woolf A Room of One’s Own (1929) para ilustrar de que forma o seu filme assenta na confrontação entre duas maneiras de contar estórias radicalmente diferentes: uma mais “masculina”, associada às personagens de Rafael e de Chicho, que procuram explicar e solucionar o desaparecimento de Laura de forma racional e pragmática; outra eminentemente “feminina”, caracterizada por uma abordagem intuitiva dos fenómenos cíclicos do mundo e por uma maior abertura e aceitação face ao desconhecido, bem como por uma tomada de consciência, da parte das personagens femininas (e, através destas, da própria cineasta) quanto à sua pertença a uma comunidade ou a uma “teia” de ficções ancestral, tecida a partir das aventuras e dos destinos de várias mulheres ao longo dos tempos.
Uma mulher desaparece. Quantos homens na história do cinema (personagens ou realizadores) fizeram sua a missão de descobrir o paradeiro dessa mulher, de a salvar, trazendo-a de volta aos seus braços? Quantos homens procuraram cristalizar a imagem da desaparecida num quadro, fotografia ou qualquer outro obscuro objeto do desejo? Quantos tentaram elucidar as circunstâncias e as causas do seu desaparecimento sem que nada lhes fosse pedido? De certa forma, parte da diferença entre um cinema ainda dominado pela cultura patriarcal e um outro de vocação mais feminista reside, justamente, na forma como o primeiro procura a todo o custo circunscrever e/ou explicar as ações de uma personagem feminina quando estas fogem à norma, enquanto o segundo ousa abraçar o mistério e a mutação inerentes ao ser-se mulher num mundo também ele sujeito a constantes transformações. Talvez Laura não queira ser encontrada; ou talvez nunca tenha realmente desaparecido – em última instância, as imagens do filme testemunham a sua trajetória, imbricada numa teia de ficções, é certo, mas ao mesmo tempo presente no mundo, literalmente “gravada” na película (basta pensar na última sequência de Trenque Lauquen, sobre a qual nada direi, senão que foi filmada em 35 mm, provocando uma mudança inesperada no formato da imagem, como se de repente Laura tivesse atravessado um portal para outra dimensão da sua existência). Afinal de contas, uma mulher nunca desaparece; apenas passa a existir de outra maneira, sobre outra forma. Trenque Lauquen é um filme maravilhosamente mutante, à imagem das mulheres que o habitam.