Depuis qu’on est ensemble / Tu viens chaque matin /
Me donner la première caresse / Bonjour tristesse.
Juliette Gréco
Assistimos, no início de À nos amours (Aos nossos amores, 1983), à revelação simultânea de uma atriz e de uma mulher. Com 15 anos apenas, e (praticamente) zero de experiência no grande ecrã, Sandrine Bonnaire “nasce” enquanto atriz ao ser-lhe dada a oportunidade de interpretar o papel principal na sétima longa-metragem do herdeiro mal-amado da Nouvelle Vague, Maurice Pialat; por sua vez, a personagem em questão, Suzanne, “nasce” enquanto mulher no corpo já desenvolvido da jovem Sandrine Bonnaire que, sob o olhar nu e cru de Pialat, se despe(de) da infância e desperta para uma nova forma de ocupar o mundo: o cinema.
Quando o filme começa, o rosto de Suzanne/Sandrine já está lá, no centro da imagem, à espera de ser revelado (e se o rosto de Bonnaire é fotogénico, é-o justamente segundo a definição proposta nos anos 20 por Louis Delluc: é fotogénico um ser ou objeto capaz de “receber a luz [e] opor-lhe uma reação interessante”, sendo a sua beleza intrínseca revelada e sublimada por intermédio de operações cinematográficas). Assim, a primeira “reação interessante” que suscita este rosto angelical iluminado pela objetiva de Pialat decorre, no primeiro plano de À nos amours, do contraste entre as palavras datadas e sentimentais que o cineasta coloca na boca da sua personagem/atriz, e o ar displicente e algo provocante com que esta encara a câmara; mas basta uma mudança de plano para percebermos que Suzanne, agora vestida em traje de época, está na verdade a ensaiar as suas deixas para a representação teatral que terá lugar nessa mesma noite, na colónia de férias no sul da França, onde se encontra a passar o último verão da sua adolescência.
A peça em questão é On ne badine pas avec l’amour (1834) de Alfred Musset, um “provérbio” romanesco em tom de comédia ligeira, porém com um desfecho trágico; à primeira vista distante de tudo o que poderíamos esperar de Pialat, este início teatral e veraneante sob o signo de Musset e de Rohmer introduz o tema do filme – os desencontros amorosos que forjam (e forçam) a passagem da juventude para a idade adulta –, ao mesmo tempo que “põe em cena” o processo através do qual uma atriz entra (duplamente) na personagem. Entre os ensaios e a noite de estreia, haverá ainda tempo para um passeio de barco ao largo do Mediterrâneo: Pialat insere nesse momento o genérico inicial, filmando a jovem, vestida de branco e com os cabelos ao vento, no topo do barco, qual figura de proa. A sequência é acompanhada pela melodia imponente de “The Cold Song” tirada da ópera barroca de Henry Purcell, na versão de Klaus Nomi; desta música, que ouviremos novamente a meio do filme, retemos sobretudo a frase “Let me freeze again to death”, que ecoa como um presságio do destino fatídico de outra personagem incontornável que Sandrine Bonnaire encarnará dois anos mais tarde: a vagabunda Mona de Sans toit ni loi (Sem eira nem beira, 1985) de Agnès Varda.
Maurice Pialat, autêntico Pigmaleão que se apaixona pelo seu modelo ao mesmo tempo que “esculpe” – ou deveria dizer “pinta”, à luz do seu passado de pintor? – a presença de Sandrine Bonnaire no ecrã.
Mas antes de falar de morte, voltemos ao nascimento. Falar de um nascimento implica, naturalmente, falar de maternidade e de paternidade. A génese de À nos amours remonta a um argumento escrito nos anos 70 por Arlette Langmann – irmã do realizador e produtor Claude Berri e ex-mulher de Maurice Pialat, com quem colaborou nomeadamente na escrita de Loulou (1980) –, argumento esse intitulado Les Filles du Faubourg, fortemente inspirado na adolescência de Langmann, nos anos 60; mas o projeto, considerado demasiado denso e ambicioso, acabará por ser abandonado por falta de financiamento (tendo de certa forma sido substituído por Passe ton bac d’abord [1978]). Será, efetivamente, a “revelação” de Sandrine Bonnaire num casting de figurantes que levará Pialat a recuperar o argumento de Langmann, focando-o desta feita na nova protagonista, e em particular na sua iniciação sexual: Suzanne “nasce” verdadeiramente no momento em que, traindo o seu namorado Luc (Cyr Boitard), “oferece” a sua virgindade a um soldado americano de passagem – primeira de uma série de liaisons com que procura atenuar o seu “coração seco” e afrontar a (des)ordem familiar. Um Irmão ciumento, uma mãe borderline e um pai ausente são igualmente figuras centrais em À nos amours, interpretados respetivamente por Dominique Besnehard (futuro agente e produtor de cinema), por Évelyne Ker (a única atriz profissional do elenco) e, sobretudo, pelo próprio Maurice Pialat, autêntico Pigmaleão que se apaixona pelo seu modelo ao mesmo tempo que “esculpe” – ou deveria dizer “pinta”, à luz do seu passado de pintor? – a presença de Sandrine Bonnaire no ecrã.
Duas cenas do filme são especialmente reveladoras da metamorfose do rosto infantil de Suzanne/Sandrine num corpo de mulher. A primeira é o famoso tête-à-tête noturno entre pai e filha, atriz e realizador. Suzanne acaba de regressar a casa depois de um dos seus encontros sexuais fortuitos (a primeira cena em que a vemos nua) e o pai espera-a para lhe pedir contas pelo seu comportamento e para lhe anunciar que vai sair de casa; mas a interação entre ambos, em vez de resvalar para uma disputa violenta, assume contornos de um precioso momento de intimidade, em que não só fazem confidências como se olham realmente: Suzanne repara no aspeto amarelado de um olho do pai (supostamente um sintoma da morte iminente da personagem de Pialat, prevista no argumento mas posteriormente excluída da montagem), enquanto este constata o desaparecimento de uma das “covinhas” no rosto da jovem. Basta então um simples gesto, improvisado pelo cineasta durante a rodagem, para designar o detalhe “inopinado, fulgurante, inefável” (o punctum, diria Barthes) que trespassa aquele pai ao tomar consciência de que a sua filha não é mais uma criança.
A segunda cena corresponde, literalmente, a um despertar imposto à protagonista: Suzanne é acordada de forma abrupta pela mãe, que abre as cortinas ofuscando-a com a luz do sol, e a repreende por dormir completamente nua, hábito que considera “nojento”. Num só plano, Pialat confronta dois corpos, um já envelhecido, outro na flor da idade, e duas conceções da mulher, mãe puritana (e, para mais, humilhada por ter sido abandonada pelo marido, possivelmente trocada por uma amante mais jovem) e filha devassa, cuja beleza sedutora não escapa aos olhos de ninguém, nem mesmo ao seu próprio irmão. Contudo, ao invés de expor a sua nudez frontal, como ela se dá a ver à mãe, o cineasta filma Suzanne/Sandrine de costas, destacando a sua silhueta sublimemente desenhada e iluminada como o seria um nu feminino numa tela impressionista de Pierre Bonnard; e ainda que praticamente não vejamos o seu rosto nesta cena, não “perdemos de vista” a aura de inocência da criança que foi, e cujo retrato fotográfico se encontra pendurado à cabeceira da cama.
Estas cenas são também exemplos de duas facetas, à primeira vista opostas, do estilo cinematográfico de Maurice Pialat: por um lado, a improvisação “forçada” que pauta o seu trabalho com os atores, à semelhança de John Cassavetes, e que é levada ao extremo numa das cenas finais, na qual o pai, que todos (personagens e atores) julgavam morto, irrompe no jantar de noivado de Suzanne e distribui insultos e acusações gratuitas pelos presentes (sendo pouco claro se é a personagem ou o próprio cineasta quem fala); por outro lado, o seu olhar de pintor herdeiro dos mestres impressionistas, que se manifesta através da atenção dada à composição dos planos e ao trabalho cuidado e discreto da luz e da câmara, destacando-se a sua apetência por planos-sequência praticamente fixos, nos quais a vida simplesmente “acontece”. Ambas as facetas do método Pialat revelam-se, na verdade, complementares: na medida em que aquilo que interessa ao realizador é a possibilidade de captar a realidade bruta, a estética do plano-sequência concede aos atores uma grande liberdade para ocuparem o espaço e reagirem em tempo real às situações dramáticas esboçadas pelo argumento.
Se, no fim de contas, a força do cinema de Pialat decorre de uma certa porosidade entre as dimensões de representação e de realidade, a obstinação do cineasta em “provocar o real” para dele extrair uma “verdade nua” é susceptível de levantar questões de ordem moral: devemos autorizar tudo da parte de um cineasta em prol da autenticidade, mesmo a violência moral ou até física? Com efeito, as bofetadas trocadas nas cenas de histeria familiar de À nos amours não são menos reais do que a carícia de Pialat sobre a “covinha” desvanecida no rosto de Sandrine/Suzanne.
Igualmente ao serviço deste naturalismo implacável, a montagem faz-se invisível no interior das sequências, ao mesmo tempo que assume plenamente as elipses temporais que crivam a narrativa: mais do que expor ou explicar uma cadeia de causas e efeitos, o montador Yann Dedet contenta-se em justapor uma série de instantes fugazes extraídos da vida quotidiana; frequentemente, as cenas começam já a meio de uma disputa ou são deixadas em suspenso, de tal modo que as lacunas deliberadamente criadas pela montagem tornam difícil compreender o que motiva as ações e reações das personagens. À tendência para a psicologização que Pialat tanto repudia no cinema francês, o cineasta opõem uma lógica dos afetos, simultaneamente meiga e dilacerante, paradoxalmente “à flor da pele” e intangível, sendo o ritmo da montagem impulsionado pelas explosões de emoção vividas pelos atores durante as filmagens.
Assim, nunca saberemos ao certo porque é que Suzanne coleciona amantes sem se conseguir apegar a nenhum deles, nem porque é que o único rapaz com quem recusa envolver-se sexualmente é aquele por quem julga estar apaixonada; mas pouco importa. Embora desconfiemos que a sua incapacidade de amar (ou sede de ser amada?) tenha algo a ver com a sua relação com o pai, e em particular com a dinâmica familiar tóxica, sobre a qual paira, por vezes, a sombra de um desejo incestuoso, À nos amours não se deixa reduzir a essa explicação. Ao longo do filme, são vários os momentos em que Suzanne/Sandrine parece ausentar-se de si mesma, desligar-se do seu corpo e escapar à violência da mise en scène: por exemplo, quando o cineasta filma a sua silhueta desfocada através de uma superfície translúcida à chuva; ou quando fixa, no grande plano final, o seu rosto a olhar uma última vez o pai Pialat por detrás da objetiva, antes de se aventurar por outros territórios (geográficos como cinematográficos).
Por fim, À nos amours faz-me pensar num outro filme, mais soalheiro e formalmente distante do universo pialatiano, mas que aborda igualmente o modo como a passagem da juventude insoucieuse para a responsabilidade da vida adulta (e sexualmente ativa) obriga a reconfigurar a relação fusional entre um pai e uma filha: refiro-me a Bonjour tristesse (1958) de Otto Preminger, com David Niven e Jean Seberg nos papéis principais. Para mais, ambos os títulos soam como uma saudação manchada de um sentimento de melancolia e de nostalgia – um brinde aos amores perdidos com um copo vazio. Pouco importa em quantos abraços Suzanne/Sandrine e Cécile/Jean se perderão antes de encontrarem um porto de abrigo duradouro, nem em quantos espelhos procurarão a “covinha” apagada do seu rosto; afinal de contas, como lembra o pai Pialat citando o pintor Van Gogh, só a tristeza durará para sempre.