so get in the car
and I’ll treat you right
we’ll get some inspiration from the night
and go rockin’ in to moonlight
well go rollin’ until daylight
Fred Mollin, Rockin’ In The Moonlight
No final da década de 1970, o governo canadiano introduziu um regime fiscal favorável às produções de cinema no país, o que permitiu dotar os projectos de Cronenberg de orçamentos mais encorpados. O seu primeiro filme produzido neste contexto foi Fast Company (1979), olhado como um corpo estanho na obra do cineasta, em especial naquele período, por se desviar abertamente do género do terror e por aparentemente não integrar os seus temas ou as suas obsessões. Chris Rodley concede que se trata de um projecto talvez “menos pessoal”, até porque não foi escrito por ele, mas que se revelou importante para Cronenberg: “estabeleceu a ponte” entre as produções de pequeno e médio orçamento; permitiu o “desenvolvimento” das habilitações técnicas do realizador e a “experiência de trabalhar com material (guião) não original”; mas, foi sobretudo decisivo no encontro com várias pessoas que permaneceriam como seus colaboradores em vários filmes: Mark Irwin (fotografia), Carol Spier (designer de produção), Bryan Day (som) e Ronald Sanders (montagem). O facto de ser o seu “único filme a não ser distribuído aquando da sua produção”, é para Rodley um sintoma da “perda”, ainda que circunstancial, da “categoria autoral” do cinema do canadiano.
O primeiro acto de Fast Company apresenta-nos os personagens e o quotidiano de uma equipa de automóveis de corrida, financiada por uma empresa de combustíveis (FastCo). Em sequências registadas no autódromo de Edmonton e de outros no oeste do Canadá, o filme divide-se no interesse pela apresentação dos personagens e pela atenção àqueles peculiares automóveis e às suas performances. Ainda não conhecemos os membros da equipa da FastCo e já assistimos a trechos de corridas e à velocidade que a câmara colocada junto à pista testemunha. De modo intencional, Cronenberg deixa-nos o detalhe do interior das carroçarias e a potência dos motores, como se revelasse as entranhas de uma máquina. Ainda antes de haver personagens, há condutores que parecem estar dentro, como partes da máquina, assumindo o carro e a posição do homem uma forma aproximada de um caixão, também a sinalizar a presença da morte associada àquela actividade. Em simultâneo, ouvimos longas descrições do speaker da corrida à volta da potência daqueles estranhos automóveis, sobre os incrementos recentes e as inovações mecânicas; no contra-campo dos sons emitidos pelos potentes motores, encontramos as bancadas e os espectadores que protegem os ouvidos.
Na primeira vez que identificamos o personagem Lonnie “Lucky Man” Johnson (William Smith), que mais tarde descobriremos ser o protagonista, um reverente adolescente ouve uma pergunta emitida pela vedeta das corridas: “Já tens carro ou ainda andas de bicicleta?” Pouco depois, haverá uma imagem que poderia definir, do ponto de vista publicitário, o século XX: uma jovem mulher de costas, a miss FastCo, como uma cheerleader, no primeiro plano de um quadro que apresenta a carroçaria de um automóvel que desnuda o motor da máquina, sob a acção do manuseamento de um homem. O automóvel surge, então, representado como a máquina referencial do homem, da sua relação com o espaço e com o tempo, na libertação do corpo, e em consequência do sexo. Nessa primeira aparição de Lonnie, o condutor justificará a alcunha de sortudo, ao escapar ileso à explosão do veículo durante uma das provas. Veremos Lonnie a assistir à repetição da potente explosão, para pouco depois um outro condutor lhe confidenciar que o acidente ficou óptimo nas imagens televisivas. Mesmo que de forma ténue, é já Cronenberg a comentar o poder contaminador das imagens, a sua essência misteriosa na relação com o humano, que haveria de ser um dos seus temas e um eixo central de Videodrome (Experiência Alucinante, 1983), que realizaria três anos depois.
Cronenberg apesar de concordar que Fast Company “parece não se enquadrar no todo do seu trabalho”, diz que acaba por encaixar, pois “veio dele, foi um trabalho de amor”, de revelação de uma das suas paixões de juventude: as corridas de automóveis. Assume, também, que teve “menos controlo” do que noutros filmes, mas que se revelou importante para “afiar o seu estilo”. Por isso, nunca renegou o filme, no apreço pela expressão de uma “estima e entendimento dos automóveis e da maquinaria das corridas”, manifestada por vezes de modo “metafísico”. O resultado é para ele um quase “documentário” caloroso do modo de viver dos pilotos e das entourages.
A fruição das corridas nas bancadas dos autódromos ou através dos ecrãs de televisão é a parte observável destas comunidades, que são, em grande medida, manobradas pelos negócios e pelas marcas que as sustentam, pelo que a publicidade é um dos temas do filme, orientando também a narrativa. No entanto, o que mais importa em Fast Company é o que sobra do fio narrativo, bastante ortodoxo e previsível, e por isso vamos atender a alguns detalhes, mais reveladores dos interesses do realizador e das suas significações. O sexo que as máquinas e os corpos insinuaram até aí concretiza-se a meio do filme, numa cena protagonizada pelo personagem Billy “The Kid”, sucessor de Lonnie, interpretado por Nicholas Campbell, que haveria de voltar à obra de Cronenberg em The Brood (A Ninhada, 1979), The Dead Zone (Zona de Perigo, 1983) e em Naked Lunch (O Festim Nu, 1991). The Kid está, então, dentro de um trailer de um camião em movimento, ladeado por duas jovens mulheres nuas a quem havia dado boleia. Durante o interlúdio sexual, The Kid liberta óleo da FastCo no corpo de uma das mulheres. No deslizar daquele material viscoso encontramos a manifestação da libertação sexual dos entraves morais, na relação do corpo com as máquinas, a sua potência e os seus materiais, algo que conhecerá o seu pináculo na adaptação de Crash (1995). Candy (Judy Foster), a miss FastCo, resiste às investidas do administrador do patrocinador Phil Adamson (John Saxon) e recursar-se-á a entregar o corpo como moeda de troca para favores da imprensa e da publicidade; na cena seguinte, encontrá-la-emos na cama com The Kid, o que confirma que, apesar das incompreensões relativas ao seu trabalho, a emancipação da mulher, a libertação do seu corpo, é uma das investidas do cineasta. Fast Company foi o primeiro filme em que Cronenberg teve uma banda sonora original, no caso composta por música rock. Pensamos muitas vezes nos musicais de Hollywood, atendendo à presença transversal da música: as canções apressam a trama e as acções dos personagens e estabelecem conexões entre as corridas e os corpos, os motores e o sexo.
Apesar do respeito e admiração mútuos, Cronenberg e Scorsese foram comentando a obra um do outro, o que estabeleceu distâncias, mas também a clarificação de aspectos do corpo de trabalho de cada um: o italo-americano mais ancorado na história do cinema, da “movie literacy” como enunciou Cronenberg, o canadiano mais influenciado pela literatura. Cronenberg diz ambicionar a influência de uma “tradição mais antiga”, que não algo “parasítico”, pois os seus filmes ambicionam ter uma “vida própria”, uma ferocidade que “lida com verdadeiros demónios”. Acrescenta que se muita da melhor literatura está impregnada de “alusões literárias, referências e ressonâncias”, parece-lhe muito redutor assentar um filme apenas na herança da história do cinema, ou numa “questão de estilo e contexto”.
No entanto, Fast Company produz um comentário irónico a esta relação do cineasta com a cinefilia, assente na personagem de Lonnie, pioneiro das corridas e com uma notoriedade que o aproxima a uma vedeta de Hollywood. O protagonista é, então, interpretado por William Smith, que nasceu em 1933, tendo falecido em 2021, depois de quase 80 anos de carreira, dividida pelo cinema e pela televisão, em quase trezentos títulos, incluindo alguns protagonistas de filmes de exploitation nos anos 1990. O que é verdadeiramente notável no percurso do actor é a sua presença, muitas vezes quase invisível e em grande parte não acreditada, na história de Hollywood, como se exemplifica em alguns títulos dos anos 1940, sendo Smith ainda criança: Meet Me in St. Louis (Não Há Como a Nossa Casa, 1944) de Vincente Minnelli, A Tree Grows in Brooklyn (Laços Humanos, 1945) de Elia Kazan, Gilda (1946) de Charles Vidor, The Boy with Green Hair as Boy (O Rapaz dos Cabelos Verdes, 1948) de Joseph Losey. Essa presença testemunhal do actor prosseguiu, já adulto e depois de Fast Company, como pai do protagonista de Conan the Barbarian (Conan e os Bárbaros, 1982) de John Milius, ou em dois pequenos papéis em filmes consecutivos de Coppola, uma das grandes figuras da Nova Hollywood: Rumble Fish (Juventude Inquieta, 1983) e The Outsiders (Os Marginais, 1983). Este histórico seria incipiente se o personagem fosse despido da relação com esse ónus. Mas, Lonnie já envelhecido para aquela função, dá corpo ao cansaço, à melancolia e à gravitas que replica os personagens da Hollywood clássica que desejam voltar a casa, reencontrar velhos amigos e uma companheira que negligenciou devido à distância: Sammy, interpretada por Claudia Jennings, vedeta da Playboy. O regresso planeado, então, por Lonnie a Seattle é construído por Cronenberg e pelo actor, como uma versão de Steve McQueen em Junnior Bonner (Junior Bonner, O Último Brigão, 1972) de Sam Peckinpah, na interpretação de um velho cowboy que retorna a casa, para reencontrar a família, enquanto teima, contra o próprio corpo, uma última participação num rodeo. Cronenberg intensifica esta captura, ao enquadrar William Smith de baixo para cima, um herói sustentado no porte físico, mas também na distinta estatura e complexão moral, que o torna a referência, na relação entre o velho e o novo, com o seu aprendiz, The Kid.
Já próximo do desfecho da narrativa, encontramos Lonnie e a namorada Sammy, esta sentada no estranho veículo, que exibe a descoberto o potente motor e demais engrenagens. Para lá de uma espécie de fetichismo que já assinalamos na associação entre corpos e motores, esta sequência na oficina onde Lonnie, como uma espécie de cientista experimenta novas soluções da mecânica, volta a pôr-nos em diálogo com Crash. Na adaptação do livro de J. G. Ballard, Vaughan, líder messiânico do bando, explicava o seu projecto científico, na transformação da anatomia e da carne humana, resultantes das colisões dos automóveis. À pergunta de James se era ali que Vaughan vivia, este respondera-lhe que aquele compartimento era a sua oficina, pois ele vivia no seu automóvel, um Lincoln idêntico ao que transportara JFK no percurso fatídico de Dallas. Fast Company, ainda que de forma menos determinada, também procura retratar uma comunidade peculiar; Lonnie responderia de forma similar a Vaughan: aquela é a sua oficina, pois ele vive no trailer de um camião, idêntico ao que transporta os carros de corrida.
O filme também antecipa a aspiração profética presente em Crash e corporizada pelo sacerdote Vaughan: Fast Company assinalou a última interpretação de Claudia Jennings, que poucos meses depois da estreia, em Outubro de 1979, morreu numa colisão automóvel, na auto-estrada da costa do Pacífico, na vizinhança de Malibu. A actriz e playmate tinha apenas 29 anos.